A Petrobras e a falácia da austeridade fiscal |
Muito tem sido comentado, ao longo dos últimos dias, a respeito dos inúmeros equívocos cometidos pelos dirigentes da Petrobrás no “affaire” associado à compra da refinaria em Pasadena, nos EUA. Apesar de ter sido um negócio que foi concluído lá atrás em 2006, os desdobramentos derivados daquela primeira ação da polêmica aquisição, iniciada durante o primeiro mandato do Presidente Lula, ainda estão se fazendo sentir.
É bem verdade que há vários indícios sugerindo que o dossiê não chegou bem amarrado para deliberação pelos membros do Conselho de Administração. Aliás, como costuma acontecer com a maioria dos pontos constantes das pautas das reuniões desse tipo de colegiado. Exatamente por isso, cabe aos integrantes do colegiado superior à diretoria zelar para que decisões estratégicas e envolvendo valores expressivos e questões sensíveis sejam sempre objeto de maior debate e esclarecimento.
Em tese, parte da argumentação inicial apresentada pelos responsáveis da Petrobrás se justifica. Naquele momento, as descobertas das reservas do Pré Sal ainda não estavam na ordem do dia. O ritmo de crescimento de nossa economia apontava para uma incapacidade de atender a demanda de energia fóssil, contando apenas com a produção nacional. O Brasil entrava no terreno perigoso da dependência de importações para suprir nossas necessidades internas de petróleo e de seus derivados. Na matriz apresentada pela empresa estatal, fazia sentido ampliar a busca de refino de um tipo especial de combustível – conhecido como “óleo pesado” - no exterior, pois nossa maior capacidade instalada internamente era assentada com prioridade para as operações de refino a partir do chamado “óleo leve”. Na busca das alternativas de unidades fabris à venda pelo mundo, eis que surge a opção da empresa de Pasadena.
Pasadena: o histórico das trapalhadas
E aqui, ao que tudo indica, começam os problemas. A empresa havia sido comprada um ano antes, por um conhecido magnata dos negócios internacionais, o belga Barão Albert Frère, pelo valor de US$ 42,5 milhões. O milionário é dono do grupo Astra, que efetuou investimentos de modernização da ordem de US$ 80 milhões e logo em seguida apresentou uma proposta de negócio à Petrobrás. A oferta era que ela comprasse o equivalente a 50% do valor da empresa por US$ 190 milhões. Se nada mais houvesse, os relatórios financeiros consideravam o valor adequado à realidade do mercado petroleiro naquele momento.
Ocorre que o contrato previa dois pequenos “detalhes” que viriam a se tornar a pedra de toque para a felicidade do Barão e o conseqüente o prejuízo da Petrobrás e de nosso País. Enfim, dispositivos cruciais que não poderiam nunca ter passado batido por quem decide esse tipo de operação. Havia uma cláusula que mencionava uma rentabilidade anual mínima muito elevada (6,9%) para a performance da empresa sob nova direção, controlada desde então pela parceria belgo-brasileira. Outro pequeno inciso determinava que, caso houvesse desentendimento entre os novos sócios, os 50% restantes seriam vendidos obrigatoriamente ao outro parceiro.
Esse foi o pulo do gato para o espertalhão Frère: como a rentabilidade prevista não foi alcançada e juntando outros argumentos menores de divergência de gestão estratégica, ele praticamente empurrou a compra de sua parte. Coitadinho, como estava insatisfeito, queria agora se desfazer do ‘mau” negócio. Mas como havia um processo de valorização do empreendimento e dos negócios do petróleo em geral, a Petrobrás teria que pagar uma quantia muito elevada por sua parte. Por orientação da então Ministra da Casa Civil Dilma Roussef, a empresa brasileira recusou-se a cumprir o previsto nas cláusulas malandras do contrato e a questão foi parar na justiça norte-americana. A sentença final deu ganho de causa aos belgas e a eles receberam um valor ainda maior do que o pleiteado fora das cortes - US$ 820 milhões.
Por outro lado, sobreveio a crise econômica nos Estados Unidos e no cenário internacional, com imensa desvalorização dos ativos industriais. No ambiente interno brasileiro, a boa novidade veio com as descobertas do Pré Sal. A Petrobrás não mais seria compelida a buscar refino lá fora. Mas o resumo da ópera aponta para um belo equívoco em que terminou por se converter a operação Pasadena. Tivesse tal trapalhada ocorrido no período anterior a 2003, com toda a certeza não haveria tamanha complacência por parte dos dirigentes do PT para com o descaso conferido aos recursos públicos.
Austeridade fiscal apenas para os gastos sociais
Mas esse “imbróglio” todo oferece também uma perspectiva muito cristalina a respeito da maneira como é tratada tão propalada “austeridade da política fiscal” em nossas terras. O governo tem enchido a boca para manifestar ao chamado mercado, sempre de forma muito séria e solene, suas mais nobres intenções em assegurar a obtenção da meta do superávit primário. Como sabemos, trata-se tão somente de um nome belo e pomposo para a verdadeira política de reduzir gastos públicos nas áreas sociais e de investimento. O objetivo real é a drenagem de recursos orçamentários livres para o pagamento de juros e demais serviços financeiros da dívida pública.
Afinal, essa tem sido uma das pernas do chamado tripé da política econômica, em vigor desde a época do Plano Real, implantado há vinte anos atrás. Tendo apresentado metas anuais que podem ter variado em torno de 3% do PIB na maior parte do longo período, essa política significou uma drástica redução na capacidade do Estado brasileiro em desenvolver suas funções previstas nos próprios dispositivos constitucionais. Apenas no período mais recente foram introduzidas algumas modificações de natureza metodológica, com a intenção de prover um mínimo de recursos para o governo conseguisse implementar algumas políticas anti-cíclicas, em razão da crise financeira internacional.
Não por acaso, inclusive, esse período tem sido marcado por um recrudescimento das medidas de concessão e de outras modalidades travestidas de privatização, em razão do estrangulamento de recursos financeiros para que o setor público consiga atuar diretamente no provimento de serviços públicos em áreas tão diversas, como saúde, educação, previdência social, transportes, infra-estrutura e outras.
As áreas de controle do gasto público são chamadas, a todo momento, a justificar as razões de cortes expressivos em setores essenciais da administração pública, inclusive de áreas consideradas estratégicas para o governo, a exemplo das obras do próprio PAC. Por outro lado, o governo abre sua caixa de benesses e bondades para o grande capital, oferecendo todo o tipo de isenção e desoneração tributária, sem nenhuma exigência de contrapartida para serem cumpridas pelas empresas aquinhoadas.
Recursos públicos para o capital privado não têm limite
Além disso, o próprio caso da Petrobrás retira completamente o véu da disparidade com que são tratadas as verbas federais. Quando se trata de recursos orçamentários vinculados ao mundo dos negócios e da acumulação de capital, o céu é o limite. São os créditos subsidiados pelo Tesouro Nacional, são os empréstimos generosos oferecidos pelo BNDES às aventuras irresponsáveis de Eike Batista e seus comparsas, são os planos de anistia tributária para os sonegadores e maus pagadores do fisco, sob o nome pomposo de REFIS. Ou seja, o discurso da austeridade fiscal tem a aparência do rigor e da inflexibilidade. Porém, por trás essa máscara, surge a facilidade com que o gasto público irresponsável se mantém para os interesses do grande capital privado, que também se beneficia indiretamente do investimento público.
Quando o debate se situa na necessidade de se rever as políticas restritivas na área social, o argumento esgrimado de imediato faz menção à famosa ausência de recursos. E o governo conclama todos a oferecerem sua cota de sacrifício em nome da estabilidade econômica. É o caso da negativa à antiga reivindicação de se corrigir a enorme injustiça perpetrada à época de FHC, quando reduziu as aposentadorias e pensões do INSS, por meio do famigerado fator previdenciário. É também o caso da rejeição à proposta antiga de alocação de recursos orçamentários para a Saúde, com o objetivo de evitar a continuidade do desmonte do SUS. É igualmente o caso dos obstáculos antepostos à proposta de incluir no Plano Nacional de Educação a menção explícita de um percentual de 10% do PIB para o sistema de ensino público. Necas de pitibiriba! Não há verbas disponíveis, o orçamento está apertado. E ponto final!
De outro lado, o que se vê ao longo do exercício são as ações do um verdadeiro dragão da maldade. O Tesouro Nacional obteve respaldo para promover todo o tipo de corte, aqui e ali, retirando migalhas e valores expressivos de projetos sociais importantes. Ao mesmo tempo, valores bilionários mal aplicados escapam ao debate e não freqüentam as páginas das editorias de economia. Desde as trapalhadas injustificáveis de Pasadena até o rombo de mais de uma centena de bilhões de reais que sai, a cada ano, pelo ralo da conta de juros, para alimentar o caixa das instituições do financismo.
Esses números e tais diferenças de tratamento falam por si só a respeito de quais são as verdadeiras prioridades do governo em termos de suas políticas públicas.
(*) Economista e militante por um mundo mais justo em termos sociais e econômicos
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