terça-feira, 29 de julho de 2014

MÍDIA - Leituras de "Veja".

LEITURAS DE ‘VEJA’


Como produzir um artigo coalhado de incorreções


Por Maurício Sellmann Oliveira



A edição de 23 de julho de 2014 de Veja, a revista semanal da Editora Abril, traz uma matéria que pode ser classificada no mínimo como estranha. Em “Um escocês duro de engolir”, o diretor de redação da revista, Eurípedes Alcântara, pretende explicar como o professor de História de Harvard, Niall Ferguson, “levou a nocaute” o vencedor do Prêmio Nobel de Economia e colunista doNew York Times Paul Krugman “em um embate de ideias parecido com briga de rua”. O problema já começa com o fato: o tal embate ocorreu no segundo semestre de 2013. O artigo não menciona isso, mas também não sugere nada que possa justificar a relevância de se publicar essa notícia agora. Os equívocos e omissões, porém, não ficam só nisso.
O tal embate começara em 10 de agosto de 2013 nas páginas do site Huffington Post. Em uma polêmica em três partes, “Krugtron the Invincible“, Ferguson acusa Krugman de ludibriar seus leitores no Times ao emitir prognósticos sobre a crise financeira de 2008 que não se realizaram, incluindo aí o fim do euro. É quase impossível descobrir isso lendo o artigo de Veja.Alcântara só vai explicar o motivo da “disputa pública” entre os dois acadêmicos na segunda e última página do artigo. Ferguson teria atacado Krugman pela “falta de rigor” com que aplica conceitos econômicos de John Maynard Keynes, mas também “por sua incapacidade de contrapor as críticas que recebe com argumentos recorrendo ao esnobismo, à arrogância e à indiferença”. Exemplos desses argumentos e de suas críticas, a matéria não dá, o que é curioso, pois a frase acima segue uma citação do próprio Ferguson: “Mostrei com dados”.
Por falar em dados, Alcântara descreve a doutrina do “grande John Maynard Keynes” como aquela em que “os governos podem gastar à vontade, pelo tempo que quiserem, e produzir déficits abissais em suas contas sem que isso leve os países à bancarrota e o povo à miséria”
Trata-se de uma simplificação grosseira do keynesianismo, algo que não foi tentado nem pelo economista conservador Milton Friedman, severo crítico de Keynes. Nesta entrevista, Friedman chega mesmo a comentar que Keynes se opunha à inflação como qualquer outro economista. Em resumo, Keynes pregava que o Estado deveria intervir ativamente com políticas fiscais que atenuassem os efeitos cíclicos das bolhas do mercado. Para isso, seria necessário que o governo gastasse mais durante períodos de crise a fim de evitar estagnação econômica. Mesmo assim, Keynes também era contra déficits estruturais, ou seja, gastos estatais em excesso permanentes no ciclo financeiro. Isso dificilmente pode ser explicado como gastos do Estado “à vontade e pelo tempo que quiserem”.
Doutrina era falha “porque Keynes era gay”
Embora Alcântarainsista que Krugman foi “nocauteado” por Ferguson no debate sobre o qual o artigo pouco revela, as evidências mostram o contrário. Em coluna no New York Times, Krugman previu uma recessão causada pela bolha imobiliária nos Estados Unidos. Em matéria de erros sobre previsões econômicas, ele não foi pior que as equipes de todas as agências de risco de Wall Street nem melhor que Nouriel Roubini. De qualquer forma, foi mais consistente que Ferguson, que, como informa Veja acertadamente, “se diz um historiador da economia, mais do que um economista”. Entre as previsões erradas de Ferguson sobre a economia norte-americana estão o agravamento da crise norte-americana causada pela situação econômica na Grécia em 2010, ou que a inflação nos EUA estaria aumentando de forma preocupante na segunda década do século 21. Dificilmente, porém, o leitor poderá saber disso com base no artigo de Veja.
O que se vê na matéria da revista são os ataques pessoais, em que Ferguson chama Krugman de arrogante e este diz que Ferguson é um farsante. Tomando esta rotina como deixa, Alcântara faz algo semelhante ao traçar o perfil dos dois acadêmicos. Sem esconder sua predileção por Ferguson, chama-o de “colosso escocês”, professor da “seletíssima universidade inglesa de Oxford”. Já Krugman é dono de um “imenso arsenal de maldades”, sofre de “falta de rigor” acadêmico, “perdeu o emprego de professor em Princeton” e tem seu trabalho turvado “pelo primado da política militante”. Não, você não leu errado: Alcântara tem mais mal a dizer sobre Krugman do que bem sobre Ferguson.
Problema maior desses perfis são suas omissões e inversões. Um pouco antes de atacar Krugman, Ferguson foi protagonista de um episódio vexatório na imprensa norte-americana: uma reportagem de capa da revista Newsweek em que ele ataca a gestão econômica do governo Obama com informações incorretas e interpretações enganosas. Matthew O’Brien, da revista The Atlantic, compilou uma lista tão extensa de erros analíticos no artigo da Newsweek que ficou impossível não acusar Ferguson de má-fé. Mais tarde, em 2013, o “colosso escocês” sofreu mais ataques quando argumentou em uma palestra para consultores financeiros que a doutrina keynesiana era falha porque Keynes era gay e não se preocupava com as gerações futuras. Por fim, sua ardente defesa do império britânico e de seus efeitos sobre as colônias, em livros como Civilisation: The West and the Rest (2011), foi questionada na London Review of Books precisamente por ser uma posição turvada pelo “primado da política militante” de que Alcântara acusa Krugman.
Duro de engolir
Por outro lado, Krugman, autor de manuais de economia usados até hoje nas universidades, nunca escondeu o viés de esquerda nas suas análises econômicas – nem tampouco Thomas Piketty, autor do livro mais discutido do momento, O Capital no Século XXI, nem Milton Friedman nem Armínio Fraga, dois respeitados nomes do liberalismo econômico. Todo economista, ou historiador como Ferguson, tem sua posição política. A diferença está em que o bom acadêmico não usa informações falsas ou interpretações fraudulentas para embasar suas ideias. Nesse ponto, Krugman é mais conhecido por apontar erros analíticos dos outros.
Além disso, Krugman não foi demitido de Princeton; ele pediu demissão – uma diferença essencial se se quiser manter o tom do artigo de Veja. Krugman explicou que estava cansado de viver num lugar onde não poderia gozar de um estilo de vida que “complementasse as vantagens profissionais”. Em suma, a essa altura de sua vida, preferiu aproveitar a vida de metrópole em Nova York do que viver no ritmo mais bucólico de Princeton, Nova Jersey. E, aparentemente, ele não está sozinho, pois Princeton tem perdido para cidades grandes outros nomes importantes nos últimos anos.
Todos esses fatos, entretanto, não se encontram em “Um escocês duro de engolir”, um artigo que se pretende justamente uma defesa do rigor factual. Jornalistas cometem erros, as chamadas “barrigas”, como todo mundo. Nem os mais experientes, como Mario Sergio Conti, na Folha de S.Paulo e no Globo, escapam de erros de apuração. A diferença é que o artigo de Veja parece nem sequer se importar com os fatos (do ano anterior) que geraram a sua história em primeiro lugar. Espanta mais ainda por seu autor ser alguém que deveria saber melhor: Eurípedes Alcântara, que, em 1983, nas páginas da própria Veja, caiu numa brincadeira de primeiro de abril da revista New Scientist e publicou que cientistas alemães haviam criado um híbrido boi-tomate, o boimate. Como disse o próprio Alcântara na matéria de 2014, duro de engolir.

Maurício Sellmann Oliveira é professor visitante do Departamento de Espanhol e Português do Dartmouth College (EUA)

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