sexta-feira, 27 de maio de 2016

MÍDIA - O Jucágate.


O Jucágate, os diálogos da conspiração e os malabaristas da imprensa. Por Sylvia Moretzsohn

malabaristas
A imprensa bem que tentou. Depois de plantar a semente do impeachment antes mesmo do segundo turno das eleições e de trabalhar sem tréguas por essa causa, procurou apresentar o governo interino como a esperança dos brasileiros. As imagens mais significativas foram as que exploraram o preto e branco e o ar grave de quem sabia do tamanho da responsabilidade que teria pela frente e se preocupava com o futuro, numa atitude ao mesmo tempo serena, ponderada e resoluta.
Foi nisso que apostou a IstoÉ, com uma manchete que já determinava o mandato do novo governo: o julgamento do impeachment é dado como fato consumado.

O Estado de S.Paulo usou o mesmo recurso, abrindo a primeira página integralmente para a foto de Michel Temer em pose de estadista.
Comparar essa edição especial, de 12 de maio, com a do dia 26, diz mais do que as famosas mil palavras sobre o que se passou nesse brevíssimo período de duas semanas.

O “G-8 do impeachment” teve reuniões durante um ano, como o próprio Estadão noticiou em 16 de abril. Era de se esperar que quem conspirou por tanto tempo assumisse o poder com plena capacidade de comando. Ou, pelo menos, com um poderoso trabalho de propaganda que produzisse a aparência da famosa virada de página para estabelecer o divisor de águas. Mas, não: desde a desastrada estreia, com o anúncio do ministério exclusivamente de homens brancos – muitos dos quais investigados por corrupção, numa gestão que prometia exatamente combatê-la –, o governo interino só produziu fatos negativos. Anunciado com o propósito de instaurar a “democracia da eficiência” – seja lá o que isso signifique –, acabou passando a imagem de fragilidade, improviso e indecisão. Ao mesmo tempo, provocou intensos e crescentes protestos de rua, no país e no exterior, e em solenidades de grande expressão internacional, como a do Festival de Cannes, que denunciaram este impeachment como um golpe de Estado.
Foi nesse contexto que explodiu a bomba das gravações que o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado fez secretamente com pelo menos três senadores, como forma de colaborar com a Operação Lava Jato e safar-se de uma condenação mais dura. O repórter Rubens Valente, da Folha de S.Paulo, obteve as gravações e o jornal deu manchete para a primeira delas, em que Machado e o senador Romero Jucá tratavam da necessidade de afastar a presidente Dilma Rousseff como forma de “estancar a sangria” causada pelas investigações do escândalo da Petrobras. Ficava claro, então, que o impeachment era mesmo fruto de uma conspiração. Em suma, um golpe.
Mas não seria, evidentemente, este o enfoque privilegiado pela grande imprensa, que se concentrou na tentativa de barrar a Lava Jato, que os diálogos revelavam. Nos dias seguintes, foram divulgados outros trechos de gravações, com os senadores Renan Calheiros, atual presidente da Casa, e José Sarney, ex-presidente da República, com a mesma ênfase: acusar a articulação de um acordo para encerrar a operação comandada pelo juiz Sérgio Moro, apresentada, como sempre, como um antídoto saneador da política, algo já incorporado ao senso comum – não por acaso, de tanto que foi martelado pela mídia – e acima de contestações, silenciando as críticas aos abusos denunciados há muito tempo por vários juristas a respeito de uma série de aspectos dessa investigação.

“Muito ruim tudo”

A publicação da primeira gravação de Sérgio Machado, que logo recebeu a hashtag #jucágate, provocou muitas ironias e também muitas suspeitas nas redes sociais: se as gravações foram feitas em março e desde então estavam em poder da Procuradoria Geral da República, por que não foram logo divulgadas? Seguramente reverteriam a tendência favorável à votação do impeachment, que só começaria no mês seguinte. Por que agora, e por que na Folha?
A esse respeito, tudo o que se pode fazer, pelo menos por ora, são especulações. Mas é possível, por exemplo, mostrar a diferença de tratamento, por parte do judiciário, entre esse caso e o do senador Delcídio Amaral, como fez Fernando Brito em seu Tijolaço. Ou indagar os motivos do silêncio da PGR, como fez Fernando Molica em sua coluna no jornal O Dia. Porém, um dos aspectos mais interessantes é a reação de certos comentaristas, promotores da causa do impeachment desde a primeira hora: a impaciência e a irritação contra a demora de Michel Temer em afastar Jucá, que ganhou a oportunidade de se explicar publicamente numa coletiva, depois declarou-se “licenciado” e só foi exonerado à noite, mesmo assim coberto de elogios por sua “competência” e “dedicação”.
O diálogo entre Carlos Eduardo Sardenberg e Merval Pereira, na rádio CBN, ainda na manhã daquela segunda-feira, é dos mais reveladores.
Merval: “É evidente que o presidente Temer falhou nesse momento, essa coisa você não pode ficar esperando a repercussão” (…) “É realmente inacreditável que o Temer não tenha condições políticas de demitir o Jucá imediatamente. É preocupante, é preocupante”.
Sardenberg: “E o Jucá ainda fez uma maldade, dizendo que o cargo é do presidente. Quer dizer, que sacanagem, né?”
Merval: “É, ele deixou o presidente numa situação muito ruim, e parece até uma certa ameaça, é muito ruim, muito ruim tudo. Muito ruim tudo”.
(…)
“O presidente Temer evidentemente vai ter de demonstrar que é presidente mesmo, que tem condições de ser presidente, porque se deixar passar isso na primeira semana ele perde completamente a capacidade política de controlar o governo, não é possível aceitar uma coisa dessas. Tem que demitir e tem que reafirmar o apoio do governo à Operação Lava Jato, porque senão fica no ar essa acusação que sempre foi feita pelo PT e pela presidente afastada de que eles queriam fazer o impeachment para parar a Operação Lava Jato. (…) Agora com essa gravação fica-se vendo que muita gente estava querendo obstruir a operação Lava Jato e a possibilidade de haver um acordo geral para parar a Lava Jato é uma realidade”.
Pois é. Que sacanagem, não é? Que sacanagem conosco, que fizemos a nossa parte direitinho. E vocês, aí, continuam nos dando tanto trabalho.
Muito ruim, isso. Muito ruim tudo.
(Já era mais ou menos ruim em 19 de maio, quando Merval esperneava contra a pecha de “golpe” pregada no impeachment e encerrava sua coluna lamentando que Temer não houvesse conseguido “sair da armadilha que seu passado político lhe armou” e tivesse que aceitar como líder na Câmara um deputado aliado do hoje afastado Eduardo Cunha. Lamentava aquela demonstração de falta de autonomia “diante do baixo clero”).
No Globo, Ricardo Noblat falava em “contagem regressiva” e criticava: “Que capital político Temer pensa que tem para dar-se ao luxo de não ser cuidadoso? A quem ele imagina dever sua ascensão à vaga de Dilma?”.
Quem sabe a modéstia o impediu de responder.
No UOL, Josias de Souza decretava: “Em apenas 12 dias, a gestão de Michel Temer virou um futuro obsoleto”.
Fora do rol de colunistas que investiram no impeachment, Elio Gaspari anotaria, em 25 de maio, que Temer era “a solução que virou problema”: “Em apenas 12 dias, o vice-presidente agravou a crise política e mutilou a credibilidade do seu governo”.
No site da Veja, Vera Magalhães, da coluna Radar, ironizava a reação supostamente viril do ocupante interino da presidência, que deu uma “batidinha na mesa” para “tentar passar firmeza nas decisões”. “O tapa não teve nada de espontâneo nem de convincente. Serviu para reforçar o que pretendia negar: que o presidente em exercício é suscetível a pressões, e já voltou atrás em um número recorde de decisões em menos de duas semanas”. Vera arrematou sublinhando que “Temer não foi feliz ao dizer que sabe lidar com bandidos”.
O potencial explosivo do “Jucágate”, entretanto, com os desdobramentos produzidos pelas suspeitas de envolvimento de ministros do STF na articulação do golpe, foi logo contido em prol da cobertura do pacote econômico anunciado pelo governo. Estamos “no caminho certo”, comemorou Merval em 25 de maio. No dia seguinte, Sardenberg escreveria o artigo “Choque e convencimento” – paráfrase clara à doutrina norte-americana aplicada na invasão do Iraque, em 2003 –, na base do conhecido argumento do remédio amargo para salvar o doente. “Temer e sua turma econômica precisam de um permanente trabalho de esclarecimento e persuasão”, afirmou, e nem precisa dizer quem se encarregará dessa tarefa.
Montagem de Ildo Nascimento sobre foto de Erno SchneiderÀ contracorrente, Janio de Freitas, na Folha, assinalava: “não há como evitar a conclusão de que a brutalidade do corte proposto para a nova política econômica só pode trazer ao país a degradação da degradação”. Pois “o corte proposto contra a educação é também contra os jovens de hoje e as próximas gerações de estudantes; o corte proposto contra a saúde é também contra as gestantes, as crianças e todos os carentes. Ambos são agressões ao espírito da Constituição e suas intenções de reparação social da nossa história de injustiças e perversidades”.
Montagem de Ildo Nascimento sobre foto de Erno Schneider
O caráter errático dessas duas primeiras semanas de governo, a ressurreição de uma simbologia arcaica para a logomarca que enfatiza o lema inscrito na bandeira nacional – ainda por cima em versão desatualizada – e o palavreado rebuscado e permeado pelas mesóclises que o ocupante do cargo resolveu instituir como sinal de erudição – mas que, segundo o cientista político Luis Felipe Miguel, da UnB, “é tão artificial em seu discurso que só sinaliza capital cultural inferior”, tudo isso faz lembrar a figura de Janio Quadros eternizada pelo fotógrafo Erno Schneider. A montagem acima poderia se tornar um desses memes de internet.
Para Janio de Freitas, entretanto, “quem Temer faz lembrar é Collor com a combinação de loucuras e violência que aplicou como plano econômico. Não é inovadora, portanto, a complacência quase envergonhada com que a imprensa se faz colaboradora de Temer, como preço – autêntica liquidação de outono – de não ter o PT no governo nem o risco de Lula em 2018. Depois, lava-se a história, com ou sem jato. Mas o malabarismo praticado por muitos comentaristas oferece um lado cômico nessa história de salvar o salvador perdido”.
*Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da UFF, e publicou hoje este texto originalmente no objETHOS, site do Observatório da Ética Jornalística do Departamento de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina.

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