Livro revela memórias de uma "Guerra Suja” da Ditadura
Enviado por luisnassif
Por Julio Ferreira
Em 1985, o repórter Luiz Carlos Sarmento revelou na Fatos a “metodologia” da ditadura: injeções de arsênico, corpos lançados em fornos, “queima de arquivo”... Tudo o que o ex-delegado Cláudio Guerra confirma agora no seu livro “Memórias de Uma Guerra Suja”
Do Blog Panis Cum Ovum
por José Esmeraldo Gonçalves
Um agente da ditadura, o ex-delegado do Dops Claudio Guerra, acaba de lançar o livro“Memórias de uma Guerra Suja” (Topbooks). Em depoimento aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, Guerra, hoje com 71 anos, conta que pelo menos dez opositores do regime militar foram executados e tiveram seus corpos incinerados no forno de uma usina de açúcar no Estado do Rio. Entre outras revelações, garante que o delegado Sérgio Fleury, uma espécie de “muso” dos generais da ditadura, foi assassinado, assim como o jornalista Alexandre Von Baumgarten, como queima de arquivo, a mando dos militares. Guerra joga alguma luz nos porões da ditadura e também na memória de quem conviveu com o repórter Luiz Carlos Sarmento, que morreu em 2005, aos 55 anos.
Em 1985, trabalhei com o Sarmento na Fatos, revista dirigida por Carlos Heitor Cony. A Fatos era um projeto ousado. Tentava dar à Bloch, naquele ano em que se instalava a Nova República, uma moderna publicação de informação, crítica e análise. Algo que não combinava com a “cultura” da casa. Problemas políticos, editoriais e um visível boicote interno abateram a revista em plena decolagem. Foi um cometa jornalístico que durou apenas um ano e meio, como revela o livro “Aconteceu na Manchete – as histórias que ninguém contou”. Mas deixou algumas marcas. Uma delas, a atuação do repórter Luiz Carlos Sarmento, que cobriu o Caso Baumgarten. O jornalista Alexandre Von Baumgarten, que era um colaborador do regime, foi encontrado morto na Praia da Macumba, no Rio, alguns dias depois de ter saído para uma pescaria. Baumgarten chegou a dirigir a revista O Cruzeiro em uma fase de “parceria” com a ditadura, um projeto editorial destinado a “melhorar a imagem do governo”. Para isso, recebeu verbas gordas direto do cofre da viúva federal. A investigação da morte do jornalista se arrastava a cargo do delegado Ivan Vasques. No início, a polícia até localizou e ouviu testemunhas que apontaram para uma linha de investigação que conduzia ao SNI. A reportagem de Sarmento informava que “depois de um início promissor, sob a direção do delegado Ivan Vasques, as diligências começam a esbarrar num labirinto de pistas e suspeitos. O certo é que três pessoas foram mortas por agentes ligados ao sistema de informação e repressão”. O título da reportagem era: “Baumgarten: Entre Verdades e Mentiras, o Caso Ameaça Dar em Nada”. Se a polícia não avançava, entrou em cena Sarmento, que propôs a Cony partir para sua própria investigação. Dizia que tinha boas fontes que o levariam a novos fatos. Cony topou e Sarmento foi a campo. Como trabalharia em várias frentes e teria pouco mais de uma semana para entregar a matéria, dividiu a tarefa com os repórteresCarlos Augusto Pinto, Maria Alice Mariano e Carter Anderson, o fotógrafo Roberto Amorim e os ilustradores Haroldo Zaluar e Paulo Melo.
Os fornos crematórios da ditadura
Coube a ele, Sarmento, percorrer o “roteiro da morte”, onde levantou a “metodologia” da repressão. A mesma que o ex-delegado do Dops, Claudio Guerra, confirma no “Memórias de Uma Guerra Suja”, que fala em corpos incinerados em fornos industriais. Guerra cita uma usina de açúcar. Sarmento descobriu – e Roberto Amorim fotografou – uma fábrica de processamento de farinha de peixe na foz no Rio Suruí, nos fundos da Baía de Guanabara. Ali havia fornos que transformavam peixes em farelo. Os donos das instalações eram militares da reserva. O “marketing” da morte nos anos de chumbo incluiu injeções mortais de morfina e arsênico, atentados que simulavam acidentes etc. A Fatos publicou tudo isso em junho de 1985. Foram dez páginas de fotos e textos que um agitado Sarmento batucou na madrugada do fechamento na velha Remington que tremia a cada ponto e vírgula. O repórter só parava de teclar para morder um pão francês com ovo frito, o hoje mítico sanduíche de pão com ovo, iguaria servida nos fechamentos que inspirou o nome deste blog. A reportagem repercutiu, principalmente entre colegas de outras redações, mas não se pode dizer que foi bem recebida em bolsões de direita na própria Bloch. Ao contrário, a Fatos cavava ali mais um palmo da sua cova. Mas a nossa “popularidade” interna despencou na mesma proporção em que cresceu a nossa admiração pelo saudoso Luiz Carlos Sarmento.
Caso Baumgarten: Código 12, a sigla fatal
Como editor-executivo da Fatos, eu recebia de Luiz Carlos Sarmento relatos diários sobre o andamento da matéria que ele apurava em junho de 1985. A empolgação do repórter contagiava a equipe. Na reta final, com a matéria quase pronta, Cony me pediu que fizesse um complemento sobre a atuação do SNI naqueles primeiros meses da Nova República. Para “contextualizar”, como se diz hoje. Consegui alguns contatos - uma dessas fontes foi passada pelo próprio Sarmento – para reconstituir uma operação em curso, na época. Revelava-se que pouco depois da eleição de Tancredo Neves, agentes do SNI passaram a cruzar o país com o objetivo de recolher documentos arquivados nas assessorias de Segurança e Informação e nos Dops. Eram comandos de “queima de arquivo”. Literal e simbolicamente. Havia pistas a apagar e pessoas a tirar do caminho, eram antigos colaboradores que, por um motivo ou outro, se tornaram “inconvenientes”. Era a hora, por exemplo, de passar borracha ou chumbo sobre traços da Operação Código 12, a famosa aliança entre a Dina chilena, o SNI e serviços argentinos e uruguaios que implantou o terror no Cone Sul em meados dos anos 70. A repressão pretendia afastar até mesmo suspeitas ou indícios correntes de que as mortes de JK, Jango, Lacerda estariam ligadas ao atentado que vitimou o chileno Orlando Letelier. Noutras circunstâncias, suspeitava-se que o Código 12 teria sido aplicado contra a figurinista Zuzu Angel e o delegado Sergio Fleury. Foi essa onda que fez marola nos anos 70, voltou a rolar a partir de 1982, ano da bomba do Riocentro, e se intensificou em janeiro de 1985, que levou o corpo de Baumgarten a uma praia deserta. Se o livro ”Memórias de uma Guerra Suja” traz detalhes que referendam o modus operandi da ditadura, a Fatos, graças a Sarmento, saiu na frente. Vinte e sete anos na frente. Foi o que Carlos Heitor Cony me lembrou em telefonema, ontem. Por isso, o registro neste blog. No mínimo, fica a nossa homenagem a um grande repórter: Luiz Carlos Sarmento, o caçador de notícias.
Em 1985, o repórter Luiz Carlos Sarmento revelou na Fatos a “metodologia” da ditadura: injeções de arsênico, corpos lançados em fornos, “queima de arquivo”... Tudo o que o ex-delegado Cláudio Guerra confirma agora no seu livro “Memórias de Uma Guerra Suja”
Do Blog Panis Cum Ovum
por José Esmeraldo Gonçalves
Um agente da ditadura, o ex-delegado do Dops Claudio Guerra, acaba de lançar o livro“Memórias de uma Guerra Suja” (Topbooks). Em depoimento aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, Guerra, hoje com 71 anos, conta que pelo menos dez opositores do regime militar foram executados e tiveram seus corpos incinerados no forno de uma usina de açúcar no Estado do Rio. Entre outras revelações, garante que o delegado Sérgio Fleury, uma espécie de “muso” dos generais da ditadura, foi assassinado, assim como o jornalista Alexandre Von Baumgarten, como queima de arquivo, a mando dos militares. Guerra joga alguma luz nos porões da ditadura e também na memória de quem conviveu com o repórter Luiz Carlos Sarmento, que morreu em 2005, aos 55 anos.
Em 1985, trabalhei com o Sarmento na Fatos, revista dirigida por Carlos Heitor Cony. A Fatos era um projeto ousado. Tentava dar à Bloch, naquele ano em que se instalava a Nova República, uma moderna publicação de informação, crítica e análise. Algo que não combinava com a “cultura” da casa. Problemas políticos, editoriais e um visível boicote interno abateram a revista em plena decolagem. Foi um cometa jornalístico que durou apenas um ano e meio, como revela o livro “Aconteceu na Manchete – as histórias que ninguém contou”. Mas deixou algumas marcas. Uma delas, a atuação do repórter Luiz Carlos Sarmento, que cobriu o Caso Baumgarten. O jornalista Alexandre Von Baumgarten, que era um colaborador do regime, foi encontrado morto na Praia da Macumba, no Rio, alguns dias depois de ter saído para uma pescaria. Baumgarten chegou a dirigir a revista O Cruzeiro em uma fase de “parceria” com a ditadura, um projeto editorial destinado a “melhorar a imagem do governo”. Para isso, recebeu verbas gordas direto do cofre da viúva federal. A investigação da morte do jornalista se arrastava a cargo do delegado Ivan Vasques. No início, a polícia até localizou e ouviu testemunhas que apontaram para uma linha de investigação que conduzia ao SNI. A reportagem de Sarmento informava que “depois de um início promissor, sob a direção do delegado Ivan Vasques, as diligências começam a esbarrar num labirinto de pistas e suspeitos. O certo é que três pessoas foram mortas por agentes ligados ao sistema de informação e repressão”. O título da reportagem era: “Baumgarten: Entre Verdades e Mentiras, o Caso Ameaça Dar em Nada”. Se a polícia não avançava, entrou em cena Sarmento, que propôs a Cony partir para sua própria investigação. Dizia que tinha boas fontes que o levariam a novos fatos. Cony topou e Sarmento foi a campo. Como trabalharia em várias frentes e teria pouco mais de uma semana para entregar a matéria, dividiu a tarefa com os repórteresCarlos Augusto Pinto, Maria Alice Mariano e Carter Anderson, o fotógrafo Roberto Amorim e os ilustradores Haroldo Zaluar e Paulo Melo.
Os fornos crematórios da ditadura
Coube a ele, Sarmento, percorrer o “roteiro da morte”, onde levantou a “metodologia” da repressão. A mesma que o ex-delegado do Dops, Claudio Guerra, confirma no “Memórias de Uma Guerra Suja”, que fala em corpos incinerados em fornos industriais. Guerra cita uma usina de açúcar. Sarmento descobriu – e Roberto Amorim fotografou – uma fábrica de processamento de farinha de peixe na foz no Rio Suruí, nos fundos da Baía de Guanabara. Ali havia fornos que transformavam peixes em farelo. Os donos das instalações eram militares da reserva. O “marketing” da morte nos anos de chumbo incluiu injeções mortais de morfina e arsênico, atentados que simulavam acidentes etc. A Fatos publicou tudo isso em junho de 1985. Foram dez páginas de fotos e textos que um agitado Sarmento batucou na madrugada do fechamento na velha Remington que tremia a cada ponto e vírgula. O repórter só parava de teclar para morder um pão francês com ovo frito, o hoje mítico sanduíche de pão com ovo, iguaria servida nos fechamentos que inspirou o nome deste blog. A reportagem repercutiu, principalmente entre colegas de outras redações, mas não se pode dizer que foi bem recebida em bolsões de direita na própria Bloch. Ao contrário, a Fatos cavava ali mais um palmo da sua cova. Mas a nossa “popularidade” interna despencou na mesma proporção em que cresceu a nossa admiração pelo saudoso Luiz Carlos Sarmento.
Caso Baumgarten: Código 12, a sigla fatal
Como editor-executivo da Fatos, eu recebia de Luiz Carlos Sarmento relatos diários sobre o andamento da matéria que ele apurava em junho de 1985. A empolgação do repórter contagiava a equipe. Na reta final, com a matéria quase pronta, Cony me pediu que fizesse um complemento sobre a atuação do SNI naqueles primeiros meses da Nova República. Para “contextualizar”, como se diz hoje. Consegui alguns contatos - uma dessas fontes foi passada pelo próprio Sarmento – para reconstituir uma operação em curso, na época. Revelava-se que pouco depois da eleição de Tancredo Neves, agentes do SNI passaram a cruzar o país com o objetivo de recolher documentos arquivados nas assessorias de Segurança e Informação e nos Dops. Eram comandos de “queima de arquivo”. Literal e simbolicamente. Havia pistas a apagar e pessoas a tirar do caminho, eram antigos colaboradores que, por um motivo ou outro, se tornaram “inconvenientes”. Era a hora, por exemplo, de passar borracha ou chumbo sobre traços da Operação Código 12, a famosa aliança entre a Dina chilena, o SNI e serviços argentinos e uruguaios que implantou o terror no Cone Sul em meados dos anos 70. A repressão pretendia afastar até mesmo suspeitas ou indícios correntes de que as mortes de JK, Jango, Lacerda estariam ligadas ao atentado que vitimou o chileno Orlando Letelier. Noutras circunstâncias, suspeitava-se que o Código 12 teria sido aplicado contra a figurinista Zuzu Angel e o delegado Sergio Fleury. Foi essa onda que fez marola nos anos 70, voltou a rolar a partir de 1982, ano da bomba do Riocentro, e se intensificou em janeiro de 1985, que levou o corpo de Baumgarten a uma praia deserta. Se o livro ”Memórias de uma Guerra Suja” traz detalhes que referendam o modus operandi da ditadura, a Fatos, graças a Sarmento, saiu na frente. Vinte e sete anos na frente. Foi o que Carlos Heitor Cony me lembrou em telefonema, ontem. Por isso, o registro neste blog. No mínimo, fica a nossa homenagem a um grande repórter: Luiz Carlos Sarmento, o caçador de notícias.
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