O golpe de empresários e militares.
Eis artigo.
A morte de Henning Boilesen, executivo do Grupo Ultra, em abril de 1971, na cidade de São Paulo, costuma ser apresentada como um ato de terror da Ação Libertadora Nacional (ALN) e do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) contra um sádico que aprazia-se em levantar recursos para a Operação Bandeirantes (Oban) e participar pessoalmente das torturas contra esquerdistas que se opunham à ditadura implantada em 1964. Mais recentemente, à medida que avançavam os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de dezenas de outras comissões e o “aniversário” de 50 anos do golpe de 1964, emergiram muitos outros nomes de empresas que se articulavam entre si e com o Estado brasileiro para ir muito além do sadismo individual que certamente perpassa a tortura.
Há um ano o Arquivo Público de São Paulo revelou os registros de entrada de empresários na sede do Departamento de Ordem Pública (Dops), que no estado era um dos centros oficiais de tortura.
“Não há dados precisos, mas sabe-se que foi expressivo o fluxo de dinheiro para a repressão, a partir de coletas na Fiesp e em reuniões promovidas por Gastão de Bueno Vidigal (Banco Mercantil de São Paulo), João Batista Leopoldo Figueiredo (Itaú e Scania), Paulo Ayres Filho (Pinheiros Produtos Farmacêuticos), e o advogado Paulo Sawaia, entre outros. Empresas como Ultragaz, Ford, Volkswagen, Chrysler e Supergel auxiliaram também na infraestrutura, fornecendo carros blindados, caminhões e até refeições pré-cozidas”, publicou O Globo em março de 2013. Sawaia, desconfia-se hoje, seria assessor do então Ministro da Fazenda Delfim Neto.
O jornal também informou que “na terça-feira, 9 de dezembro de 1970, o chefe do Estado-Maior do II Exército, general Ernani Ayrosa, abriu o quartel para homenagear alguns dos seus mais destacados colaboradores. Convidou Henning Boilesen e Pery Igel (Ultra), Sebastião Camargo (Camargo Corrêa), Jorge Fragoso (Alcan), Adolpho da Silva Gordo (Banco Português), Oswaldo Ballarin (Nestlé), José Clibas de Oliveira (Chocolates Falchi), Walter Bellian (Antarctica), Ítalo Francisco Taricco (Moinho Santista) e Paulo Ayres Filho (Pinheiros Farmacêutica), entre outros”.
A ação anti-Goulart, entretanto, foi muito além. Entidades como a Fiesp, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes, de 61) e o Instituto Brasileiro da Ação Democrática (Ibad, de 59) elaboravam propostas mudanças pró-capitalistas, articularam-se com empresários estadunidenses, como o próprio presidente dos EUA, John Kennedy, e receberam milhões de dólares da CIA para criar um clima social contra Goulart no Brasil que propiciasse o golpe e sua deposição. Tiveram uma produtividade atroz e foram muito além de de coletar apoios individuais de representantes de grupos econômicos à repressão política. Em boa medida formataram o padrão de acumulação no Brasil pós-golpe. Conforme o falecido cientista político René Dreifuss no seminal livro 1964: a Conquista do Estado, contribuíram para dar um golpe da classe empresarial, que anteriormente ao golpe desenvolveu a maior operação de psicologia social já operada no Brasil.
Articulados e pagos pelo Ipes (com fundos das maiores empresas brasileiras e da CIA), todos os grupos de comunicação do País (com a exceção da nacionalista Última Hora) durante anos veicularam os piores vitupérios contra Jango. Obtiveram sucesso relativo. Semanas antes do golpe as reformas de base alcançavam 70% de apoio popular e o presidente tinha até 65% das intenções de voto em algumas regiões do Brasil nas eleições marcadas para 1965. Estas últimas pesquisas, realizadas pelo Ibope, não foram divulgadas à época e hibernaram até há poucos meses no Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp.
O Ipes criou o Grupo de Opinião Pública – coordenado pelo general Golbery (que ao se aposentar ganhou salário vitalício no Conselho da estadunidense Dow Chemical) e por Rubem Fonseca, o atual escritor de livros policiais. Objetivava a “manipulação da opinião pública”, com a cooperação de empresas com a Promotion e a Denison Propaganda (agências de comunicação), todos os grandes jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo (O Globo, Jornal do Brasil, Correio da Manhã, O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo à frente), a TV Tupi etc.
Várias pesquisas atuais confirmam Dreifuss. Por exemplo, como lembra a doutoranda em História Elaine Bortone, o governo pós-64 buscou atender o setor privado com o Decreto-Lei 200/67, da reforma Administrativa, em linha com um anteprojeto elaborado pelo IPES entre 61 a 1964 . Em front complementar, o economista Marcos Arruda lembra que outra “das principais escolhas de política econômica dos governos da ditadura, especialmente a partir do Ato Institucional número 5, foi o endividamento público e privado para sustentar um modelo de crescimento acelerado”.
Muito dinheiro público subsidiou grupos brasileiros e multinacionais – principalmente, dos EUA, Inglaterra, França, Canadá e Alemanha. É o que observam a historiadora Martina Sphor (da Fundação Getúlio Vargas – Rio) e a doutoranda em História, na Universidade Federal Fluminense (UFF), Rejane Hoeveler.
“A presença, na década de 1960, dos maiores nomes do empresariado norte-americano – tais como David Rockefeller (Chase Manhatan Bank e Standard Oil Company) e Peter Grace (W.R. Grace) - em importantes cargos do governo norte-americano, ocupando postos-chave na política de desenvolvimento da Aliança para o Progresso na América Latina e a existência da operação de combate político-ideológico cunhada pelo IPES e financiada por grupos econômicos norte-americanos, é ponto de destaque desta conexão internacional”. “Sabe-se também que, a partir do governo do general Médici, houve ligações da ditadura brasileira com a Comissão Trilateral, que, conectada a outras entidades transnacionais do gênero na América Latina, funcionou como um laboratório de políticas estruturantes de democracias restritas”, ressalta Rejane.
Internamente, enquanto isso, a máquina de liberar dinheiro público funcionava a todo vapor no então Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (hoje BNDES). Principalmente no pós-golpe, por sugestão da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, o banco financiou a implantação dos setores de energia e transporte, áreas operadas por multinacionais.
A indústria foi outro setor que expressou a conspiração empresarial-militar dos anos anteriores ao golpe. Como lembra Renato Lemos, professor de história da UFRJ, a Fiesp criou já em 31 de março de 64 o Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI), para fornecer armas e equipamentos militares aos golpistas de São Paulo e montar a Oban. Seus projetos, entretanto, talvez fossem além e pretendessem se conectar “com o complexo industrial-militar dos EUA durante, pelo menos, a participação estadunidense na Guerra do Vietnã (1965-1973)”, além de formar um eixo empresarial-militar de suporte ao regime ditatorial no Brasil. Já as empreiteiras floresceram. “O período ditatorial foi central para o impulso ao setor, que foi extremamente beneficiado pelas políticas públicas”, alerta o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Pedro Campos.
Se há alguma valia nestes “aniversários” redondos de eventos como os de 64, está o interesse jornalístico (e, em alguma medida, também o de governos) em chamar a atenção para fatos históricos. Então, talvez, a oportunidade de 2014 é exatamente essa: finalmente dizer em alto e bom tom que aquele golpe não foi uma atitude isolada da elite militar. Conectou-se internacionalmente em alianças que continuam forte e atuais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário