Eram os anos 70, em
plena ditadura militar. As Forças Armadas, desgastadas, tentavam passar para a sociedade
uma imagem menos rude. Promoviam, por exemplo, atividades esportivas para
comemorar o Dia do Trabalhador, contrapondo-se às manifestações de protesto
contra o regime ditatorial.
A Aeronáutica foi além:
organizou um festival de música, cujo tema único era Santos Dumont. Zé Katimba
e Jorginho, ambos da Imperatriz Leopoldinense, inscreveram um samba que falava
de liberdade. “O público delirava. Ganhamos nota 10. Mas, aí os milicos,
bastante contrariados, disseram que ainda tinham de ouvir um outro corpo de
jurados formado só por militares. Aí, nos roubaram o primeiro lugar. A música
só pôde ser gravada anos depois. Mesmo assim, queriam mudar a letra, mas o Katimba
não aceitou”, lembra bem Jorginho.
De outra vez, Katimba
e Jorginho foram proibidos de cantar no
Teatro Teresa Raquel, numa roda de samba que reunia estudantes, intelectuais de
esquerda e sambistas simpáticos ao movimento popular de resistência ao golpe de
1964. Entre outros versos, a letra falava: “Ontem, senzala / Hoje,
cortiço / Ontem, chibata / Hoje, fuzil / Ontem, quilombo / Hoje, sapê / Tanta
injustiça que não tem razão de ser / Tanta injustiça que tentaram esconder”.
A esquerda, de certa
maneira, não tinha consenso sobre a melhor forma de atuação política para
combater a ditadura: luta armada ou criação de bases populares. O Partidão
optou pela inserção nas comunidades, apostando na mobilização política popular.
“Comecei minha
militância na Leopoldina pelo Partidão quando tinha 16 anos de idade. Eu era da
Ala dos Estudantes da Imperatriz. Desfilei pela primeira vez em 65. Alguns
diretores da escola não nos viam com bons olhos. Na verdade, desconfiavam
politicamente da gente. É como se dissessem: ‘Esses garotos estão com outras intenções!”,
conta o hoje médico Jorge Luiz Ramos Teixeira, o Jorginho, sócio-proprietário
número 3 da Imperatriz.
“O presidente da
época era o Nonoca. A gente estava na campanha eleitoral do Lisâneas Maciel,
que era o nosso candidato a deputado federal pelo antigo MDB. Certa vez, nós o
levamos para um samba na quadra. Ele era convidado da Ala dos Estudantes, quer
dizer, um convidado da escola, mas Nonoca não quis saber e recusou-se a liberar
uma mesa para o Lisâneas. Aí o Katimba armou uma mesa pra gente.” Katimba, com
prestígio na escola e essencialmente catimbeiro, resolveu bancar os estudantes,
viabilizando o funcionamento da ala. Acertou, então, que os meninos se
reuniriam num espaço que servia de depósito das peças da bateria – local ideal
para quem estava na clandestinidade política.
“Estávamos vivendo um
momento altamente tenso na política brasileira. Muitos companheiros caíram,
foram torturados e mortos; outros tiveram que entrar na clandestinidade. Nós
estávamos do lado de fora dos porões da ditadura fazendo o nosso trabalho de
resistência e de convencimento contra o regime. A ala era ligada ao PCB e
recebia dirigentes clandestinos nas noites de samba, sem chamar a atenção da
polícia”, revela Jorginho.
Com a decretação do
Ato Institucional nº 5 – o AI-5, de 13 de dezembro de 1968 –, mais da metade da
Ala dos Estudantes entrou para a corrente política DG-PCB, um grupo que colaborava
com as ações armadas. “Uma parte da ala foi presa, outra caiu na
clandestinidade e tinha ainda um outro grupo que continuou na Imperatriz como
sambista e comunista”, lembra Jorginho. “No trabalho nas comunidades, o Katimba
ajudava na distribuição do jornal do Partido, a Voz Operária. Certa ocasião, as
portas do prédio onde eu morava e do prédio onde Katimba morava amanheceram
pintadas de amarelo com a inscrição ‘eles não voltarão’, numa referência à
volta dos companheiros de esquerda que haviam se afastado da área.
Logo após a Anistia,
decretada em 1979, surgiu o bloco Sai na Moita, que abrigava vários anistiados
políticos. Ironia do destino: quem também saía nesse bloco era o Nonoca, aquele
presidente da Imperatriz que tentou barrar a garotada da Ala dos Estudantes.
Literalmente, tudo acabou em samba.
*Quero aqui parabenizar Zé Katimba, Jorginho e vários outros sambistas
que, ao longo dos tempos, colocam a sua arte na luta por uma vida melhor.
Ditadura nunca mais!
Fernando Paulino
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