Silvio Tendler: "estamos descomemorando o golpe"
Na semana da estreia de suas séries televisivas de descomemoração do golpe, Tendler fala da "descafeinização" da ditadura pelo cinema político brasileiro.
Dario Pignotti e Léa Maria Aarão Reis
"Sou um cidadão feliz porque faço
cinema pelo prazer de filmar, contar histórias e participar ativamente
da história do meu país." Este ano, Tendler se prepara para filmar Poema sujo, de Ferreira Gullar, depois da maratona de lançamentos de seus mais recentes e inéditos documentários, este mês, para "descomemorar", como observa, os 50 anos do golpe civil-militar no país.
Na tarde em que conversamos com o cineasta, trazendo as perguntas do jornalista argentino Dario Pignotti, Silvio chegava da aula de abertura do ano letivo de 2014 da PUC-Rio onde exibira, para seus alunos, o documentário Militares da democracia:os militares que disseram não. O diretor Noilton Nunes, autor da cinebiografia de Tendler, A arte do renascimento, estava presente e relata:
"O que vi e ouvi na tela? Vi e ouvi como foi formatado o golpe militar de 64 através dos sentimentos de pessoas, de gente, de homens e mulheres que tentaram impedir que o Brasil e os brasileiros sofressem aquela vergonhosa noite da ditadura."
Na tarde em que conversamos com o cineasta, trazendo as perguntas do jornalista argentino Dario Pignotti, Silvio chegava da aula de abertura do ano letivo de 2014 da PUC-Rio onde exibira, para seus alunos, o documentário Militares da democracia:os militares que disseram não. O diretor Noilton Nunes, autor da cinebiografia de Tendler, A arte do renascimento, estava presente e relata:
"O que vi e ouvi na tela? Vi e ouvi como foi formatado o golpe militar de 64 através dos sentimentos de pessoas, de gente, de homens e mulheres que tentaram impedir que o Brasil e os brasileiros sofressem aquela vergonhosa noite da ditadura."
"Os militares que disseram não é um filme que precisa chegar imediatamente aos olhos ouvidos, corações e mentes de todos os brasileiros. De todos os militares, de todos os políticos, de todos os professores, de todos os estudantes, de todas as empregadas, de todas as donas de casa, de todos os jornalistas, de todos os presidiários, de todos os manifestantes."
"É hora de voltarmos aos pilotis das PUCs e dos campus de todas as universidades do país e exibirmos nossos filmes. Não podemos ficar esperando a boa vontade, a boa educação, a boa consideração de mais ninguém. Voltemos àqueles momentos em que meia dúzia de jovens chegava lá, nos pilotis, sem pedir licença ou autorização a ninguém, nos anos 70, durante os anos de chumbo, anos de prisões, sequestros, assassinatos, e instalavam um projetor 16milímetros, esticavam uma tela de lençol velho amarrada por cordas nos pilotis, exibiam, passavam um curta, dois, três... e fugiam antes da polícia chegar..."
Às perguntas:
Dario Pignotti: Sem o olhar de um crítico, mas de apenas um apaixonado pelo cinema político, assisti a três filmes de temas similares – o sequestro político - em Estado de Sítio, de Costa-Gavras, de 1972, Buongiorno notte, de Marco Bellochio, de 2003 e O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto, de 1997. Está certa a percepção de que o olhar de Barreto de alguma maneira despolitizou essa operação guerrilheira enquanto as duas outras produções não caíram nesta descafeinização do relato?
Dos
três, gosto apenas do filme do velho mestre, Costa-Gavras. Não gosto do
filme do Bellochio. Já conversamos sobre isto, e Bellochio me explicou
que não era um filme para ele dirigir. O diretor escalado na hora não
quis fazê-lo, e o produtor pediu que Marco o fizesse.
Vi outro, muito bom, sobre sequestro de Moro, Il caso Moro, de Giuseppe Ferrara, com Gian Maria Volonté, que responsabiliza o PCI (Partido Comunista Italiano) e a DC (Democracia Cristã). Não quiseram negociar com as Brigadas Vermelhas. A DC queria um herói. Houve um cartaz de Moro (ele ainda estava vivo) e a DC cristã mostrava sua imagem como se estivesse morto. Os dirigentes da DC dizendo: 'já temos nosso heroi.' Precisavam de um heroi.
E o filme do Bruno?
Vi outro, muito bom, sobre sequestro de Moro, Il caso Moro, de Giuseppe Ferrara, com Gian Maria Volonté, que responsabiliza o PCI (Partido Comunista Italiano) e a DC (Democracia Cristã). Não quiseram negociar com as Brigadas Vermelhas. A DC queria um herói. Houve um cartaz de Moro (ele ainda estava vivo) e a DC cristã mostrava sua imagem como se estivesse morto. Os dirigentes da DC dizendo: 'já temos nosso heroi.' Precisavam de um heroi.
E o filme do Bruno?
Também
não gosto do filme do Bruno. Ele não é uma pessoa ligada à política.
Despolitizou a questão, escolheu um elenco bem mais ligado à comédia que
ao drama. Todos, na plateia, quando vêem o Pedro Cardoso assaltando um
banco, caem na gargalhada. Cardoso é um ator reconhecidamente de
comédia.
Mas existem centenas de filmes políticos de ficção brasileiros, excelentes. Começo com O bom burguês e os da Lucia Murat. São tão bons como o do mestre Costa-Gavras. Eles não usam black-tie é obra-prima. Os inconfidentes, de Joaquim Pedro, de 1972, da fase mais cruenta do regime. Ele pega o Romanceiro da Inconfidência, da Cecília Meireles, e faz um filme maravilhoso sobre a inconfidência, mas na verdade fala daquele momento que o Brasil está vivendo. A lição de moral de Inconfidentes: os que são considerados terroristas hoje serão os heróis de amanhã. Joaquim Pedro tinha toda razão.
Agora, por exemplo, [com Os militares que disseram não] estamos descomemorando o golpe; não estamos revelando a história. Estamos desvelando a história, tirando o véu que cobre a história para falar a verdade. Então, temos muitos filmes que foram feitos durante a ditadura, depois da ditadura e falam da realidade brasileira. Mas como não temos um organismo que se ocupe da nossa memória a partir do cinema - a Ancine lava as mãos - não temos história, e os filmes vão morrendo, vão se estragando, até alguém, de alguma família, conseguir um pouco de recurso para recuperar a cópia de um filme de autor. Mas não temos conseguido construir uma história do cinema brasileiro com direito a acesso às cópias dos filmes. Não temos continuidade histórica.
CM: Relaciona este desinteresse à Lei da (auto)Anistia?
Mas existem centenas de filmes políticos de ficção brasileiros, excelentes. Começo com O bom burguês e os da Lucia Murat. São tão bons como o do mestre Costa-Gavras. Eles não usam black-tie é obra-prima. Os inconfidentes, de Joaquim Pedro, de 1972, da fase mais cruenta do regime. Ele pega o Romanceiro da Inconfidência, da Cecília Meireles, e faz um filme maravilhoso sobre a inconfidência, mas na verdade fala daquele momento que o Brasil está vivendo. A lição de moral de Inconfidentes: os que são considerados terroristas hoje serão os heróis de amanhã. Joaquim Pedro tinha toda razão.
Agora, por exemplo, [com Os militares que disseram não] estamos descomemorando o golpe; não estamos revelando a história. Estamos desvelando a história, tirando o véu que cobre a história para falar a verdade. Então, temos muitos filmes que foram feitos durante a ditadura, depois da ditadura e falam da realidade brasileira. Mas como não temos um organismo que se ocupe da nossa memória a partir do cinema - a Ancine lava as mãos - não temos história, e os filmes vão morrendo, vão se estragando, até alguém, de alguma família, conseguir um pouco de recurso para recuperar a cópia de um filme de autor. Mas não temos conseguido construir uma história do cinema brasileiro com direito a acesso às cópias dos filmes. Não temos continuidade histórica.
CM: Relaciona este desinteresse à Lei da (auto)Anistia?
Relaciono
ao desinteresse mesmo de conhecer o Brasil, de respeitar a cultura
brasileira. O Ministério da Cultura falha nesse aspecto e seus órgãos
subordinados idem. Não temos a permanência da circulação dos bens
culturais no Brasil.
Dario: Desde A História oficial, de Luiz Puenzo, de 1985, até A infância clandestina, de Benjamin Avila, de 2012 foram produzidos vários filmes argentinos sobre a ditadura militar. Há uma continuidade estética e de enfoque, específicos, neles. Podemos considerar estas produções como parte de um gênero cinematográfico particular?
Dario: Desde A História oficial, de Luiz Puenzo, de 1985, até A infância clandestina, de Benjamin Avila, de 2012 foram produzidos vários filmes argentinos sobre a ditadura militar. Há uma continuidade estética e de enfoque, específicos, neles. Podemos considerar estas produções como parte de um gênero cinematográfico particular?
O
casamento do cinema com a história - eu considero a política um ramo da
história – é tão antigo como o próprio cinema. O gênero existe desde
que o cinema é cinema. Se você pegar filmes norte-americanos, A conquista do oeste, por exemplo, é uma maneira de ler cinematograficamente a colonização. O nascimento de uma nação,
do Griffith, 1912, é um filme histórico. É racista, chama os negros de
assassinos e estrupadores para justificar toda uma repressão. É
político.
Dario: Uma parte dos jovens diretores argentinos se formou em universidades ou escolas de cinema públicas. Esta circunstância contribui para a politização dos diretores?
Dario: Uma parte dos jovens diretores argentinos se formou em universidades ou escolas de cinema públicas. Esta circunstância contribui para a politização dos diretores?
Acho
que a universidade privada pode formar bons profissionais, e acho que a
universidade pública dá uma maior consciência da razão de ser pública.
Aproveitando o mestre Milton Santos, que é personagem de um filme meu,
ele defende a presença do Estado na educação, a presença do Estado que
dá a possibilidade da educação ser mais democrática do que a privada.
No Brasil há algumas escolas públicas que formam bons cineastas. A Escola de Comunicações e Artes, de São Paulo, a Universidade Federal Fluminense. Em Minas se formam bons profissionais, há grandes escolas. A UFRJ é surrealista: não forma cineastas. Não tem um curso de cinema. A universidade pública, neste sentido, tem um viés mais privilegiado que o da escola particular.
CM: Você acha que, portanto, a produção de filmes políticos brasileiros entra no quadro de marginalização que descreveu antes?
Ela é segregada e marginalizada. Morre asfixiada porque não tem espaço público para circular. São poucas as sessões ofertadas ao documentário, aos filmes políticos. E lembre: em um país com a dimensão do Brasil, quantos municípios têm sala de cinema? E porque não se contabiliza o público que assiste filmes no cineclube, nos centros culturais, na laje, na escola, na universidade?
Só se contabiliza bilheteria de filme passado em sala de cinema, ingresso padronizado e com código de barras. O cidadão deixou de ser tratado como cidadão e passou a ser tratado como consumidor. Não se mede mais bilheteria pelo número de espectadores com interesse de ver determinado filme, mas sim como os norte-americanos gostam: o sucesso de um filme hoje se mede pela bilheteria que ele faz. O cinema passou a ser um fator comercial. Não um fator de circulação cultural. Esta é a nossa diferença da Argentina.
No Brasil há algumas escolas públicas que formam bons cineastas. A Escola de Comunicações e Artes, de São Paulo, a Universidade Federal Fluminense. Em Minas se formam bons profissionais, há grandes escolas. A UFRJ é surrealista: não forma cineastas. Não tem um curso de cinema. A universidade pública, neste sentido, tem um viés mais privilegiado que o da escola particular.
CM: Você acha que, portanto, a produção de filmes políticos brasileiros entra no quadro de marginalização que descreveu antes?
Ela é segregada e marginalizada. Morre asfixiada porque não tem espaço público para circular. São poucas as sessões ofertadas ao documentário, aos filmes políticos. E lembre: em um país com a dimensão do Brasil, quantos municípios têm sala de cinema? E porque não se contabiliza o público que assiste filmes no cineclube, nos centros culturais, na laje, na escola, na universidade?
Só se contabiliza bilheteria de filme passado em sala de cinema, ingresso padronizado e com código de barras. O cidadão deixou de ser tratado como cidadão e passou a ser tratado como consumidor. Não se mede mais bilheteria pelo número de espectadores com interesse de ver determinado filme, mas sim como os norte-americanos gostam: o sucesso de um filme hoje se mede pela bilheteria que ele faz. O cinema passou a ser um fator comercial. Não um fator de circulação cultural. Esta é a nossa diferença da Argentina.
Créditos da foto: Henrique Fornazin
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