Como Bolsonaro usa sua “desconfiança” nas vacinas para manipular os evangélicos
Movimento antivacina no mundo é liderado por fundamentalistas religiosos; nos EUA, ateus são os que mais se vacinam
Durante um encontro de igrejas evangélicas na cidade goiana de Anapólis, em junho, Jair Bolsonaro fez questão de assegurar que as vacinas contra a Covid-19 são “experimentais”. “A vacina tem comprovação científica ou está em estado experimental ainda? Está experimental”, disse o presidente, desinformando mais uma vez sua audiência –a eficácia das vacinas utilizadas no Brasil foi comprovada pela própria Anvisa, um órgão federal.
Bolsonaro não se vacinou nem vai se vacinar e tem se posicionado radicalmente contra o passaporte da vacina proposto por diversos governos do mundo para controlar a pandemia. “Jamais vou exigir o passaporte da vacina de vocês”, prometeu a seus apoiadores no “cercadinho” do Palácio da Alvorada na semana passada. Ele costuma assustar as pessoas dizendo que os efeitos colaterais da vacina são “enormes” e recentemente, sem nenhuma evidência, associou a embolia pulmonar sofrida pelo deputado Hélio Lopes ao imunizante.
Quando Bolsonaro fala contra as vacinas, não se trata de desinformação, teimosia, ignorância ou de “defender a liberdade individual”, como ele diz, e sim parte de uma estratégia de manipulação de massas direcionada sobretudo aos evangélicos, a fatia da população que menos crê em vacinas
Por que o presidente faz isso? Apenas porque é ignorante, anticiência e negacionista? Porque “é melhor perder a vida do que a liberdade”, como ele costuma dizer e seu ministro da Saúde repetir? Nada disso. Bolsonaro ataca a vacina porque sabe que entre os evangélicos a descrença nos imunizantes é percentualmente maior do que entre o resto da população, e essa é uma forma de manipulá-los e mantê-los engajados em sua cruzada insana.
A relação entre religião e o movimento antivacinas ainda não está bem estudado no Brasil, mas nos EUA uma pesquisa divulgada em setembro pela Pew Research mostrou que, apesar de alguns antivacina se identificarem como “liberais” ou “progressistas”, a maioria dos que têm reagido de maneira furiosa às vacinas contra a Covid-19 são brancos fundamentalistas evangélicos de extrema direita. Os ateus, ao contrário, têm os maiores índices de vacinação.
De acordo com a pesquisa, 90% das pessoas dos EUA que se identificam como ateus foram vacinados contra a Covid-19, contra apenas 57% dos fundamentalistas evangélicos brancos. Até o momento, cerca de 73% dos norte-americanos foram vacinados com pelo menos uma dose da vacina e 60% integralmente. A diferença entre brancos e negros vacinados, que era grande no começo, caiu, e hoje o índice é praticamente idêntico: aproximadamente 70% dos negros receberam pelo menos uma dose da vacina, contra 72% dos brancos.
É preciso que se diga que a imunização entre os afro-americanos cresceu justamente porque algumas igrejas evangélicas da comunidade negra fizeram um trabalho de conscientização para a necessidade da vacina. Mas a pesquisa da Pew indica que os antivacina nos EUA têm um perfil padrão: são brancos, de extrema direita, abertos a teorias de conspiração e são seguidores fanáticos do ex-presidente Donald Trump.
Em março, o Datafolha mostrou que quase a metade dos evangélicos do país, ou 46% deles, não temem ou temem pouco serem infectados pela Covid-19, contra 32% dos católicos. E, enquanto 6% dos católicos rejeitavam a vacina, entre os evangélicos este índice era de 14%. Em maio, uma nova pesquisa do instituto mostrou que só 20% dos evangélicos tinham se vacinado, contra 31% dos católicos. Entre os católicos, 5% disseram que não iriam se vacinar e não pretendiam, mas entre os evangélicos este número dobrava (10%).
Nos EUA, uma pesquisa mostrou que, apesar de alguns antivacina se identificarem como “liberais” ou “progressistas”, a maioria dos que têm reagido de maneira furiosa às vacinas contra a Covid-19 são brancos fundamentalistas evangélicos de extrema direita, seguidores fanáticos de Donald Trump
Uma pesquisa da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações) mostrou que é entre os evangélicos do país que mais cresce a desconfiança em relação às vacinas: 19% declararam-se incertos quanto à segurança dos imunizantes; no restante da população a desconfiança nas vacinas está bem abaixo, entre 11% e 12%. Mas esta pesquisa é anterior à pandemia. É possível que esta diferença seja ainda maior. A SBIm promoveu em outubro um debate sobre hesitação vacinal, uma das 10 ameaças globais à saúde, segundo a OMS.
No Brasil, uma das explicações para esta hesitação é o impacto das fake news sobre a população: de acordo com o levantamento, 7 em cada 10 brasileiros acreditam em alguma mensagem errada ou falsa sobre a vacinação. Estas mentiras influenciaram diretamente na decisão do brasileiro de se vacinar ou de levar alguma criança para tomar a vacina. Segundo a pesquisa, 13% da população brasileira deixaram de se vacinar por conta de uma informação falsa, ou mais de 21 milhões de pessoas.
O jornalista científico Carlos Orsi, no artigo Religião, Vacinas e o Fim dos Tempos aponta 2014 como o ano de início da rejeição dos evangélicos brasileiros às vacinas, com o lançamento, pela presidenta Dilma Roussef, da campanha de vacinação contra a HPV. Segundo Orsi, foi “a primeira tentativa moderna de mobilizar o sentimento religioso contra vacinas”. “A associação espúria entre sexualidade e a vacina contra HPV, que previne câncer do colo do útero, acabou convencendo pais religiosos conservadores, católicos e evangélicos, a evitar aplicar a vacina nas filhas”, diz o jornalista.
“A polêmica na época gerou um clima de incerteza a respeito da vacina, que desencadeou casos de doença psicogênica – quando a tensão emocional causada pelo receio da vacina assume a forma de sintomas físicos como convulsões ou paralisia – e abriu caminho para a criação do primeiro grupo formal antivacinas do Brasil, estabelecido em 2020.”
Hoje com quase 6 mil membros no facebook, este grupo contrário à vacina contra o HPV se transformou, na era Bolsonaro, em negacionista da vacina contra a Covid-19, inclusive utilizando a tese da “marca da Besta” que circula entre os evangélicos dos EUA. No Apocalipse de João, o fim dos tempos é precedido pela chegada ao poder de um tirano que exige “um sinal na sua mão direita ou na sua testa”.
Religião e fake news são ingredientes fundamentais do caldeirão da extrema direita em toda parte, e a anticiência associada à vacina caiu para eles como uma luva em tempos de coronavírus. Há notícias de que o negacionismo de Steve Bannon foi exportado dos EUA para sabotar países onde o combate à pandemia foi mais bem sucedido, como a Nova Zelândia, que passou a ter enormes protestos contra a vacina e contra o isolamento nos últimos meses. No Rio, na semana passada, manifestantes contra o passaporte da vacina tentaram invadir a Alerj.
A extrema direita religiosa está liderando o movimento antivacinas em vários países. No Brasil, missionários evangélicos bolsonaristas tentam convencer indígenas a não se vacinarem porque “o imunizante os transformaria em animais, homossexuais ou os mataria” e que “neles seria implantado um chip que carregaria a ‘marca da Besta'”. Em alguns países da África, como o Zimbábue, pastores neopentecostais convencem os fiéis de que já estão protegidos por eles e não precisam de vacina.
Portanto, quando Bolsonaro fala contra as vacinas, sobretudo em igrejas, não se trata de desinformação, teimosia, ignorância ou de “defender a liberdade individual”, como ele diz, e sim de uma estratégia de manipulação de massas direcionada sobretudo aos evangélicos. É tudo friamente calculado para manter os apoiadores engajados e dispostos a reagir de forma violenta, irracional e impregnada de fanatismo. Puro suco de bolsonarismo na veia.
Com informações do Alternet
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