Breves observações sobre a representação política e sua crise atual
Marx pensou a política, sobretudo a organização e a ação da classe trabalhadora, como uma forma de resistência aos desdobramentos automáticos do capital.
Ricardo Musse - Blog da Boitempo
As dificuldades inerentes à representação política tornaram-se visíveis já no alvorecer da democracia moderna. Logo após a Revolução Francesa, Hegel e Benjamin Constant, defensores, cada um a seu modo, da forma representativa de governo, chamaram atenção para suas limitações.* A novidade e o balanço da experiência de 1789 obrigavam à comparação com o modelo sob o qual se pensara a democracia até então, isto é, com a ação política na polis grega.
Condensando teses sustentadas por seus antecessores – uma linhagem que se estende de Maquiavel e Hobbes a Rousseau –, Hegel destaca como especificidade do mundo moderno a impossibilidade de retomarem-se a transparência, a concretude e a naturalidade da vida pública das cidades-Estado da Antiguidade. Concebe a perda de unidade e identidade entre as formas de ação política e a vida social como consequência não apenas da dimensão territorial e demográfica das nações modernas, mas, sobretudo, por conta do surgimento de uma nova individualidade. O indivíduo moderno encontra-se assentado na particularidade de uma cidadania atomizada entre proprietários alheios em larga medida ao espaço público, resultado de um enobrecimento do espaço privado pela valorização da atividade profissional e de uma subjetivação da moral e da religião.
A unidade imediata e transparente dos indivíduos na vida comunitária seria assim negada pela emergência da sociedade civil-burguesa e pela formação concomitante do Estado moderno, caracterizado como uma abstração positiva.
As análises de Marx, paradoxalmente, contribuíram para retirar de cena a comparação com os gregos (reabilitada no século XX, entre outros, por Hannah Arendt). Em sua crítica da filosofia política hegeliana, Marx situa a especificidade do mundo moderno em outra dimensão: na constituição da economia capitalista, fonte tanto da sociedade civil-burguesa como do Estado-nação.
A política, na perspectiva de Marx, teria de ser pensada e, sobretudo, posta em prática, à luz da clivagem entre a esfera da circulação (o mundo das trocas, o mercado), na qual vigora a igualdade formal entre os indivíduos, e o âmbito da produção, marcado por uma desigualdade fundamental entre compradores e vendedores da mercadoria força de trabalho. Essa defasagem constitui o fundamento último da crítica marxista da democracia parlamentar.
A representação política encontra-se, assim, pressionada por uma tensão permanente que coloca em xeque, a todo momento, a ilusão de uma identidade entre representantes e representados. De modo geral, pode-se dizer que a teoria e a prática marxista contestam a pretensão do político de se constituir como uma esfera autônoma, ao destacar os vínculos entre a vida pública, a esfera econômica e o conflito social.
Concebida, de certo modo, como uma contraposição ao marxismo, a interpretação do mundo moderno desenvolvida pela sociologia clássica alemã restringe o peso da desigualdade, trazendo ao primeiro plano a diferença social. Georg Simmel sustenta que a especialização funcional e a competição no âmbito da divisão do trabalho tendem a promover tanto a diferenciação social como a estilização da vida. Max Weber, por sua vez, destaca que a distribuição do poder descola-se do âmbito econômico e mesmo da ordem jurídica, justificando assim sua tese de que as posições de classe combinam-se de formas variadas em acordo com as ordenações “estamentais”.
A segmentação da sociedade em classes, resultante da ênfase na desigualdade, é relativizada pela distribuição dos indivíduos na organização estamental, uma associação de desiguais (que agrupa tantos possuidores como não-possuidores) unidos por formas de ação social consensual e pela cristalização de estilos de vida próprios.
Ao longo do século XX, a formatação da esfera pública deslizou paulatinamente da ênfase na desigualdade para a demarcação de diferenças. Com o predomínio do reformismo como forma de ação da classe operária, com a integração do proletariado às diversas modalidades de capitalismo de Estado, com o “aperfeiçoamento” da sociedade administrada, do controle e da vigilância, o social que submete a esfera política a uma tensão permanente foi redesenhado como o território das diferenças.
Uma das causas da crise atual da representação política consiste na dispersão e fragmentação do social, clivado em uma miríade de diferenças que substitui e nega o telos da unificação, prometido pela teoria marxista. A isso cabe acrescentar a presença ofuscante de um capitalismo mundializado que, movimentando-se em outra direção, submete cada vez mais a política às necessidades e à lógica prevalecentes na esfera econômica.
Não custa lembrar que Marx pensou a política, sobretudo a organização e a ação da classe trabalhadora, como uma forma de resistência e negação dos desdobramentos automáticos do capital. Ele foi o primeiro a afirmar que a expansão desenfreada da autovalorização do valor não tardaria a colonizar a política e a conduzir a humanidade à barbárie.
* Para uma exposição detalhada da posição de Hegel e de Benjamin Constant confira a “Introdução” do livro de João Carlos Brum Torres, Figuras do Estado moderno (São Paulo: Brasiliense, 1989).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo, Martins Fontes, 2009.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo, Boitempo, 2005.
MARX, Karl. O capital. Crítica da economia política. São Paulo, Boitempo, 2013.
SIMMEL, Georg. “As grandes cidades e a vida do espírito”. In: BOTELHO, André (org.). Sociologia essencial, p. 311-329. São Paulo, Penguin/Companhia das Letras, 2013.
TORRES, João Carlos Brum. Figuras do Estado moderno. São Paulo, Brasiliense, 1989.
WEBER, Max. Economia e Sociedade, vol. 1 e 2. Brasília, UnB, 1994/1999.
Condensando teses sustentadas por seus antecessores – uma linhagem que se estende de Maquiavel e Hobbes a Rousseau –, Hegel destaca como especificidade do mundo moderno a impossibilidade de retomarem-se a transparência, a concretude e a naturalidade da vida pública das cidades-Estado da Antiguidade. Concebe a perda de unidade e identidade entre as formas de ação política e a vida social como consequência não apenas da dimensão territorial e demográfica das nações modernas, mas, sobretudo, por conta do surgimento de uma nova individualidade. O indivíduo moderno encontra-se assentado na particularidade de uma cidadania atomizada entre proprietários alheios em larga medida ao espaço público, resultado de um enobrecimento do espaço privado pela valorização da atividade profissional e de uma subjetivação da moral e da religião.
A unidade imediata e transparente dos indivíduos na vida comunitária seria assim negada pela emergência da sociedade civil-burguesa e pela formação concomitante do Estado moderno, caracterizado como uma abstração positiva.
As análises de Marx, paradoxalmente, contribuíram para retirar de cena a comparação com os gregos (reabilitada no século XX, entre outros, por Hannah Arendt). Em sua crítica da filosofia política hegeliana, Marx situa a especificidade do mundo moderno em outra dimensão: na constituição da economia capitalista, fonte tanto da sociedade civil-burguesa como do Estado-nação.
A política, na perspectiva de Marx, teria de ser pensada e, sobretudo, posta em prática, à luz da clivagem entre a esfera da circulação (o mundo das trocas, o mercado), na qual vigora a igualdade formal entre os indivíduos, e o âmbito da produção, marcado por uma desigualdade fundamental entre compradores e vendedores da mercadoria força de trabalho. Essa defasagem constitui o fundamento último da crítica marxista da democracia parlamentar.
A representação política encontra-se, assim, pressionada por uma tensão permanente que coloca em xeque, a todo momento, a ilusão de uma identidade entre representantes e representados. De modo geral, pode-se dizer que a teoria e a prática marxista contestam a pretensão do político de se constituir como uma esfera autônoma, ao destacar os vínculos entre a vida pública, a esfera econômica e o conflito social.
Concebida, de certo modo, como uma contraposição ao marxismo, a interpretação do mundo moderno desenvolvida pela sociologia clássica alemã restringe o peso da desigualdade, trazendo ao primeiro plano a diferença social. Georg Simmel sustenta que a especialização funcional e a competição no âmbito da divisão do trabalho tendem a promover tanto a diferenciação social como a estilização da vida. Max Weber, por sua vez, destaca que a distribuição do poder descola-se do âmbito econômico e mesmo da ordem jurídica, justificando assim sua tese de que as posições de classe combinam-se de formas variadas em acordo com as ordenações “estamentais”.
A segmentação da sociedade em classes, resultante da ênfase na desigualdade, é relativizada pela distribuição dos indivíduos na organização estamental, uma associação de desiguais (que agrupa tantos possuidores como não-possuidores) unidos por formas de ação social consensual e pela cristalização de estilos de vida próprios.
Ao longo do século XX, a formatação da esfera pública deslizou paulatinamente da ênfase na desigualdade para a demarcação de diferenças. Com o predomínio do reformismo como forma de ação da classe operária, com a integração do proletariado às diversas modalidades de capitalismo de Estado, com o “aperfeiçoamento” da sociedade administrada, do controle e da vigilância, o social que submete a esfera política a uma tensão permanente foi redesenhado como o território das diferenças.
Uma das causas da crise atual da representação política consiste na dispersão e fragmentação do social, clivado em uma miríade de diferenças que substitui e nega o telos da unificação, prometido pela teoria marxista. A isso cabe acrescentar a presença ofuscante de um capitalismo mundializado que, movimentando-se em outra direção, submete cada vez mais a política às necessidades e à lógica prevalecentes na esfera econômica.
Não custa lembrar que Marx pensou a política, sobretudo a organização e a ação da classe trabalhadora, como uma forma de resistência e negação dos desdobramentos automáticos do capital. Ele foi o primeiro a afirmar que a expansão desenfreada da autovalorização do valor não tardaria a colonizar a política e a conduzir a humanidade à barbárie.
* Para uma exposição detalhada da posição de Hegel e de Benjamin Constant confira a “Introdução” do livro de João Carlos Brum Torres, Figuras do Estado moderno (São Paulo: Brasiliense, 1989).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo, Martins Fontes, 2009.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo, Boitempo, 2005.
MARX, Karl. O capital. Crítica da economia política. São Paulo, Boitempo, 2013.
SIMMEL, Georg. “As grandes cidades e a vida do espírito”. In: BOTELHO, André (org.). Sociologia essencial, p. 311-329. São Paulo, Penguin/Companhia das Letras, 2013.
TORRES, João Carlos Brum. Figuras do Estado moderno. São Paulo, Brasiliense, 1989.
WEBER, Max. Economia e Sociedade, vol. 1 e 2. Brasília, UnB, 1994/1999.
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