Portugal: tanto a navegar, por Túlio Muniz
Esse artigo visa levar ao público brasileiro uma compreensão contextualizada do momento eleitoral em Portugal.
Portugal: tanto a navegar.
por Túlio Muniz
Esse artigo visa levar ao público brasileiro uma compreensão contextualizada do momento eleitoral em Portugal. Em outro artigo trataremos de estabelecer comparações e parâmetros que possam, talvez, levar ao que podemos aprender com a trajetória recente da política lusitana. Esta, embora tenha pela frente a perspectiva real de quatro anos de governo de centro-esquerda, vê chegar ao fim a mais profícua coligação progressista já registrada na História contemporânea não só nacional, mas também europeia, pois ascendeu e se manteve quando viu ruir governos de esquerda na Europa, como dos socialistas François Holande (2012-2017) e o pela frente Zyriza, na Grécia (2015-2019).
Praticamente encerradas as eleições em Portugal (há ainda quatro assentos no Parlamento a preencher, com votos de residentes no exterior, a serem apurados em 10 de Fevereiro), o Partido Socialista (PS, de centro-esquerda) tem já garantidos mais quatro anos de governo por ter obtido maioria absoluta, com 117 eleitos, 41,8% em 230 lugares. Antônio Costa, o primeiro-ministro desde 2015, quando seu PS perdeu em número de votos para o centro direitista PSD (que, entretanto, não obteve maioria), é o artífice da consolidação do seu partido como força hegemônica.
Nos últimos sete anos o PS obteve por duas vezes (2015 e 2019) o aval do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa para compor um governo que foi sustentado até recentemente pelos deputados dodo Partido Comunista (PCP) e do Partido Ecologista Os Verdes (que há década mantêm-se coligados na CDU- Coligação Democrática Unitária) e do Bloco de Esquerda (BE). Formaram a coligação “Geringonça”, assim chamada por nunca antes ter havido um governo características, e tampouco ter obtido autorização do Presidente para tal. Em Portugal o primeiro-ministro é chefe de Governo, mas o Presidente é Chefe de Estado, cabendo-lhe, entre outros papéis, o de destituir a Assembleia da República – lá não existe Senado.
Um estranhamento do BE e da CDU com a proposta orçamentária do PS para 2022, apresentada em Novembro passado, pôs fim à “Geringonça”, e o governo caiu. Houve severos desentendimentos em torno de investimentos na Educação e no Sistema Nacional de Saúde (SNS, o SUS de lá), onde de fato há um déficit imenso de pessoal e de bons salários, o que se agravou com a pandemia. O BE e a CDU, situados à esquerda do PS, cobravam ainda aumento substancial das pensões, dos incentivos à habitação e do reajuste salário mínimo já em 2022, quando chegou a apenas 705 euros e é dos menores da Zona Euro, e Costa prometeu algo em torno de 850 apenas para 2025, valor que BE e CDU exigiam para já.
À direita, o Partido Social Democrata (PSD, centro direita liberal), histórica força política que se alterna com o PS no governo, arregaçou mangas e esteve perto de ameaçar o adversário na disputa, chegando mesmo a ultrapassá-lo em pesquisa de intenção de votos às vésperas da eleição, o que não se concretizou no resultado final, com o PSD obtendo menos de 30% dos votos. Costa baseou sua campanha clamando por votos que lhe dessem maioria absoluta, e conseguiu, erodindo a esquerda (o BE caiu de 19 para cinco deputados, a CDU caiu de 12 para seis). É certo que também roubou votos do PSD, este combalido pela ascensão da Iniciativa Liberal (IL, um deputado em 2019 e oito agora) e, principalmente, do crescimento do Chega (um deputado em 2019, agora12), liderado por André Ventura, que sustenta discurso xenófobo, racista (principalmente contra imigração e a população cigana portuguesa) e antieuropeu.
Se Costa abrirá ou não mais espaço para a esquerda, é questão a conferir. O BE e a CDU sustentaram a “Geringonça”, não exigiam cargos, é verdade, se omitiam de governar, mas não de criticar. O processo eleitoral lhes impôs a pecha de terem “abandonado” Costa na questão orçamentária, e pagaram caro com perda brutal de representação.
Contudo, Costa e todo o PS certamente se recordam da lições resultantes da primeira (e até então única) maioria absoluta obtida por um governo central antes do seu. Foi justamente do PS, sob liderança de José Sócrates, em 2005, quando o partido elegeu 121 deputados, maioria que não garantiu avanços sociais e econômicos consistentes. Sócrates cedeu a pressões da direita, fosse nos costumes ou na economia, com reflexos deletérios.
Foi nesse período, por exemplo, por o PS ceder à pressões políticas e sócias xenófobas, que caiu o direito automático a nacionalidade portuguesa para nascidos que eram filhos de estrangeiros residentes, justo no país com taxa demográfica deficitária, e mesmo hoje a nova lei de imigração de 2021 não reestabeleceu o chamado jus sanguinis, o ‘direito de sangue’, embora tenha avançado em muitos outros pontos. Também sob maioria do PS, foram reduzidas, mas não abolida, as chamadas Taxas Moderadoras pagas por atendimentos no SNS. A Saúde é pública, mas cada serviço é cobrado uma taxa (que hoje é de 5 euros no caso de uma consulta médica, por exemplo), e tampouco findaram as taxas anuais de matrícula em cursos de graduação nas universidades públicas, a chamada ‘propina’, que sob Sócrates foi mantida em 900 euros, onerosa para a imensa maioria em Portugal, país de classe média majoritária e onde uma renda familiar mensal acima de 2 mil euros é para poucas famílias, e onde 20% ainda vivem na pobreza. Costa reduziu a ‘propina’ para 600 euros, é ainda alta, mas de certo lhe valeu mais simpatia diante do público de jovens estudantes, onde o BE e o PCP tinham base considerável (o BE, por exemplo, não reelegeu seu deputado em Coimbra, a mais emblemática cidade universitária do país).
Ainda sob o governo majoritário de Sócrates foram também relevantes as manifestações de trabalhadoras e trabalhadores na Educação, chegando a provocar, em Dezembro de 2007, as maiores manifestações de rua registradas no país contra um governo desde a Revolução dos Cravos, em 1974, que pôs fim a Ditadura de quase 50 anos.
Titubeante e desgastado, em 2009 Sócrates se manteve no governo, mas já sem maioria absoluta. O PS governou com maioria simples (97 deputados) somente porque PSD (81 deputados em 2009) e CDS (direita conservadora, então com 10 deputados, agora em vias de desaparecer, pois não elegeu ninguém) não somavam votos suficientes para compor maioria alguma e praticamente eram os únicos partidos no campo da direita (não existiam ainda partidos como o Chega com representação).
Mantendo um programa econômico de austeridade econômica, foi ainda no segundo governo Sócrates que Portugal sucumbiu aos ditames da Troika, intervenção econômica encabeçada pelo Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o FMI, com efeito devastador, conforme resumiu o jornal Público, em 07 de Setembro de 2012: “Ainda em 2010, foi determinado o congelamento de admissões e progressões de carreira para a função pública. É aprovado um aumento do IVA, de 20% para 21% (taxa normal), de 12% para 13% (taxa intermédia) e de 5% para 6% (taxa reduzida). É aprovada a tributação das mais-valias bolsistas a uma taxa de 20%. E os rendimentos superiores a 150 mil euros anuais ficam sujeitos a uma taxa de IRS de 45%”.
Enfraquecido, de pouco valeu o histórico de maioria absoluta do primeiro governo, e o segundo governo Sócrates caiu em 2011, sendo sucedido por Passos Coelho (PSD, 2011-2015), totalmente submisso à Troika, que mergulhou Portugal no que talvez tenha sido a maior crise econômica de sua história recente. Passos Coelho foi tão devastador que, de certa maneira, possibilitou a ascensão da “Geringonça”, pois em 2015, ainda que o PSD tenha saído das urnas com maioria dos votos, mesmo sendo um filiado seu, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa optou por experimentar uma inédita proposta de governação – a “Geringonça” – do que estender a liderança de Coelho, hoje fora da política, renegado pelo próprio partido.
Voltando ao António Costa 2022, que pelo histórico político e pessoal, fortalecido pela condução de um dos mais bem sucedidos programas de combate à Covid-19 no mundo, é cotado para suceder Ursula Leyen na presidência da Comissão Europeia. Ainda que a ascensão da extrema direita representada pelo Chega inspire atenção, Costa tem agora autonomia para governar sem necessidade de reeditar a “Geringonça”. Contudo, conforme o próprio afirmou em discurso de vitória, “maioria absoluta não é poder absoluto, não significa governar sozinho”.
Resta acompanhar seus passos para saber se o antigo e carismático prefeito de Lisboa (2007-2015), responsável pelo avanço de modernização da capital, o filho de imigrante (seu pai Orlando, era nascido em Moçambique e descendente de indianos de Goa, antiga colônia lusa, daí Costa ser o primeiro chefe de governo europeu não-branco), se o político que idealizou e propôs a “Geringonça” e graças a ela impôs avanços importantes, cumprirá o que afirmou no discurso de vitória, buscando ampliar apoio e alianças, ou se aprofundará na condução de uma economia liberal ao centro, alinhado ao Banco Central Europeu, que foi a principal causa da derrocada da maioria de Sócrates e de seu segundo governo.
Túlio Muniz. Historiador (com Graduação e Mestrado pela Universidade Federal do Ceará), com Doutorado na Área de Sociologia em Pós-Colonialismo e Cidadania Global pelo Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia (CES-FEUC) da Universidade de Coimbra. É Professor Adjunto na Faculdade de Educação (FACED-UFC). Também é Jornalista Profissional.