Escrito por: Lais Fontenelle
Fonte: Outras Palavras
Em 2015, túneis de ovos de chocolate invadiram supermercados mais cedo. Precisamos tolerar este símbolo de consumismo, desigualdade e obesidade infantil? Há alternativas?
Todo ano é a mesma coisa. Mal sai de cena o bom velhinho – incitando as
crianças a desejar, e as famílias a comprar – e já entram o coelho e
seus ovos. Entre as duas datas temos ainda o carnaval, que enche as
vitrines mas também as ruas de cultura popular e alegria. Esse ano,
contudo, algo surpreendente aconteceu. Ovos de chocolate decoravam
prateleiras de supermercado ao redor do país já nas quentes férias de
janeiro, antecipando a Páscoa. E por que isso aconteceu? Não é uma data
fixa, 40 dias depois do carnaval? Seria porque as vendas de fim de ano
não renderam bons lucros? Seriam as férias escolares o motivo? A
resposta é difícil para nós, mas o mercado sabe, com certeza, o exato
porquê.
Há tempos a Páscoa deixou de ter caráter religioso para tornar-se uma
época de lucro, principalmente com o público infantil, da mesma forma
que o Natal e o Dia das Crianças. E os ovos de Páscoa estão a cada ano
mais caros, porque vêm acompanhados de brinquedos atrativos aos olhos da
criançada, que geralmente desconhece o sentido da data. Com importante
significado para as religiões católica e judaica, a Páscoa remete a
renovação e transformação – sentidos bem distantes do imposto pela
mercantilização: consumo excessivo de gordura, açúcar e brindes.
Os túneis de ovos de chocolate nos supermercados costumavam ser o
anúncio da chegada da Páscoa. Hoje, contudo, além dos brinquedos que vêm
com o ovo, há novas estratégias publicitárias para atrair os olhos dos
pequenos. Comerciais na TV mostram brinquedos em embalagens de acrílico
em formato de ovo, para que a criança peça um brinquedo ao invés de um
simples chocolate. Sem contar os seus personagens favoritos nas
embalagens – estratégia que segue exatamente o que indica pesquisa da
Interscience, que revela ser a publicidade na TV, seguida por embalagens
e personagens famosos, os principais fatores de consumo entre as
crianças.
Como se o estrago causado por tudo isso não bastasse, os conhecidos
corredores de ovos ganharam este ano um novo ingrediente: setorizados
por cores, dividem em azul e rosa os desejos de meninos e meninas, na
contramão de tudo o que tem sido discutido contra a diferenciação de
gêneros desde tenra idade. Mais parecendo corredores de lojas de
brinquedos, exibem um amontoado de brindes que recheiam os ovos – de
bonecos licenciados a mini-rádios e gloss labial.
Os brinquedos são objetos simples como canecas, maletinhas, bonecos
pequenos, normalmente de plástico e pouca durabilidade. Mas, que criança
que não vai querer ter mais um super-herói ou princesa em casa? Outra
questão, apontada por levantamento do Idec (Instituto de Defesa do
Consumidor) de 2010, é que o uso de personagens tende a encarecer o ovo,
levando os pais a gastarem mais para agradar os filhos. Isso, num país
desigual como o nosso, em que os ovos com brindes são anunciados
indiscriminadamente a todas as classes sociais, causa problemas de
orçamento. Se compararmos o preço de um chocolate de 150 gramas com o de
um ovo, chega a custar cinco, seis, até sete vezes mais. O brinquedo,
portanto, não é brinde, mas aquilo que se configura como venda casada.
Vocês podem estar se perguntando sobre qual o problema em presentear as
crianças, ocasionalmente, com ovos de chocolate. Vou além dos aspectos
éticos e filosóficos. A começar pelo fato de que, embora ovos de páscoa
sejam considerados produtos “sazonais”, consumidos em época específica
do ano, o incentivo ao seu consumo pelas crianças, para que colecionem
brinquedos, é sem dúvida preocupante num país com índices cada vez mais
alarmantes de obesidade infantil. Segundo dados da Pesquisa de Orçamento
Familiar 2008-2009, conduzida pelo IBGE e lançada em dezembro de 2010,
33,5% da população brasileira entre 5 e 9 anos já está com excesso de
peso e 14,3%, obesa. Outro, ainda mais alarmante, revela que, pela
primeira vez na história, um número crescente de crianças apresenta
problemas de coração, de respiração e diabetes tipo 2, todos
relacionados à obesidade. Esses dados bastariam.
Vou além, lembrando que dirigir publicidade a um público menor de doze
anos fere a legislação, principalmente depois da promulgação da
Resolução 163 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e
Adolescentes) em abril de 2014 – que aliás aniversaria na Páscoa. A
resolução jogou luz na legislação vigente, que considera publicidade
abusiva nos termos do artigo 37, parágrafo 2º do Código de Defesa do
Consumidor (CDC), além de ofender a proteção integral de que são
titulares todas as crianças, segundo o artigo 227 da Constituição
Federal. Não se pode ainda esquecer que a venda conjugada de produtos,
sem dar opção ao consumidor, é também proibida pelo ordenamento jurídico
brasileiro, por configurar-se em “venda casada”.
Vale destacar que a publicação da norma, ano passado, foi amplamente
divulgada pelos meios de comunicação e alvo de intenso debate entre a
sociedade civil e parte dos mercados publicitário e anunciante. E ganhou
ainda mais notoriedade quando o Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas (Inep) escolheu a publicidade infantil como tema da redação do
Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em dezembro, levando mais de 8
milhões de jovens a debruçar-se sobre o tema. Dessa forma, podemos dizer
que 2014 foi um ano simbólico e vitorioso para a defesa dos direitos
das crianças no Brasil. Contudo, o que temos observado na prática,
principalmente nesse período de Páscoa, é a persistência da veiculação,
antiética e ilegal, de publicidade voltada a um público indefeso – pela
fase peculiar de desenvolvimento na qual se encontra.
Não conseguiremos localizar onde e quando perdemos o sentido da Páscoa e
de tantas outras comemorações. Mas certamente a mercantilização desta
festa tem contribuído para que outros sentidos se percam, fazendo-se
necessária e urgente uma reflexão sobre quais valores estamos passando
às crianças. Pensando nisso, vale lembrar que em diferentes lugares do
mundo a Páscoa é comemorada de formas distintas e não menos doces.
Podemos fazer ovos pintados em casa, comprar de quem produz e inventar
brincadeiras como a caça aos ovos para tornar a celebração mais
sustentável e sem excessos.
Esperamos que em 2015 a fiscalização da resolução do Conanda se torne
efetiva, com a sociedade civil fazendo a sua parte, ao denunciar as
práticas abusivas de publicidade dirigida às crianças. Um bom exemplo é a
recente campanha de Páscoa do Movimento Infância Livre de Consumismo,
pedindo que os consumidores boicotem os produtos estampados nos túneis e
façam mais reclamações das empresas no Procon de sua cidade ou em
órgãos como o Idec, Ministério Público Federal e Projeto Criança e
Consumo do Instituto Alana. Esta Páscoa, quando a Resolução do Conanda
completa um ano, é um bom momento para comemorar e praticar, de fato, um
novo paradigma na efetivação dos direitos das crianças.
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