O espírito golpista trocou de eufemismo
Antigamente, os que diziam defender a “democracia”, quando queriam se desfazer de governos populares e “defender o país contra o comunismo e a corrupção”, apelavam para as folclóricas quarteladas.
Com o apoio entusiástico da mídia oligopolizada e conservadora, que compunha verdadeiras odes aos golpes em editoriais delirantes, os estamentos militares, armas em punho, se encarregavam de fazer o trabalho sujo de apear do poder líderes populares eleitos em pleitos limpos.
Em alguns países, essa cândida “defesa da democracia” e da “moral anticorrupção” era e é (!) chamada de “revolução”, inacreditável eufemismo que camufla a regressão mais profunda no seu exato oposto.
Entretanto, as quarteladas caíram em desuso na América Latina, região que deu a maior contribuição à existência desse trágico fenômeno político. A última e fracassada deu-se em 2002, na Venezuela então governada por Chávez. Quartelada que, diga-se de passagem, causou “democrático” frisson em muitos órgãos de imprensa tupiniquins. É o tal negócio: o uso do cachimbo deixa a boca torta. A mente também.
Agora, o golpismo adquiriu formas mais sofisticadas e “modernas”. Não há como negar a criatividade e o empenho do nosso entorno regional, quando se trata de apear do poder lideranças populares de esquerda. No Paraguai, por exemplo, inventaram o “impeachment a jato”, baseado em acusações falsas, convenientemente fabricadas pelo aparelho repressor, e levado a cabo por Congresso e Judiciário de baixo compromisso com a democracia. Na Venezuela, criaram o “la salida”, processo político violento embasado no não reconhecimento dos resultados das urnas e em aposta criminosa na ingovernabilidade, que já se reflete em dezenas de mortos e na sabotagem constante à economia venezuelana.
No Brasil, a oposição e sua mídia oligopolizada parecem empenhados na construção de uma síntese dialética entre o impeachment paraguaio e a “salida” venezuelana.
O último pleito não havia sequer acabado e FHC, ex-príncipe dos sociólogos e atual eminência parda do golpismo tupiniquim, condenou os votos de nordestinos e pobres à candidata Dilma Rousseff. Com isso, tentou claramente deslegitimar o voto popular, fundamento último de qualquer democracia. Finda a eleição, o PSDB questionou a lisura do pleito, com a base sólida de comentários do Facebook. Assim, questionou um sistema de votação seguro e moderno, elogiado no mundo inteiro e motivo de orgulho para o Brasil. Frise-se que o questionamento restringiu-se apenas à eleição presidencial, não aos votos que generosamente elegeram Alckmin, Pirillo, Richa e toda a bancada do PSDB. Afinal, para o PSDB e para FHC o voto no governo e no PT não tem legitimidade e valor. Portanto, quando colhe votos para o governo e o PT, o sistema de votação é inseguro e inconfiável, mas quando colhe votos para o PSDB, a lisura do sistema é inquestionável.
Mais tarde, o PSDB tentou ainda impedir a diplomação de Dilma Rousseff, minutos antes da cerimônia oficial, com base no questionamento dos gastos da campanha. Gastos que foram aprovados pelo TSE, com poucas ressalvas meramente técnicas, ao contrário da campanha de Alckmin, por exemplo, que foi rejeitada pelo tribunal eleitoral de São Paulo.
Há pouco tempo, o Instituto FHC teria encomendado, pela módica quantia de R$ 150 mil, parecer “jurídico” de conhecido jurista conservador que procura, de modo pateticamente frágil, deitar as bases legais para um possível impeachment da presidenta recém reeleita em eleições limpas e livres. Como bem assinala Dalmo Dallari, o “parecer” cita uma profusão de leis e dispositivos constitucionais, mas não elenca um único indício ou prova que possa embasar, de fato, um pedido de impeachment. Tudo se assenta na marota e distorcida interpretação da teoria do domínio do fato: se houve algum desmando ou desvio, não importa onde e quando, o dirigente tinha de saber e, consequentemente, tinha a responsabilidade de agir.
Bom, se tal lógica é válida para a presidenta, então ela tem de valer para todos. Para Alckmin, que deixou faltar água em São Paulo. Para Beto Richa, que quebrou o estado do Paraná. Para FHC, que não tinha como não saber da compra de votos na emenda da reeleição e das maracutaias, “no limite da responsabilidade”, nas privatizações. Para os dirigentes do PSDB, que, com certeza, sabiam da quadrilha que se instalou na Petrobras nos anos do tucanato e que foi de lá retirada por Dilma. E por aí, vai. A lista é infindável.
Não obstante, o domínio do fato só se aplica, evidentemente, ao governo federal e ao PT. Se a moda continuar, não surpreenderá se Dilma for acusada de ter responsabilidade pelas mudanças climáticas, a epidemia de Ebola, a crise mundial e até pela presença do gigantesco buraco negro no centro da galáxia. São acusações tão absurdas quanto a que tenta responsabilizá-la pelas ações da quadrilha da Petrobras que ela contribuiu decisivamente para desbaratar. Nesse ponto, ao contrário de FHC, Dilma não cruzou os braços.
O fato concreto é que a oposição, ou parte significativa dela, se recusa a reconhecer o resultado das urnas e aposta irresponsavelmente na ingovernabilidade. Esse comportamento antidemocrático e antirrepublicano é alimentado por um neoudenismo tardio e pelo vazamento seletivo e oportunista de informações que correm, em teoria, sob segredo de justiça. Assim, declarações totalmente desprovidas de qualquer indício ou prova de delatores em desespero, que foram presos por atos de corrupção, são vazadas e apresentadas na mídia como se fossem verdades irrefutáveis, desde que sejam, é óbvio, informações negativas sobre o governo e o PT. Sobre o PSDB e o governo FHC, a ordem é o silêncio, na mídia e no judiciário. Sequer se questiona que tais delatores possam estar simplesmente dizendo aquilo que procuradores, delegados e juízes, alguns comprovadamente partidarizados, querem ouvir, para conseguirem o relaxamento de prisões e tratamento brando na justiça.
Também não se questiona que, pela primeira vez na história do Brasil, há um governo que não engaveta nada e que não a varre a sujeira para debaixo do tapete, como se fazia, à larga, até um passado bem recente. O Brasil não vive uma crise de corrupção; o Brasil vive a crise do fim da impunidade.
Mas, muito embora os alvos dessa campanha sejam o governo democraticamente eleito e o PT, o dano maior é o causado à democracia. Em apenas algumas semanas, a oposição, com o prestimoso conluio da mídia conservadora (ou seria o contrário?) tentou deslegitimar o nosso sistema de votação, o TSE e o voto popular.
Qual a mensagem que se transmite com essas atitudes antidemocráticas? É bastante clara: o governo atual não tem legitimidade, pois foi eleito com os votos de pessoas ignorantes, que são “compradas” por programas sociais, e com fraudes no sistema de votação. Acrescente-se a isso as ubíquas e insubstanciais denúncias de corrupção contra o governo que mais fez na história do país para combater os desmandos, com o grande fortalecimento das instituições de controle a forte da promoção da transparência, e temos a insidiosa e cínica preparação do terreno para as aventuras golpistas.
Golpista sim, pois propor impeachment sem nenhuma base jurídica, para além da histeria política neoudenista, é golpe puro e simples. E não adianta argumentar que o julgamento de impeachment é político. Julgamentos políticos, sem base jurídica, só ocorrem em ditaduras.
Portanto, nesse contexto histórico-político, falar em impeachment é, sim, crime. Crime contra a democracia. Crime covarde e cínico.
Como no passado, tenta justificar-se o golpismo criminoso como um combate à corrupção e ao “bolivarianismo”, definido beociamente como um “novo comunismo”.
Como no passado, busca-se encobrir o golpe com eufemismos.
Antes era “revolução”. Agora é “impeachment”.
(*) Marcelo Zero é formado em Ciências Sociais pela UnB e assessor parlamentar do PT
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