A extrema-direita, uma vontade de poder
Esquerda e direita são termos contraditórios e, quase sempre, assimétricos. Uma costuma ter a hegemonia e a outra vê-se obrigada a agir contra ela. Durante muitos anos, a partir da II Guerra Mundial, a hegemonia esteve, conflitivamente, na esquerda e o pensamento de direita teve que conviver com um capitalismo mais ou menos reformista, com uma democracia de massas e com o Estado Social. Recordemos a dedicatória de Friedrich August von Hayek, em “O caminho da Servidão”, “aos socialistas de todos os partidos”. Hoje poderíamos dizer “aos neoliberais de todos os partidos”.
As novas extremas-direitas têm a ver, no meu entender, com os dados do presente: a crise do neoliberalismo e o desabamento político-moral das esquerdas. Entenda-se bem, quando falo de crise do neoliberalismo não quero dizer que estejamos face ao seu final, nem sequer perante o seu esgotamento definitivo; falo da perda de legitimidade, de apoio social, consequência de fracassos recorrentes como a crise de 2008, o retrocesso da globalização capitalista ou o regresso dos Estados nacionais na crise da Covid-19 e, sobretudo, o duríssimo confronto geopolítico entre Estados Unidos e China. Do outro lado da contradição está uma esquerda que não é capaz de analisar verdadeiramente as novas condições sócio-económicas e político-culturais e à qual continua a faltar um projeto autónomo. O grande paradoxo é que a crise da globalização neoliberal pode ser o momento final do que resta da velha esquerda social-democrata-comunista.
Discute-se com muito dramatismo a crescente polarização da vida pública, mas esta também é assimétrica e tem que ver apenas com as direitas duras e as extremas-direitas. Quem tenha lido a “Carta de Madrid”, elaborada pelo Vox e por outras forças latino-americanas suas irmãs, terá visto – e terá ficado surpreendido – com umas direitas fortemente rearmadas ideológica e politicamente contra um comunismo disposto a tomar o poder. Falava-se de revolucionários sem revolução; agora podemos falar num “anticomunismo de massas” sem comunismo como movimento político real. A pergunta que se deve fazer é: como é que se chegou a esta situação? Ou seja, a umas direitas extremas com uma linguagem da Guerra Fria face a um mundo que mudou substancialmente a seu favor e a umas esquerdas moderadamente reformistas. Dir-se-á que as direitas – todas – empregam um dispositivo discursivo baseado numa nova versão da estratégia da contra-revolução preventiva, com um duplo objetivo: demonizar os programas das forças democráticas e impedir um questionamento de fundo das estruturas de poder oligárquicas.
A lógica do Vox é muito clara. Toda a esquerda, desde o PSOE passando pelo Unidas Podemos e acabando nas forças independentistas, seriam comunistas ou fortemente infiltradas por eles. E isto também se projeta para trás, para a história: para o Vox, o socialismo em Espanha foi sempre comunismo e as forças democráticas eram consideradas companheiro de viagem. Pedir rigor histórico ao deputado Abascal é inútil, o seu objetivo é outro: criminalizar o republicanismo político e a esquerda e, o que é mais importante, disputar o poder de definição: é democrata quem as direitas decidirem que o é. O totalitarismo – ambíguo por definição – é aquilo que os comunistas fazem e noutras épocas, há muitos anos atrás, noutro século, é aquilo que tem que ver com o fascismo ou com o nazismo; desde logo nada – ou muito pouco – relacionado com a ação salvadora do general Franco. Dito de outro modo, o totalitarismo fascista é coisa do passado; o que há que temer hoje é o comunista, realmente perigoso, novamente disposto a conquistar o poder através de Pedro Sánchez.
Há uma passagem divertida na mencionada Carta. Em vez de falar de América Hispânica, ou de América Latina ou de usar a versão mais nacionalista espanhola de Hispanidade, fala-se de “Iberosfera”, algo mais moderno e mais comunicativo. Os aliados do Vox têm cuidado de não fazer demasiados discursos que soem a velhas referências imperiais e necessitam fortemente do impulso de um Bolsonaro a viver momentos baixos. Sem dúvida, o que mais os define é a denúncia dos totalitarismos de inspiração comunista, sob o guarda-chuva de Cuba e da maliciosa influência do Fórum de São Paulo e do Grupo de Puebla. O número de comunistas deve ter crescido muito e a sua influência muito mais; estão em todos os lados.
O programa vai ao encontro do manual de boas práticas da USAID (Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional): defesa da democracia, do Estado de direito, da divisão de poderes, da propriedade privada e uma menção genérica aos direitos humanos. Tais proclamações figuraram-se sempre nos discursos das ditaduras e das democracias normalizadas da América Latina. O problema é a contradição entre os textos constitucionais e a realidade que supostamente devem ordenar e regular. O que a América Latina evidencia é que a democratização política e a democratização económico-social andam a par. Não haverá uma sem a outra, Democracia política, soberania popular e justiça social são vetores de um mesmo processo que aqueles que mandam sempre cindiram e que tem origens conhecidas: uma distribuição desigual do poder económico-social, a captura do Estado por um bloco de poder oligárquico e o firme controlo dos Estados Unidos.
Em meu entender, estas extremas-direitas acabam com os populismos (de direita) que conhecemos até ao momento. O domínio neoliberal produziu desagregação, pobreza e exclusão social; propostas de matriz mais ou menos populista ficavam abertas tanto a um lado como ao outro do campo político. Esse tempo, creio, está a acabar. A crise do neoliberalismo, a globalização capitalista em retirada e mudanças geopolíticas decisivas abrem espaços novos, linhas de fratura inéditas e novas possibilidade de reorganização do sujeito popular. É apenas o começo.
Manolo Monereo é um advogado, cientista político e político espanhol. Foi militante do PCE e da IU e deputado da Unidas Podemos.
Artigo publicado originalmente no El Comején. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.
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