André Tredinnick: Mídia transforma juíza Cristiana Cordeiro em “inimiga do povo”
UMA INIMIGA DO POVO
por André Tredinnick, especial para o Viomundo
A lógica é uma disciplina da filosofia destinada ao estudo do raciocínio e que prescinde de um juízo moral para chegar às suas conclusões. Trata de elaborar fórmulas que estabeleçam o procedimento necessário para se formar um raciocínio claro e objetivo.
Distinguir-se-ia o raciocínio válido de um inválido, à luz da lógica.
Dadas a premissa A e a premissa B a consequência C é o que se segue. Assim, a velha fórmula “Todos os homens são carecas”, segue “Sócrates é careca”, logo, “Sócrates é homem”. Isso é logicamente válido, ainda que não corresponda ao que de ordinário se observa.
A lógica pode ser um bom instrumento para a resolução de problemas de raciocínio, mas aplicada às relações humanas, sem temperança, sem o recurso ao sentimentos que nos distinguem dos animais, pode ser um desastre.
No próximo dia 8 de maio lembramos os setenta anos em que o nazifascismo foi derrotado em parte da Europa. A história, sempre essa velha senhora, nos traz suas lembranças inquietantes.
Sem a emoção, não seríamos humanos, seríamos apenas máquinas. Máquinas frias, retas cumpridoras dos seus deveres, implacáveis funcionários públicos, terrivelmente eficientes, como o Adolf Eichmann de Hannah Arendt, o personagem muito mais comum do que se imagina, ser produto de uma modernidade sonhada pelo “último dos homens” nietzschiano, o mais apavorante produto da cultura.
Eichmann, o assassino de milhões de pessoas, era o diretor do “Setor de Judeus IV B 4” do Departamento de Segurança do Reich, uma engrenagem entre milhares de outras, obcecado em mostrar eficiência e competência aos seus chefes. “Eu cumpria ordens, observava a lei em vigor. Minha função era levar pessoas de A para B, da forma mais eficiente possível, com menor custo, o mais rápido possível, e resolver toda a logística envolvida nisso. E eu o fiz.”, foram mais ou menos as palavras que empregou em seu julgamento. Lógico, demasiado lógico.
Então podemos dizer que a lógica, produto de um intrincado raciocínio filosófico, despida de emoção leva a desumanização, à própria negação do que se define como humanidade.
As emoções distinguem-nos, a princípio, dos demais animais, como a capacidade de amar, de ter empatia, e acabam por definir o termo “humanidade”, seja em nossa língua, onde tem o sentido de “benevolência”, seja em outras, como em francês, na qual seria a “disposição à compreensão, à compaixão entre os semelhantes”, e em xhosa, na qual “ubuntu” significa “eu sou humano porque pertenço à comunidade humana e eu vejo e trato os outros adequadamente”.
Preencher a racionalidade com a emoção construtiva permite-nos um passo além de nossa caracterização como apenas um primata com habilidades extraordinárias.
Nada é mais distinguível da aplicação desumana, porém lógica, da eficiência do que no serviço público. Em um país como o nosso, com uma imensidão de servidores públicos, e uma capital federal criada para abrigá-los, a eficiência se mede em números lógicos ou na capacidade de promover os valores estabelecidos na Constituição Federal, como a dignidade da pessoa humana, a erradicação da pobreza e da marginalização e a promoção do bem de todos, sem preconceitos (artigos 1o e 3o)?
Tomemos o tema da redução da maioridade penal, proposta pela açodada discussão em torno da PEC de número emblemático: 171/93.
Como surge essa discussão em pleno século XXI? Em que bases se clama pela redução da maioridade, sob o argumento de que o adolescente teria plena consciência de seus atos, e que se valeria da maioridade para se proteger da responsabilidade criminal?
Primeiro, às estatísticas.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2014, de cada trinta sentenciados, apenas um possui idade inferior a dezoito anos. A Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) do Ministério da Justiça estima que os menores de 16 a 18 anos – faixa etária que mais seria afetada por uma eventual redução da maioridade penal – são responsáveis por 0,9% do total dos crimes praticados no Brasil. Se considerados apenas homicídios e tentativas de homicídio, o percentual cai para 0,5%. O Unicef aponta dados idênticos.
Portanto, não existem dados a apoiar a ideia de que os crimes entre adolescentes têm aumentado.
Aqui até mesmo a lógica contradiz a percepção equivocada em sentido contrário.
A jornalista Flávia Oliveira, no Globo de 3.5.2015, pág. 39, atribui essa percepção equivocada à cobertura jornalística, num raro mea culpa de uma imprensa caracterizada pelo oligopólio dos meios de comunicação e da manipulação da opinião pública no melhor estilo do Cidadão Kane. Cita em seu apoio estudo de Rosental C. Alves, diretor do Knight Center of Journalism in the Americas da Universidade do Texas, que diz que “a imprensa brasileira vem de uma longa tradição de estigmatizar as crianças e adolescentes que cometem crimes” (melhor dizendo, atos infracionais), e que “a responsabilidade dos meios está, sobretudo, na dificuldade de dar contexto e na tendência de simplificar e de ‘sensacionalizar’ problemas complexos, mesmo sem a má intenção…”.
Ninguém se engane: nos institutos e educandários, substitutos apenas no nome dos antigos ˜reformatórios” e famigeradas “Febem”, temos a prova cabal de uma sociedade racista e profundamente estratificada. Em massa, lá se encontram os filhos dos pais negros e mulatos que vivem nas favelas e nas periferias desse país continental.
O manifesto da Cáritas reconhece o fato notório de que a redução atingirá ainda mais os adolescentes negros e negras, marginalizados e moradores das periferias.
Nos vinte e cinco anos de vigência da lei 8.069-90, o Estatuto da Criança e do Adolescente foi sistematicamente enxovalhado por ser uma lei utópica, que daria direitos sem exigir deveres, ignorar o “óbvio” de que um adolescente de quinze, dezesseis anos, já saberia exatamente o que é certo e o que é errado, e argumentos do gênero.
Tais argumentos são puramente irracionais e repletos de reações reptilianas, porque são despidos de qualquer comprovação científica e porque partem de uma premissa falsa – na verdade, o Estatuto da Criança e Adolescente jamais foi efetivamente implementado.
Nele não há qualquer política irreal, qualquer ditame inexequível. O que dele se tem absoluta certeza é que os administradores públicos jamais tiveram qualquer intenção em cumpri-lo. Sim, é a famosa “lei para inglês ver”, que só existe no mundo do faz-de-conta, com raros operadores do Direito a tentar fazê-lo eficaz Brasil afora.
A criança e adolescente, tidos como prioridade na Constituição da República, e em diversos tratados ratificados pelo Brasil, são ignorados em nossa pobre República.
E não é a classe média que clama contra a ausência de cumprimento da lei e do investimento em educação. Ela é quem clama, junto com os arautos da “luta contra o crime” dessa imprensa manipuladora, pela redução da maioridade. Não são seus filhos o público-alvo da obtusa proposta.
Se por um lado é evidente que investir na proteção da criança e do adolescente levará a sociedade a um progresso como um todo, por outro lado, repudiar a lei criada para, justamente, promover a execução dessa proteção, demonstra não um paradoxo, mas uma patologia psiquiátrica, pela grave ruptura com a realidade.
Nesses vinte e cinco anos a vergonha das crianças e adolescentes que têm de se vender, de trabalhar e pedir dinheiro nas ruas não acabou. O número de crianças e adolescentes que não têm acesso a uma educação de qualidade não diminuiu consideravelmente. E os adolescentes que se encontram em conflito com a lei tampouco passaram a receber um tratamento diferente de ser simplesmente penitenciados com anos vivendo em masmorras medievais.
Então, onde tudo mais falhou, a educação, a saúde, a prevenção ao uso abusivo de drogas, o combate ao trabalho escravo infantil e ao trabalho infantil, a erradicação da prostituição infantil, da segregação de raça, do preconceito de crença, do preconceito de orientação sexual e de origem, existe apenas a certeza da repressão ao adolescente que ouse entrar em conflito com a lei.
Para reduzir esse absurdo, há lei, contudo.
Sim, algum legislador bem-aventurado (e eles são raros hoje) tratou de criar a lei do SINASE.
A lei do SINASE não sugere, determina a reavaliação da medida socioeducativa, que em momento algum pode ser confundida com pena privativa de liberdade.
Diante desse contexto, no Rio de Janeiro, a juíza Cristiana Cordeiro não se valeu da lógica de meramente decidir pedaços de papel em processos de adolescentes, exercendo uma eficiência lógica, profundamente lógica. Dirigiu-se aos locais nos quais os adolescentes se encontravam internados e lá, diante dos pareceres das equipes técnicas compostas por psicólogos e assistentes sociais, decidiu cumprir novamente a lei, fazendo solturas, progressões de medida ou manutenções das mesmas.
Com a rara emoção da empatia, não se deixou colar nas cadeiras da magistratura, em confortáveis gabinetes faustosos, encerrados em prédios de luxo arábico, mirando um processo de papel. Colocou-se frente-a-frente com os adolescentes, dentro do eterno presídio Muniz Sodré, agora travestido de Educandário Santo Expedido.
Mas apenas por isso, por essa desfaçatez de cumprir a Constituição Federal e aplicar a lei, a imprensa com seus argumentos do medo a massacrou.
Faz lembrar do personagem de Ibsen em “Um Inimigo do Povo”.
Nessa peça, o médico realiza um estudo e estabelece que as águas de determinada local são medicinais, o que faz com que haja grande fluxo turístico, aumentando a riqueza de toda a região. Por onde passa, é saudado como um bem-feitor, um gênio, um santo.
Ao realizar uma reavaliação de sua pesquisa, o médico descobre um erro nela, e que na verdade as águas seriam maléficas à saúde humana, e resolve comunicar aos seus conterrâneos sua descoberta.
De Santo, de Gênio da mil e uma noites, passa a ser o Inimigo do Povo, maldito, porque ousou mostrar o óbvio aos seus conterrâneos lógicos mas despidos de empatia.
No trato dos adolescentes em conflito com a lei, sim, porque não custa lembrar que o adolescente não comete crime, falha toda a sociedade, e nessa falha, em que se encontram quase 100% de miseráveis, negros e mulatos, desprovidos de educação, oriundos das periferias das grandes cidades, marca de um apartheid eficaz, mas cinicamente oficioso, o amigo do povo é o apresentador de televisão que, indignado, espalha o medo, esse ovo da serpente.
Se ao ser em plena formação, que foi negada a saúde, a educação, a proteção de um lar sem abuso de drogas, uma casa, um pai ou uma mãe, só se der uma punição degradante, o que se espera que poderá vir daí, recuperação, regeneração, ou mais aperfeiçoamento do ódio a que foi exposto?
Esse ser mentecapto que vocifera ódio ao Estatuto da Criança e Adolescente, pede penas mais duras, ou a pena capital, e a redução da maioridade penal, perdido no discurso de qual redução seria a mais eficaz, se para dezesseis anos, quinze anos e até dez anos de idade.
Para esse ser grotesco, truculento e selvagem, a pena inibe o crime, e Foucault e a história nada têm a dizer. Ele não tem compromisso com o melhor, apenas em atender a lógica de alcançar maiores índices da audiência cavada com a exploração do medo e da violência.
Para ele, como para o fundamentalista islâmico, a infância é uma mentira do ocidente. Ele, como seu duplo no oriente médio, são apenas exemplos grosseiros do Ur-fascismo, o fascismo universal e onipresente desnudado por Umberto Eco.
Enquanto teórica da infância, essa magistrada poderia ser incensada. Quando cumpriu a lei, foi acoimada de precipitada, ilegal, bárbara que “solta os infratores nas ruas”.
Mas agora é apenas uma “inimiga do povo”.
Tomara que todos esses “inimigos” se unam e enfrentem a maré reacionária que trouxe toxidade para nossa pobre democracia incipiente.
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