A imposição do medo à maioria da população
Fonte:
PCB
Autor: Cátia Guimarães
Publicamos a seguir entrevista concedida pela historiadora Virgínia Fontes (*) à jornalista Cátia Guimarães (EPSJV/Fiocruz).
Respondendo a três
perguntas de análise de conjuntura do Portal EPSJV, ela identifica tanto
causas econômicas quanto movimento de autopreservação nas posições que o
grande empresariado e partidos da oposição têm assumido na crise
política.
O que está acontecendo é
um processo muito complexo e que não é linear. Vamos pegar os
principais elementos. Nós temos uma crise econômica, portanto uma baixa
da taxa de lucro. Crises econômicas são normais na sociedade
capitalista. Estamos diante de uma crise capitalista que tem relação com
a burguesia brasileira mas ela não justifica alguma coisa do que está
acontecendo aqui. O segundo ponto importante de se levar em conta é que
provavelmente existe uma briga inter-burguesa, embora na imprensa
burguesa mais direta isso não apareça. Alguns leram essa briga
inter-burguesa como sendo a oposição entre burguesia industrial e
financeira ou uma burguesia mais brasileira contra a imperialista. Eu
não concordo. Provavelmente a briga que está acontecendo agora é o que
eu chamaria de briga de cachorro grande. Desde os governos Fernando
Henrique e continuando nos governos Lula, houve impulso e apoio para
concentração e centralização do capital no Brasil. Com as privatizações
do governo Fernando Henrique, com a legislação para exportação de
capitais do governo Fernando Henrique e depois com a atuação do BNDES
para montar as campeãs nacionais no governo Lula. É preciso lembrar que o
BNDES no governo FHC também financiou a privatização com moeda podre.
Portanto, nós temos órgãos de Estado agindo no sentido de consolidar
burguesias de alta potência desde o início dos anos 1990. Estimular
concentração e centralização do capital significa que esse capital
precisa se reproduzir para dentro e para fora. Essas empresas se
converteram em multibrasileiras. E, como acontece com as multi em
qualquer lugar do mundo, isso significa enfrentar tensões políticas para
fora e ser capaz de acalmar para dentro. O que está acontecendo no
Brasil? Tudo indica que a tensão burguesa hoje é de escala: massa de
burguesia de menor escala, num momento de crise, briga com as suas
congêneres maiores. E briga pelo que tem de política pública. Não briga
contra a corrupção, ela quer um pedaço para ela. Porque o problema do
Brasil não é corrupção, o problema é o funcionamento regular do Estado,
que é podre, porque a burguesia está dentro do Estado. Tem que controlar
a corrupção, mas ninguém nunca vai controlar a corrupção se é a própria
burguesia que determina o que a política pública vai fazer. Portanto,
essa briga de escala é bastante silenciada, mas expressa uma série de
outras tensões para as quais a gente não está dando atenção.
Vamos pegar dois pontos. Quem hoje a Fiesp representa?
A Fiesp saltou da
posição de suporte e participação no governo Dilma para a defesa do
impeachment e da renúncia. É a Fiesp ainda representante de todo o
conjunto da burguesia brasileira? Não sei. Não sabemos. Uma parcela
dessa burguesia provavelmente não está encontrando na Fiesp o seu ponto
de sustentação. E eu ouso dizer que há uma questão regional na disputa
interburguesa entre o paulistocentrismo e as grandes burguesias que
foram se construindo no agro, na indústria e na mineração, e que não
necessariamente estão centradas só em São Paulo. Portanto, tensão
interna da burguesia tem. Essa burguesia toda se beneficiou dos governos
Lula. Ora, montar uma multi é abrir área de tensão com os aliados. É
abrir brigas muito maiores entre grandes empresas. É lidar como
imperialista com os imperialistas. Mas não há estofo na burguesia
brasileira para sustentar isso em situação de crise. Porque teria de
sustentar duas coisas: o Estado como garantidor da política para fora e o
apaziguamento para dentro para que isso consiga acontecer. Nos últimos
cinco anos, se estreitou bastante o espaço para o aumento dessas novas
multi oriundas de países capitalistas mais recentes, como os BRICS.
Portanto, a briga de cachorro grande ficou sem sustentação interna.
Marcelo Odebrecht foi o único que pegou 19 anos na cadeia. Terceiro
ponto de tensão nessa burguesia, e que eu não acho irrelevante: eles
estão com medo. Estão se debatendo, com medo de ser presos. Aliás, eu
acho que a frase da Fiesp é esclarecedora: "Não vamos pagar o pato". Ou
seja, eles não vão para a cadeia, vai o resto do mundo inteiro, mas eles
não. É a frase mais transparente que eu já vi do tipo 'nenhum burguês
na cadeia'. Ontem [a colunista] Monica Bergamo confirmou as minhas
suspeitas. Segundo ela, está todo mundo esperando que a aceleração no
processo da Lava Jato e um eventual término do governo Dilma, ao retirar
do foco a questão que move a operação, possa esfriar o processo da
investigação. É exatamente isso. O que se trata agora é de controlar,
essa burguesia tem medo. Como fez Fernando Henrique Cardoso controlando
com o famoso engavetador-mor da República, o Geraldo Brindeiro [1] , que
impediu todos os processos sobre a burguesia.
Como estão distribuídos os diferentes segmentos da sociedade nesse processo?
Todos esses que eu
citei são pontos de tensão na burguesia. Não dá para dizer que a classe
trabalhadora está toda homogênea aí. Porque a atuação do PT foi de
segmentação, tanto para garantir a sustentação do próprio PT quanto
quando abriu a porteira para as políticas do grande capital. A classe
trabalhadora foi segmentada, perdeu capacidade convocatória, perdeu
capacidade de mobilização porque o PT não queria mobilizar. E colocou-se
cada vez mais à disposição das tensões internas da burguesia.
Ora, o interesse do PT
para o capital era sua capacidade mobilizatória. Perdida essa
capacidade, para que serve o PT? Mas pode essa burguesia acabar com o
povo brasileiro? Não, não pode. Ela vai precisar achar outro percurso
que justifique um apaziguamento qualquer para essas massas. Quem vai ser
a nova esquerda para o capital ninguém sabe porque o que está
aparecendo até agora é só uma direita endurecida, muito truculenta,
constituída de brancos de classe média que não representam a massa da
população, mas que têm tido uma presença exacerbada tanto na mídia
quanto na rua e nas redes. Uma direita completamente desequilibrada. O
discurso que unifica tudo isso é o anticomunismo, raivoso, agressivo,
violento, absolutamente antidemocrático. Mas não tem comunismo! Quem
está fazendo comunismo aqui? O argumento é paulistocêntrico, totalmente
de São Paulo, que é a história dos [2] . Como se o PT condensasse nele
próprio todas as características de todas as esquerdas de todos os
períodos históricos na existência. E como se ele tivesse feito esse
papel, que não fez.
O que está acontecendo é
uma sequência de golpes que eu chamaria de golpes moles, gelatinosos,
mas com muita mídia – a mídia participa disso –, todos por dentro da
institucionalidade.
Qual é o papel de cada peão nesse jogo?
Eu falei de burguesia,
falei de classe trabalhadora. Agora, que partidos nós temos? Quais
partidos são efetivamente nacionais, têm uma implantação no território
nacional inteiro? Só tem dois a meu juízo: PT e PMDB. O PSDB se forma e
se consolida como um partido paulista, no máximo em aliança – e eventual
porque não consegue emplacar alianças de longa duração – com algum
estado, fundamentalmente os estados tradicionais da riqueza no Brasil:
Paraná, Rio de Janeiro, Minas Gerais, eventualmente um ou outro no
Nordeste. Não é um partido cujo desenho seja realmente de implantação
nacional. Tentou surfar nessa onda para se converter em partido
nacional, mas não conseguiu. Agora ele se dá conta de que qualquer
governabilidade passa pelo PMDB. E, portanto, os primos-irmãos PSDB/PT
vão tender a fazer a mesma coisa, a não ser que o PSDB agora aceite
virar PMDB, voltar aos braços de onde nasceu. Do ponto de vista
partidário, a configuração é dramática. O PMDB está afundado [na
corrupção] até o pescoço; o PSDB, nós sabemos que está, embora isso
esteja oculto, mas na hora em que se puxar a correia do PMDB, o PSDB
vai, como foi o PT. De novo, eles têm que ter medo. E eles estão
querendo derrubar o governo rápido para travar essa operação. Vão botar
alguma figuração bonitinha para o Sergio Moro, ele vai continuar com uma
bandeirinha prateada sacudindo na rua, fazendo algum estardalhaço, vai
ter direito a muita mídia, muito jantar, muito champanhe com
empresário.
Quais são os riscos identificáveis hoje nessa conjuntura?
Estamos assistindo a
uma redução brutal da capacidade popular de se expressar. Vivemos a
evidência da amputação que esse tempo de FHC mais governos Lula/Dilma
significou como perda de capacidade organizativa da classe por baixo. As
contradições não sumiram: a massa de trabalhadores é maior, as
condições desses trabalhadores são piores, portanto, os problemas vão
aparecer e rápido. E não tem ditadura militar que possa resolver esse
tipo de problema. Portanto, as tensões todas estão presentes. A gente
não tem partidos capazes de dar conta da expressão dessas tensões. O
PSDB está rachado em São Paulo. Estamos diante do risco de uma redução
significativa de direitos, que já está acontecendo; a consolidação de
uma força de direita, ao mesmo tempo institucionalizada e
não-institucionalizada, que não é exatamente partidária, porque não cola
só com os partidos. É como se você tivesse a revista Veja perambulando
pela rua: racismo, sexismo, discriminação social pesada, como elemento
norteador das formas sociais. Isso é dramático porque é muito
amedrontador num país já povoado de milícias e de uma polícia
completamente truculenta. Isso significa que milícias passam a ter uma
configuração ainda mais subordinada à grande propriedade e ainda menos
subordinada a qualquer elemento de legislação. Esse é um processo de
direitização que não é só político, é também social. Um processo de
direitização significa imposição do medo à maioria da população, quer
seja pela violência, pela perda de emprego, quer seja simplesmente pela
desqualificação da sua presença num lugar não desejado. Eu acho que os
riscos são altos.
Se é verdade que a
democracia é algo muito limitado — porque procura esvaziar a vida social
dos conflitos, trazendo todos para o terreno da representação —, ao
menos esse espaço para conflitos, teoricamente, ela abriria. E,
portanto, por esse espaço, você teria como aglutinar forças. Se isso é
agora eliminado pelo judiciário, pela mídia e por uma espécie de
conjugação de partidos que capturam, eliminam e invertem a expressão
real do voto, isso significa que os espaços estão fechados. É uma
ditadura? Institucionalmente, não. Na prática, é uma ditadura do capital
de forma muito brutal. Isso não significa que as contradições estejam
controladas, portanto essas lutas vão aparecer, mas agora vão ter que se
defrontar com uma direita que ganhou espaço, ganhou fôlego, ganhou
gordura nesses últimos tempos. Só participando desse processo de
enfrentamento é que a gente vai poder saber.
NR
[1] Geraldo Brindeiro : Antigo procurador-geral da república (1995-2003), conhecido como "Engavetador-Geral da República" porque dos 626 inquéritos criminais que recebeu, engavetou 242 e arquivou outros 217. Somente 60 denúncias foram aceites. As acusações recaíam sobre 194 deputados, 33 senadores, 11 ministros e quatro ao próprio presidente Fernando Henrique Cardoso.
[2] Petralhas: neologismo lançado por um jornalista da revista reaccionária Veja para fundir as expressões Partido dos Trabalhadores (PT) e Irmãos Metralha.
[*] Coordenadora do Programa de Pós-graduação da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz e professora da Universidade Federal Fluminense. O seu livro O Brasil e o capital-imperialismo pode ser descarregado aqui .
O original encontra-se em pcb.org.br/portal2/10663
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