O ponto de reconhecimento da ameaça, por Luis Fernando Verissimo
Do O Globo
Luis Fernando Verissimo
Às vezes imagino como seria ser um
judeu na Alemanha dos anos 20 e 30 do século passado, pressentindo que
algo que ameaçava sua paz e sua vida estava se formando mas sem saber
exatamente o quê
No filme “2001 — Uma odisseia no
espaço”, do Stanley Kubrick, astronautas descobrem na Lua (ou era em
Marte?) um misterioso monólito, de origem desconhecida. Depois fica-se
sabendo que o monólito fora posto ali como uma espécie de alarme. Quando
exploradores da Terra o descobrissem, seria o sinal de que nossa
civilização tinha os meios para invadir o espaço e se tornava uma ameaça
para as civilizações extraterrenas que nos estudavam de longe desde que
o primeiro primata acertara a primeira cacetada na cabeça de outro, e
sabiam do que nós éramos capazes. A descoberta do monólito era um aviso:
atenção, a barbárie vem aí, disfarçada de conquista científica.
Às vezes imagino como seria ser um
judeu na Alemanha dos anos vinte e trinta do século passado,
pressentindo que alguma coisa que ameaçava sua paz e sua vida estava se
formando mas sem saber exatamente o quê. Este judeu hipotético teria
experimentado preconceito e discriminação na sua vida, mas não mais do
que era comum na história dos judeus. Podia se sentir como um cidadão
alemão, seguro dos seus direitos, e nem imaginar que em breve perderia
seus direitos e eventualmente sua vida só por ser judeu. Em que ponto,
para ele, o inimaginável se tornaria imaginável? E a pregação
nacionalista e as primeiras manifestações fascistas deixariam de ser um
distúrbio passageiro na paisagem política do que era, afinal, uma
sociedade em crise mas com uma forte tradição liberal, e se tornaria uma
ameaça real? O ponto de reconhecimento da ameaça não era evidente como o
monólito do Kubrick. Muitos não o reconheceram e morreram pela sua
desatenção à barbárie que chegava.
A preocupação em reconhecer o ponto
pode levar a paralelos exagerados, até beirando o ridículo. Mas não algo
difuso e ominoso se aproximando nos céus do Brasil, à espera que alguém
se dê conta e diga “Epa” para detê-lo? Precisamos urgentemente de um
“Epa” para acabar com esse clima. Pessoas trocando insultos nas redes
sociais, autoridades e ex-autoridades sendo ofendidas em lugares
públicos, uma pregação francamente golpista envolvendo gente que você
nunca esperaria, uma discussão aberta dentro do sistema jurídico do país
sobre limites constitucionais do poder dos juízes... Epa, pessoal.
Se está faltando um monólito para nos
avisar quando chegamos ao ponto de reconhecimento irreversível, proponho
um: o momento da posse do Eduardo Cunha na presidência da nação, depois
do afastamento da Dilma e do Temer.
Luis Fernando Verissimo é escritor
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