O Reino Unido dá um salto no escuro
Por Antonio Luiz M. C. Costa, na revista CartaCapital:
O resultado do referendo britânico sobre a permanência (Brestay) ou saída (Brexit) do Reino Unido da União Europeia provocou choque no mundo com a vitória da campanha pela saída, que amealhou 52% dos votos (17,4 milhões contra 16,1 milhões).
Entre as vítimas iniciais do Brexit estão a libra esterlina, derrubada a seu valor mais baixo desde 1986, e o primeiro-ministro David Cameron, que anunciou sua renúncia após seis anos no poder.
A jogada não parecia tão arriscada em janeiro de 2013, quando Cameron, para contentar os eurocéticos no próprio partido, prometeu conquistar melhores condições para o país na organização e submeter a permanência a consulta até o fim de 2017, caso fosse reeleito em maio de 2015.
Cameron superestimara, porém, sua influência. Para Angela Merkel e a maioria dos líderes europeus, rever o Tratado de Lisboa estava fora de cogitação, ainda mais neste período conturbado. As votações e referendos necessários para alterá-lo teriam resultados imprevisíveis e desencadeariam crises políticas capazes de pôr a pique todo o projeto europeu.
A União Europeia podia ceder apenas medidas possíveis dentro das estruturas atuais. Mesmo para isso foi preciso pressionar a França, avessa a privilégios para Londres, e os países da Europa Oriental, contrários a restrições a imigração e remessas de seus cidadãos em território britânico.
Em fevereiro, Cameron voltou de Bruxelas com ganhos modestos, cuja aprovação depende em boa parte do Europarlamento. Mesmo assim, marcou o plebiscito para 23 de junho, por receio de a deterioração da situação da Grécia ou dos refugiados piorar o quadro.
Ganhou força a campanha pela Brexit, apoiada por partidos nacionalistas e xenófobos como o UKIP de Nigel Farage e Neil Hamilton, por conservadores como o ex-prefeito de Londres Boris Johnson e o ministro da Justiça Michael Gove e por correntes da esquerda radical, inclusive o Partido Comunista, o SWP (trotskista) e organizações operárias indianas e bengalis.
As últimas pesquisas antes da quinta-feira 16 mostravam uma vantagem de 5% a 10%, acima da margem de erro, para a saída. Nessa data, a parlamentar Jo Cox, contrária à Brexit e conhecida pelo apoio a refugiados e imigrantes muçulmanos, foi assassinada por Tommy Mair, um xenófobo ligado a movimentos neofascistas e racistas britânicos, estadunidenses e sul-africanos.
As pesquisas voltaram a registrar empate técnico e o campo do Brexit sofreu uma baixa importante. A baronesa e ex-ministra conservadora Sayeeda Hussain Warsi, muçulmana de origem paquistanesa, rompeu com a campanha antieuropeia pelo viés xenófobo e racista.
Como ela, muitos imigrantes de ex-colônias britânicas da Ásia, África e Caribe antipatizam com a União Europeia por privilegiar os imigrantes europeus, frequentemente mais racistas que a maioria dos britânicos. A propaganda xenófoba de Farage e Johnson e o crime de Mair lhes mostra que nada podem esperar de bom do eventual rompimento.
Por outro lado, a campanha do Brestay recebeu um apoio, digamos, embaraçoso. Sam Bowman, diretor-executivo do Adam Smith Institute, lobby libertarian que arquitetou as privatizações de Margaret Thatcher e desde então assessora as reformas neoliberais britânicas, posicionou-se.
“Respeito muitos partidários do Brexit, mas nunca compartilhei de seu entusiasmo pela democracia. Quero liberdade e prosperidade e não abrirei mão disso para dar a meus estúpidos vizinhos mais poder sobre a minha vida. Na medida em que a UE restringe a democracia, é frequentemente para o bem, ao impedir governos de fazer coisas antiliberais. Há uma pequena chance de um Jeremy Corbyn (o líder trabalhista) ser eleito e sob o sistema britânico, ele teria poder basicamente. A UE limita esse poder, e isso é bom”.
Muito se escreveu sobre as peculiaridades britânicas que teriam tornado possível o Brexit, entre eles a nostalgia do Império Britânico. Thatcher e seu projeto teriam provavelmente naufragado em 1982 se a Guerra das Malvinas não lhes proporcionasse sobrevida ao reviver brevemente a fantasia imperial, ainda viva em Cameron ao se supor capaz de ditar um novo tratado a seus 27 sócios.
Entretanto, por mais que esse passado pese na memória dos idosos, na arrogância dos tabloides e na linguagem da campanha, as razões básicas do descontentamento com a UE são as mesmas de outros países. Na Grécia, Itália, França, Espanha e Suécia, a rejeição popular às políticas de Bruxelas é maior que no Reino Unido.
Algumas razões são reacionárias: sonho de retornar a um passado idealizado de grandeza nacional, racismo, egoísmo nacional ante problemas alheios e rejeição dos conceitos europeus de direitos humanos em nome da moral tradicional e de penas mais duras contra o crime.
Outras são de esquerda: em nome da “austeridade”, a UE impõe a vontade de tecnocratas não eleitos, esvazia a democracia e bloqueia reformas progressistas para atender ao interesse das finanças e da grande indústria, principalmente a alemã. Enquanto algumas correntes da esquerda ainda julgam possível reformar a organização, outras a consideram irrecuperável ou creem ser necessário um choque como a Brexit para abrir caminho a mudanças reais.
São questões pertinentes. Só os europeístas mais doutrinários negam o déficit democrático da União Europeia, o afastamento dos eleitores das decisões sobre seu destino e a camisa de força imposta às políticas sociais e econômicas por Bruxelas e pelo Banco Central Europeu. E só os liberais mais dogmáticos, como aqueles do Adam Smith Institute, não dão valor à democracia.
A proposta de romper com a UE apela tanto à direita quanto à esquerda e não é facilmente combatida com advertências sobre a possível queda do PIB ou da cotação da libra. Além de a credibilidade dos economistas ser muito duvidosa desde a crise de 2008, muitos pagariam o preço para recuperar o controle sobre o próprio destino, assim como aceitariam certa redução no padrão de vida para deixar um casamento ou um emprego tóxicos.
Entretanto, muitos se iludem quanto às consequências. À direita, a ilusão é que a ruptura eliminaria os custos e obrigações de integrar a UE sem afetar os negócios. Isso é falso: países fora da organização, como a Noruega, precisam acatar a maioria de suas normas e contribuir financeiramente para seus programas, sem ter voto para influenciá-los. E o Reino Unido tem mais a perder que a maioria dos seus sócios, inclusive o papel central da City nas finanças europeias.
E talvez a Escócia e a Irlanda do Norte prefiram Bruxelas a Londres, como indicam os resultados: na Escócia, 62% votaram para permanecer na UE, enquanto 55,8% dos norte-irlandeses também preferiam ficar.
Imediatamente após o anúncio do resultado, o vice-primeiro ministro da Irlanda do Norte, Martin McGuinness, solicitou a realização de um referendo para reunificação com a Irlanda. Ao mesmo tempo, a primeira-ministra da Escócia, Nicola Sturgeon, anunciou que seu governo já está realizando os preparativos para realizar um novo referendo de independência – em 2014, a permanência no Reino Unido ganhou a disputa por 55,3% dos votos. "[O Brexit] é uma mudança material significativa nas circunstâncias", disse Sturgeon.
À esquerda, a ilusão é de que a saída abriria caminho à social-democracia. No Reino Unido, que não pertence à Zona do Euro, o desmantelamento do bem-estar social é obra mais da política nacional do que das exigências de Bruxelas. O Brexit seria uma vitória da ala mais regressista e chauvinista do Partido Conservador, unida aos xenófobos do UKIP. O resultado mais provável seria a expulsão de imigrantes, a privatização do sistema de saúde, salários ainda mais baixos e mudança das fábricas inglesas para a Malásia, em vez da Eslováquia ou Polônia.
Mais uma vez, a direita populista se apropriaria da revolta das massas para direcioná-la em favor de um setor da elite. Por outro lado, o Brestay seria interpretado como um voto de confiança nas políticas neoliberais e antidemocráticas de Bruxelas e prolongaria a sensação de paralisia e falta de alternativas.
Tratava-se de uma escolha entre a imobilidade e o imponderável, pois a ruptura pode deflagrar o crescimento incontrolável de movimentos antieuropeus como a Frente Nacional francesa, a Alternativa para a Alemanha e o italiano Movimento Cinco Estrelas, a exigência de novos referendos e a desintegração do euro e da União Europeia, com consequências imprevisíveis para a economia e o equilíbrio geopolítico de todo o mundo.
O resultado do referendo britânico sobre a permanência (Brestay) ou saída (Brexit) do Reino Unido da União Europeia provocou choque no mundo com a vitória da campanha pela saída, que amealhou 52% dos votos (17,4 milhões contra 16,1 milhões).
Entre as vítimas iniciais do Brexit estão a libra esterlina, derrubada a seu valor mais baixo desde 1986, e o primeiro-ministro David Cameron, que anunciou sua renúncia após seis anos no poder.
A jogada não parecia tão arriscada em janeiro de 2013, quando Cameron, para contentar os eurocéticos no próprio partido, prometeu conquistar melhores condições para o país na organização e submeter a permanência a consulta até o fim de 2017, caso fosse reeleito em maio de 2015.
Cameron superestimara, porém, sua influência. Para Angela Merkel e a maioria dos líderes europeus, rever o Tratado de Lisboa estava fora de cogitação, ainda mais neste período conturbado. As votações e referendos necessários para alterá-lo teriam resultados imprevisíveis e desencadeariam crises políticas capazes de pôr a pique todo o projeto europeu.
A União Europeia podia ceder apenas medidas possíveis dentro das estruturas atuais. Mesmo para isso foi preciso pressionar a França, avessa a privilégios para Londres, e os países da Europa Oriental, contrários a restrições a imigração e remessas de seus cidadãos em território britânico.
Em fevereiro, Cameron voltou de Bruxelas com ganhos modestos, cuja aprovação depende em boa parte do Europarlamento. Mesmo assim, marcou o plebiscito para 23 de junho, por receio de a deterioração da situação da Grécia ou dos refugiados piorar o quadro.
Ganhou força a campanha pela Brexit, apoiada por partidos nacionalistas e xenófobos como o UKIP de Nigel Farage e Neil Hamilton, por conservadores como o ex-prefeito de Londres Boris Johnson e o ministro da Justiça Michael Gove e por correntes da esquerda radical, inclusive o Partido Comunista, o SWP (trotskista) e organizações operárias indianas e bengalis.
As últimas pesquisas antes da quinta-feira 16 mostravam uma vantagem de 5% a 10%, acima da margem de erro, para a saída. Nessa data, a parlamentar Jo Cox, contrária à Brexit e conhecida pelo apoio a refugiados e imigrantes muçulmanos, foi assassinada por Tommy Mair, um xenófobo ligado a movimentos neofascistas e racistas britânicos, estadunidenses e sul-africanos.
As pesquisas voltaram a registrar empate técnico e o campo do Brexit sofreu uma baixa importante. A baronesa e ex-ministra conservadora Sayeeda Hussain Warsi, muçulmana de origem paquistanesa, rompeu com a campanha antieuropeia pelo viés xenófobo e racista.
Como ela, muitos imigrantes de ex-colônias britânicas da Ásia, África e Caribe antipatizam com a União Europeia por privilegiar os imigrantes europeus, frequentemente mais racistas que a maioria dos britânicos. A propaganda xenófoba de Farage e Johnson e o crime de Mair lhes mostra que nada podem esperar de bom do eventual rompimento.
Por outro lado, a campanha do Brestay recebeu um apoio, digamos, embaraçoso. Sam Bowman, diretor-executivo do Adam Smith Institute, lobby libertarian que arquitetou as privatizações de Margaret Thatcher e desde então assessora as reformas neoliberais britânicas, posicionou-se.
“Respeito muitos partidários do Brexit, mas nunca compartilhei de seu entusiasmo pela democracia. Quero liberdade e prosperidade e não abrirei mão disso para dar a meus estúpidos vizinhos mais poder sobre a minha vida. Na medida em que a UE restringe a democracia, é frequentemente para o bem, ao impedir governos de fazer coisas antiliberais. Há uma pequena chance de um Jeremy Corbyn (o líder trabalhista) ser eleito e sob o sistema britânico, ele teria poder basicamente. A UE limita esse poder, e isso é bom”.
Muito se escreveu sobre as peculiaridades britânicas que teriam tornado possível o Brexit, entre eles a nostalgia do Império Britânico. Thatcher e seu projeto teriam provavelmente naufragado em 1982 se a Guerra das Malvinas não lhes proporcionasse sobrevida ao reviver brevemente a fantasia imperial, ainda viva em Cameron ao se supor capaz de ditar um novo tratado a seus 27 sócios.
Entretanto, por mais que esse passado pese na memória dos idosos, na arrogância dos tabloides e na linguagem da campanha, as razões básicas do descontentamento com a UE são as mesmas de outros países. Na Grécia, Itália, França, Espanha e Suécia, a rejeição popular às políticas de Bruxelas é maior que no Reino Unido.
Algumas razões são reacionárias: sonho de retornar a um passado idealizado de grandeza nacional, racismo, egoísmo nacional ante problemas alheios e rejeição dos conceitos europeus de direitos humanos em nome da moral tradicional e de penas mais duras contra o crime.
Outras são de esquerda: em nome da “austeridade”, a UE impõe a vontade de tecnocratas não eleitos, esvazia a democracia e bloqueia reformas progressistas para atender ao interesse das finanças e da grande indústria, principalmente a alemã. Enquanto algumas correntes da esquerda ainda julgam possível reformar a organização, outras a consideram irrecuperável ou creem ser necessário um choque como a Brexit para abrir caminho a mudanças reais.
São questões pertinentes. Só os europeístas mais doutrinários negam o déficit democrático da União Europeia, o afastamento dos eleitores das decisões sobre seu destino e a camisa de força imposta às políticas sociais e econômicas por Bruxelas e pelo Banco Central Europeu. E só os liberais mais dogmáticos, como aqueles do Adam Smith Institute, não dão valor à democracia.
A proposta de romper com a UE apela tanto à direita quanto à esquerda e não é facilmente combatida com advertências sobre a possível queda do PIB ou da cotação da libra. Além de a credibilidade dos economistas ser muito duvidosa desde a crise de 2008, muitos pagariam o preço para recuperar o controle sobre o próprio destino, assim como aceitariam certa redução no padrão de vida para deixar um casamento ou um emprego tóxicos.
Entretanto, muitos se iludem quanto às consequências. À direita, a ilusão é que a ruptura eliminaria os custos e obrigações de integrar a UE sem afetar os negócios. Isso é falso: países fora da organização, como a Noruega, precisam acatar a maioria de suas normas e contribuir financeiramente para seus programas, sem ter voto para influenciá-los. E o Reino Unido tem mais a perder que a maioria dos seus sócios, inclusive o papel central da City nas finanças europeias.
E talvez a Escócia e a Irlanda do Norte prefiram Bruxelas a Londres, como indicam os resultados: na Escócia, 62% votaram para permanecer na UE, enquanto 55,8% dos norte-irlandeses também preferiam ficar.
Imediatamente após o anúncio do resultado, o vice-primeiro ministro da Irlanda do Norte, Martin McGuinness, solicitou a realização de um referendo para reunificação com a Irlanda. Ao mesmo tempo, a primeira-ministra da Escócia, Nicola Sturgeon, anunciou que seu governo já está realizando os preparativos para realizar um novo referendo de independência – em 2014, a permanência no Reino Unido ganhou a disputa por 55,3% dos votos. "[O Brexit] é uma mudança material significativa nas circunstâncias", disse Sturgeon.
À esquerda, a ilusão é de que a saída abriria caminho à social-democracia. No Reino Unido, que não pertence à Zona do Euro, o desmantelamento do bem-estar social é obra mais da política nacional do que das exigências de Bruxelas. O Brexit seria uma vitória da ala mais regressista e chauvinista do Partido Conservador, unida aos xenófobos do UKIP. O resultado mais provável seria a expulsão de imigrantes, a privatização do sistema de saúde, salários ainda mais baixos e mudança das fábricas inglesas para a Malásia, em vez da Eslováquia ou Polônia.
Mais uma vez, a direita populista se apropriaria da revolta das massas para direcioná-la em favor de um setor da elite. Por outro lado, o Brestay seria interpretado como um voto de confiança nas políticas neoliberais e antidemocráticas de Bruxelas e prolongaria a sensação de paralisia e falta de alternativas.
Tratava-se de uma escolha entre a imobilidade e o imponderável, pois a ruptura pode deflagrar o crescimento incontrolável de movimentos antieuropeus como a Frente Nacional francesa, a Alternativa para a Alemanha e o italiano Movimento Cinco Estrelas, a exigência de novos referendos e a desintegração do euro e da União Europeia, com consequências imprevisíveis para a economia e o equilíbrio geopolítico de todo o mundo.
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