Xadrez do governo Frankenstein
Atualizado às 12:02
O presidencialismo condominial
O agrupamento que derrubou Dilma Rousseff é um corpo formado de vários pedaços distintos e sem um cérebro para comandá-los.
Cada
Ministro nomeado pretende reeditar os gritos de guerra da Câmara,
ganhar visibilidade à custa de qualquer patacoada e oferecer a conquista
a seus padrinhos econômicos.
A
sequência de declarações desastrosas é inédita na história política do
país. Substitui-se o presidencialismo de coalizão por um pterodátilo
político que poderia ser batizado de presidencialismo condominial.
Trata-se de uma experiência inédita.
Eles
não devem seus cargos a um presidente eleito pelo voto, mas é o
presidente interino que deve seu cargo a eles. Com isso, o presidente da
República não dispõe de ferramentas de comando ou de articulação de
suas ações.
É
isso que leva o Ministro da Saúde a anunciar a redução do SUS, o de
Desenvolvimento Social a proclamar a redução da Bolsa Família, leva a um
desenho disfuncional dos ministérios, misturando Educação com Cultura,
Ciência e Tecnologia com Comunicação, Desenvolvimento Agrária com
Desenvolvimento Social e INSS. E, finalmente, um pastor elevado a
Ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços que admite
que sua maior experiências no setor foi como contador, "mas nào
executivo", de uma empresa do campo industrial (http://migre.me/tRQGK).
Grosso modo pode-se dividir a moderna história política do país em três períodos:
1. a ditadura militar, com o comando claramente centralizado;
2.
o período democrático, com o partido no poder, PSDB ou PT, apoiando-se
em um "centrão", mas limitando-se a entregar alguns anéis, entre os
quais não se incluía o comando absoluto dos ministérios; e, agora,
3.
o período da transição pós-democrática, com esse presidencialismo
condominial, na qual cada Ministro recebe o ministério de porteira
fechada e age como dono do seu território.
O condomínio está repartido entre as seguintes frentes:
Polo majoritário
- A ala política liderada pelo ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha
ficou com a maior parte dos Ministérios e a maior bancada da Câmara.
Grupo de Temer - constituído por Geddel Vieira de Lima, Moreira Franco, Romero Jucá e ELiseu Padilha.
Polo tucano
- O PSDB deverá emplacar dirigentes de estatais estrategicamente
colocados em postos-chave, BNDES e provavelmente Petrobras. Tentará
assumir tecnicamente o negócio da privatização, contrapondo-se ao
temerista Moreira Franco.
Polo mercadista - Henrique Meirelles e sua equipe.
As linhas auxiliares
- o STF (Supremo Tribunal Federal) e o TSE (Tribunal Superior
Eleitoral), através da proatividade do Ministro Gilmar Mendes e da
anomia de seus pares; e o Ministério Público Federal, através da Lava
Jato e da Procuradoria Geral da República.
Cada
instituição – Executivo, Legislativo, Judiciário e MPF, blocos
políticos – não pode mais ser analisada de acordo com os cânones que
vigoraram até meses atrás. Não existe mais o sistema de freios e
contrapesos, nem a necessidade de cada poder legitimar seus atos perante
a opinião pública, características dos modelos democráticos. O país
entrou na era do quem-pode-mais, faz.
Um
primeiro ponto a acompanhar, portanto, serão os embates políticos entre
as forças vencedoras. Fique atento ao noticiário sobre dois pontos
específicos:
-
Os desdobramentos da disputa entre o centrão de Eduardo Cunha e a aliança PSDB-DEM pela liderança do governo na Câmara.
-
Os movimentos da Lava Jato e da PGR contra o grupo Cunha. Será possível em breve identificar a preocupação em casar operações com o tempo político do PSDB, como sucedeu na fase final da Lava Jato.
-
Os conflitos entre José Serra e Ministros da área econômica. Pouco tempo atrás, enquanto se preparava para ir a posse de Serra, o Ministro interino do Planejamento Romero Jucá soltou um tuíter defendo a união com os países da América Latina. Agora mesmo, Moreira Franco deu uma entrevista anunciando uma redução do papel do BNDES (que foi entregue ao PSDB) na privatização, em favor de instituições financeiras privadas (http://migre.me/tRQA1).
Os fatores legitimadores
Mercado e opinião pública já captaram as características desse presidencialismo condominial – e, decididamente não aprovaram.
As
manifestações se multiplicam, aumenta a frente anti-Temer,
espalhando-se até pelos chamados “coxinhas” – o público mais sensível à
influência da velha mídia.
Esse
público é influenciado também pelo universo das celebridades – artistas
de TV, cantores, personalidades do teatro, ícones de direitos humanos.
E, nesse campo, as críticas contra o governo interino são crescentes.
Nem mesmo a Rede Globo poderá se manter insensível, já que esses ventos
chacoalham o ponto central de sua influência: seu cast de artistas de
novelas.
Dois movimentos são significativos dessa rejeição ao governo Temer:
-
A dificuldade em encontrar uma grande mulher para a Secretaria da Cultura;
-
A retirada de campo de alguns agentes oportunistas que atuaram no processo de queda de Dilma, como Cristovam Buarque e assemelhados.
E aí se entra em um dilema complicado.
A
maneira de setores do governo cooptar personalidades independentes
seria acenar com a lógica do mal menor. Ou seja, se o governo é
conservador, contra direitos humanos, venha para cá para ajudar a
amenizar o jogo. Seria o álibi para aceitar o convite.
É
uma aposta perigosa, na qual o convidado joga sua reputação. Como será
visto no futuro: como o guerreiro solitário que conseguiu preservar
algumas nesgas de direitos humanos em um governo fundamentalista; ou
como o intelectual cooptado que, em troca de migalhas, ajudou a
legitimar um governo anti-direitos-humanos?
É
o movimento ensaiado pelo Ministro da Justiça interino Alexandre de
Moraes, uma espécie de camaleão político: adapta-se às funções e às
expectativas políticas do momento.
Como
Secretário de Justiça e Cidadania do governo paulista, foi um bom
interlocutor dos setores de direitos humanos. Depois, como Secretário do
prefeito Gilberto Kassab vestiu o figurino de gestor, potencialmente
candidato. Como Secretário de Segurança de Geraldo Alckmin liberou geral
a violência da Polícia Militar.
No Ministério da Justiça ainda é um enigma atrás de uma interpretação.
Ontem
conseguiu o feito de atrair para a Secretaria de Direitos Humanos a
procuradora e jurista Flávia Piovesan, de boa reputação na área de
direitos humanos. Setores internos da SDH receberam a indicação com
alívio; a comunidade jurídica anti-impeachment com desconfiança.
Há
poucas dúvidas de que Moraes tentará utilizar a Polícia Federal na
repressão aos movimentos sociais, possivelmente em parceria com o
general Sérgio Etchgoyen, do renascido Gabinete de Segurança
Institucional, militar que mais se insurgiu contra a Comissão da Verdade
e outras iniciativas da justiça de transição.
Aí
se entra nesse paradoxo extraordinário: a atuação mais restrita de
pessoas como Flávia Piovesan servirá de álibi para a atuação ostensiva
do Ministro na repressão aos movimentos sociais.
Se
conseguir administrar as duas frentes, ou arejar o governo, Alexandre
de Moraes receberá o título de equilibrista do ano. Se não conseguir,
cada grande nome que levar para o governo será um grande nome a sair
mais à frente atirando.
Os paradoxos do PT e Dilma
Dizia-se
lá atrás que o maior trunfo de Dilma era a fraqueza estratégica da
oposição. Pode-se dizer o mesmo para o governo interino de Temer.
No Senado, não há certeza sobre os votos necessários para a confirmação do impeachment.
A
deslegitimação do governo Temer junto à opinião pública é um elemento
de pressão sobre um grupo de Senadores, pequeno mas capaz de impedir os
2/3 de votos que consolidariam a saída de Dilma. A perda de rumo do
senador Cristovam Buarque e do senador Romário são elementos
significativos desse estado de ânimo.
A favor de Temer pesam os seguintes fatores:
-
Dificilmente as forças auxiliares do golpe endossarão um segundo afastamento de presidente.
-
Dilma terá dificuldades de construir uma narrativa com credibilidade sobre o que poderia ser seu governo, em caso de rejeição do impeachment. Não adianta apenas denunciar o golpe se não apresentar à opinião pública uma Dilma viável. E Dilma não parece em condições de construir essa narrativa.
-
O PT já desistiu de Dilma.
São
curiosas essas relações Dilma-PT. Há enormes razões para ressentimentos
mútuos. E também razões de ordem prática: uma eventual volta de Dilma
não é a menor garantia de que a presidente vá conseguir se despir de
seus pecados administrativos.
Mas,
por várias razões – pela pouca legitimidade da operação que apeou Dilma
– pela primeira vez Dilma tornou-se um símbolo popular, não pelo seu
governo, mas por representar a defesa da democracia.
Há
um enorme movimento por todo o país, tendo Dilma no centro. Ao romper
com Dilma, o PT abre mão de estar à frente desse movimento.
Em breve novas lideranças surgirão nesse vácuo aberto.
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