Quarta, 30 de julho de 2014
O dinheiro como Deus
“Acreditar em Deus é confiar Nele, mas nós temos substituído a confiança pelo culto: confiamos nosso futuro ao dinheiro”, é o que trata José Ignacio González Faus, jesuíta, professor Emérito de Teologia em Barcelona e em vários países latino-americanos, em artigo publicado no seu blog Miradas Cristianas, 25-07-2014. A tradução é do Cepat.Fonte: http://goo.gl/1bmyQb |
Há quase cem anos, Walter Benjamin escreveu um artigo intitulado “Capitalismo como religião”: o capitalismo atua religiosamente porque se apresenta como uma “experiência da totalidade”. Contudo é uma religião apenas de culto: sem dogmas nem moral. Esse culto é realizado mediante o consumo, integrado a tese marxista da mercadoria convertida em fetiche enquanto o trabalhador é convertido em mercadoria. Também é uma religião de culto contínuo, no qual todos os dias são “de preceito”. E de um culto de culpa (em alemão Schuld significa tanto dívida como culpa: por isso, de acordo com Benjamin, viver com uma dívida equivale a viver com uma culpa. Curiosamente no aramaico de Jesus acontecia algo parecido: a palavra schabq significava perdão dos pecados e a remissão das dívidas).
1 – Toda religião tem um deus. Por volta de 1936, Keynes em sua Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro, falou do dinheiro como deus: todas as funções que eram então desempenhadas por Deus são desempenhadas hoje pelo dinheiro. Keynes destaca que não se trata simplesmente da riqueza, mas do dinheiro duro e frio (a liquidez), que permite a disponibilidade imediata e a especulação. Esse dinheiro:
a) dá segurança e garante o futuro: equivalem aquelas palavras salmistas: “te amo, Senhor, Tu és minha rocha, minha fortaleza”.
b) dá segurança porque é o todo-poderoso e onipresente: não se pode conseguir nada sem ele. Finalmente,
c) o dinheiro é fecundo: no capitalismo financeiro o dinheiro já não é usado como meio para criar riqueza, mas ele mesmo produz mais dinheiro: “especular se torna então mais lucrativo que investir” (por isso os Bancos já não dão créditos).
E, a tudo isso poderíamos acrescentar:
d) que hoje em dia o dinheiro também é invisível, como Deus, apesar de seu poder e onipresença. Resumindo: se o dinheiro é o último ponto de referência, também se pode falar dele como “o ser necessário” (clássico termo metafísico para designar a Deus).
2 – Tudo isso coloca em destaque a não neutralidade do dinheiro, que já não é um mero instrumento prático de intercâmbio, como querem os teóricos neoliberais. Também levanta uma questão muito séria em relação à legitimidade do empréstimo a juros, cuja história tem três etapas:
a) Tanto na Bíblia quando no mundo Greco-romano era considerado imoral: Aristóteles qualificava a usura como o mais baixo dos vícios, comparando-a ao proxenetismo que aproveita a necessidade do outro para o enriquecimento próprio. Ao pedir emprestado um quilo de batatas não é justo que obriguem a me devolver um quilo e meio. Por que haveria de ser lícito se peço dinheiro ao invés de batatas?
b) No alvorecer do capitalismo, o dinheiro torna-se uma oportunidade para criar riqueza: se te empresto um dinheiro evito de comprar com ele um campo onde poderia cultivar, ou montar uma pequena indústria. Nesse sentido, o empréstimo me priva de um benefício e parece legítimo que, ao devolvê-lo, me dê alguma compensação pelo lucro perdido.
c) Com a economia especulativa financeira, a coisa volta a mudar: o dinheiro já não é uma oportunidade para que eu crie, mas ele mesmo é fecundo: com menos riscos e com porcentagens de lucros mais altas. Isso pode ser uma grande mentira, mas “funciona” até que se instale a crise. Pois bem: assim como, no início do primeiro capitalismo não se viu que o empréstimo a juros mudaria de modo significado, de forma que continuaram o proibindo; agora nem se vê que, no capitalismo financeiro, os juros voltam a mudar de significado, e continua-se o permitindo. Segundo a tese de Benjamin sobre o capitalismo como religião de culpa, agora o juros se relacionam com o empréstimo, o que é a penitência em relação à culpa.
Deixemos esse problema para o futuro e voltemos a Keynes. Do que foi dito anteriormente deduz-se que o nosso sistema tem dois grandes efeitos: é incapaz de criar emprego e reparte injustamente a riqueza e os lucros. Dois efeitos ou duas desautorizações totais?
4 – Tudo o que foi dito anteriormente nada foi percebido com tanta clareza como o fez Lutero, quando já havia amanhecido o capitalismo. Acreditar em Deus é confiar Nele, mas nós temos substituído a confiança pelo culto: confiamos nosso futuro ao dinheiro, e a Deus fazemos procissões e templos que “não chegam até o céu”. Por isso, em seu Grande Catecismo, Lutero trata do dinheiro ao comentar não o sétimo mandamento, mas o primeiro: porque o dinheiro é “o ídolo mais comum na terra”.
Segundo Lutero, a comunidade cristã deveria ser um âmbito onde não regeriam as leis da economia monetária. Os cristãos deveriam se manifestar ao Deus verdadeiro com sua conduta em questões econômicas. Por isso acrescenta: “sempre disse que os cristãos são pessoas raras na terra”. Contudo essa raridade permite compreender que a frase de Jesus (“não podeis servir a Deus e ao dinheiro”) tem uma tradução leiga bem clara: não podeis servir ao homem e ao dinheiro.
Fonte:IHU
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