Fica difícil afastar a percepção de que o carnaval conservador saltou para a dispersão sem passar pela apoteose. O cheiro de cinzas no ar é inconfundível.
por Saul Leblon, na Carta Maior
Como parte interessada, a mídia jamais reconhecerá no fato o seu alcance: mas talvez o Brasil tenha assistido nesta 5ª feira a uma das mais duras derrotas já sofridas pelo conservadorismo desde a redemocratização.
Quem perdeu não foi a ética, a lisura na coisa pública ou a justiça, como querem os derrotados.
A resistência conservadora a uma reforma política, que ao menos dificultasse o financiamento privado das campanhas eleitorais, evidencia que a pauta subjacente ao julgamento da AP 470 tem pouco a ver com o manual das virtudes alardeadas.
O que estava em jogo era ferir de morte o campo progressista.
Não apenas os seus protagonistas e lideranças.
Mas sobretudo, uma agenda de resiliência histórica infatigável, com a qual eles seriam identificados.
Ela foi golpeada impiedosamente em 54 e renasceu com um único tiro; foi golpeada em 1960 e renasceu em 1962; foi golpeada em 1964, renasceu em 1988; foi golpeada em 1989, renasceu em 2003; foi golpeada em 2005 e renasceu em 2006, em 2010…
O que se pretendia desta vez, repita-se, não era exemplar cabeças coroadas do petismo, mas um propósito algo difuso, e todavia persistente, de colocar a luta pelo desenvolvimento como uma responsabilidade intransferível da democracia e do Estado brasileiro.
A derrota conservadora é superlativa nesse sentido, a exemplo dos recursos por ela mobilizados — sabidamente nada modestos.
Seu dispositivo midiático lidera a lista dos mais esfarrapados egressos da refrega histórica.
Se os bonitos manuais de redação valessem, o desfecho da AP 470 obrigaria a mídia ‘isenta’ a regurgitar as florestas inteiras de celulose que consumiu com o objetivo de espetar no PT o epíteto eleitoral de ‘quadrilha’.
Demandaria uma lavagem de autocrítica.
Que ela não fará.
Tampouco reconhecerá que ao derrubar a acusação de quadrilha, os juízes que julgam com base nos autos desautorizariam implicitamente o uso indevido da teoria do domínio do fato, que amarrou toda uma narrativa largamente desprovida de provas.
Se não houve quadrilha, fica claro o propósito político prévio de emoldurar a cabeça do ex-ministro José Dirceu no centro de uma bandeja eleitoral, cuja guarnição incluiria nomes ilustres do PT, arrolados ou não na AP 470.
O banquete longamente preparado será degustado de qualquer forma agora.
Mas fica difícil afastar a percepção de que o carnaval conservador saltou direto da concentração para a dispersão sem passar pela apoteose.
Aqui e ali, haverá quem arrote peru nos camarotes e colunas da indignação seletiva.
O cheiro de cinzas, porém, é inconfundível e contaminará por muito tempo o ambiente político e econômico do conservadorismo.
O que se pretendia, repita-se, não era apenas criminalizar fulano ou sicrano, mas a tentativa em curso de enfraquecer o enredo que os mercados impuseram ao país de forma estrita e abrangente no ciclo tucano dos anos 90.
Inclua-se aí a captura do Estado para sintonizar o país à modernidade de um capitalismo ancorado na subordinação irrestrita da economia, e na rendição incondicional da sociedade, à supremacia das finanças desreguladas.
O Brasil está longe de ter subvertido essa lógica.
Mas não por acaso, a cada três palavras que a ortodoxia pronuncia hoje, uma é para condenar as ameaças e tentativas de avanços nessa direção.
O jogral é conhecido: “tudo o que não é mercado é populismo; tudo o que não é mercado é corrupção; tudo o que não é mercado é inflacionário, é ineficiência, atraso e gastança”.
O eco desse martelete percorreu cada sessão do mais longo julgamento da história brasileira. Assim como ele, a condenação da política pelas togas coléricas reverberava a contrapartida de um anátema econômico de igual veemência, insistentemente lembrado pelos analistas e consultores: “o Brasil não sabe crescer, o Brasil não vai crescer, o Brasil não pode crescer — a menos que retome e conclua as ‘reformas’”.
O eufemismo cifrado designa o assalto aos direitos trabalhistas; o desmonte das políticas sociais; a deflagração de um novo ciclo de privatizações e a renúncia irrestrita a políticas e tarifas de indução ao crescimento.
Não é possível equilibrar-se na posição vertical em cima de um palanque abraçado a essa agenda, que a operosa Casa das Garças turbina para Aécio — ou Campos, tanto faz.
Daí o empenho meticuloso dos punhais midiáticos em escalpelar os réus da AP 470. Que legitimidade poderia ter um projeto alternativo de desenvolvimento identificado com uma ‘quadrilha’ infiltrada no Estado brasileiro?
Foi essa indução que saiu seriamente chamuscada da sessão do STF na tarde desta 5ª feira.
Os interesses econômicos e financeiros que a desfrutariam continuam vivos.
Que o diga a taxa de juro devolvida esta semana ao degrau de 10,75% , de onde a Presidenta Dilma a recebeu e do qual tentou rebaixá-la, sob fogo cerrado da república rentista e do seu jornalismo especializado.
Sem desarmar a bomba de sucção financeira essas tentativas tropeçarão ciclicamente em si mesmas.
Os quase 6% que o Estado brasileiro destina ao rentismo anualmente, na forma de juros da dívida pública, dificultam sobremaneira desarmar o círculo vicioso do endividamento, do qual eles são causa e decorrência. É o labirinto do agiota: juro sobre juro leva a mais juro. E mais alto.
Dessa encruzilhada se esboça a disputa entre dois projetos distintos de desenvolvimento.
A colisão entre as duas dinâmicas fica mais evidente quando a taxa de crescimento declina ou ocorrem mudanças de ciclo na economia mundial, estreitando adicionalmente a margem de manobra do Estado e das contas externas.
É o que a América Latina, ou quase toda ela, experimenta nesse momento.
A campanha eleitoral deste ano prestaria inestimável serviço ao discernimento da sociedade se desnudasse esse conflito objetivo, subjacente à guerra travada diante dos holofotes no julgamento da AP 470.
O conservadorismo foi derrotado. Mas não perdeu seus arsenais.
Eles só serão desarmados pela força e o consentimento reunidos das grandes mobilizações democráticas.
As eleições de outubro poderiam funcionar como essa grande praça da apoteose.
A ver.
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