Cada vez mais Bancocracia
Este texto é nº de 18 na série A Internacional do Capital Financeiro
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Eric Toussaint – É claro que a política dos governos alimenta uma bolha especulativa nos mercados bolsistas. Já começou na China e pode estalar na Europa e nos EUA.
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Qual foi a evolução da situação e quais são os acontecimentos mais importantes em relação aos temas abordados no livro Bancocracia, desde que o terminou de escrever a 31 de março de 2014?
Não se impôs ao sistema financeiro privado nenhuma medida que permitisse evitar o rebentar de novas crises. Os governos, bem como as diferentes autoridades responsáveis por velar pelo respeito das regulamentações e pelo seu aperfeiçoamento, atrasaram no tempo ou suavizaram enormemente as pequenas medidas anunciadas em 2008-2009. Prosseguiu a concentração bancária e também as atividades de risco. Os 15 a 20 maiores bancos privados da Europa e dos Estados Unidos continuaram implicados em diferentes escândalos relacionados com os empréstimos tóxicos, os créditos hipotecários fraudulentos, a manipulação dos mercados cambiais, a manipulação das taxas de juro (em particular o Libor), a manipulação do mercado da energia, a evasão fiscal em massa, o branqueamento de dinheiro do crime organizado, etc. As autoridades contentaram-se com impor multas, geralmente muito pequenas face aos delitos cometidos e o seu impacto negativo sobre as finanças públicas, por não falar da deterioração das condições de vida de centenas de milhões de pessoas em todo mundo. Responsáveis de organismos de controlo como Martin Wheatley, que dirigia o Financial Conduct Authority em Londres, foram despedidos por tentarem fazer o trabalho que lhes tinha sido confiado e emitirem demasiadas críticas ao comportamento dos bancos. George Osborne, o Chanceler do Echiquier (Ministro dos Assuntos Económicos e Financeiros), decidiu livrar-se de Martin Wheathley em julho de 2105, nove meses antes do final de seu contrato de cinco anos.
Apesar das suas evidentes responsabilidades, nenhum dirigente bancário nos Estados Unidos ou Europa (além da Islândia) foi condenado enquanto os traders são perseguidos e condenados a penas de prisão efetivas que vão de 5 a 14 anos.
Bancos que foram nacionalizados com grandes gastos a fim de proteger os interesses dos seus grandes acionistas privados são vendidos novamente a preços de saldo ao setor privado, como o Royal Bank of Scotland no Reino Unido em 2015. O resgate do RBS tinha custado 45 bilhões de libras, a sua reprivatização provocará provavelmente uma perda de cerca de 14 bilhões de librasiii. É também o caso do SNS Reaal e de ABN Amro nos Países Baixos, do Allied Irish Banks na Irlanda ou de uma parte do defunto Banco Espírito Santo em Portugal. As perdas para as finanças públicas são enormes.
A política do BCE evoluiu na forma mas não no conteúdo. A instituição baseada em Frankfurt lançou a partir de princípios de 2015 uma política ativa de quantitative easing (expansão quantitativa), comprando mensalmente títulos aos bancos privados europeus por um montante de 60 000 milhões de euros. O BCE compra aos bancos produtos estruturados que os estimula a produzir. Compra-lhes igualmente obrigações bancárias (covered bonds) e títulos de dívida soberana dos países que aplicam políticas neoliberais. Ao mesmo tempo, o BCE empresta aos bancos privados a uma taxa de 0,05% (taxa em vigor desde setembro de 2014)iv.
A FED pôs termo à política de quantitative easing levada a cabo entre 2008 e 2014. Não compra já títulos hipotecários estruturados aos bancos. Anunciou desde o início de 2014 que procederá, pela primeira vez desde 2006, a uma subida das taxas de juro. Em princípio, isto deveria ter lugar antes de finais de 2015. Mas as potenciais repercussões negativas para a economia do país levam-na a hesitar. Efetivamente, uma subida das taxas de juro atrairá em massa capitais aos Estados Unidos, o que encarecerá o dólar contra as demais moedas e diminuirá as exportações norte americanas dada o marasmo do resto da economia mundial. Além disso, numerosas empresas privadas correm o risco de encontrar graves problemas de refinanciamento das suas dívidas. Sem esquecer que o custo do reembolso da dívida pública aumentará mecanicamente. Ainda que isto conte pouco nas dúvidas da FED, há que acrescentar que o impacto sobre as economias emergentes será muito negativo pois massas consideráveis de capitais abandona-las-ão e serão transferidas para os Estados Unidos com a intenção de obter maior rendimento e segurança.
As políticas seguidas tanto pelos bancos centrais como pelos governos não relançaram o investimento produtivo. As grandes empresas privadas estão sentadas sobre montanhas de liquidez de um lado e outro do Atlântico. Para as empresas não financeiras europeias, isto representa mais de 1 trilhão de euros que, em vez de serem utilizados para aumentar os investimentos e a produção, permanecem na tesouraria das empresas. As empresas utilizam em massa os seus benefícios para comprar as suas próprias ações em Bolsa a fim tanto de manter as cotações em alta (ou impedir a sua queda) como de proporcionar aos acionistas copiosos rendimentos. Ao mesmo tempo, a parte dos benefícios que serve para remunerar os acionistas sob a forma de dividendos continua a aumentar, o que reforça a tendência a não investir.
É totalmente claro que a política dos governos e dos bancos centrais alimenta uma bolha especulativa nos mercados bolsistas. Esta bolha pode rebentar em qualquer momento. Já começou na China em 2015 e terá lugar a qualquer momento na Europa e nos Estados Unidos.
Paralelamente, os preços de uma série de matérias primas estão em baixa (petróleo, minerais sólidos…). A queda radical do preço do petróleo pôs fim ao boom do gás de xisto nos Estados Unidos e numerosas empresas do setor estão à beira da falência. Grandes países exportadores de petróleo como Venezuela e Nigéria estão muito afetados pela queda dos preços.
Uma das teses do livro Bancocracia é que os bancos centrais e os governos perseguem dois grandes objetivos: 1. Resgatar os grandes bancos privados, os seus grandes acionistas e os seus principais dirigentes ao mesmo tempo que garantem a prossecução dos seus privilégios. Pode-se afirmar sem risco de incorrer num equívoco que, sem a ação dos bancos centrais, alguns grandes bancos teriam falido e que isto teria forçado os governos a implementar fortes medidas coercivas aos seus dirigentes e grandes acionistas. 2. Participar e apoiar de forma ofensiva nos ataques do Capital contra o Trabalho a fim de aumentar os lucros das empresas e tornar as grandes empresas europeias mais competitivas no mercado mundial face aos seus concorrentes estrangeiros… Estes dois objetivos são comuns à FED, ao Banco de Inglaterra, ao BCE e ao Banco de Japão.
No que se refere ao BCE, acrescentam-se a isso dois objetivos específicos e complementares: 1. Defender o euro, que é uma camisa de força para as economias mais débeis da zona euro bem como para todos os povos europeus. O euro é um instrumento ao serviço das grandes empresas privadas e das classes dominantes europeias (o 1 % mais rico). Os países que fazem parte da zona euro não podem desvalorizar a sua moeda já que adotaram o euro. No entanto, os países mais débeis da zona euro sairiam a ganhar em desvalorizar por forma a reencontrar a competitividade face aos gigantes económicos alemão, francês, face a Benelux (Bélgica, Países Baixos, Luxemburgo) e à Áustria. Países como Grécia, Portugal, Espanha ou Itália estão, portanto, presos por pertencerem à zona euro. As autoridades europeias e os governos nacionais aplicam a partir daí o que se chama a desvalorização interna: impõem uma diminuição dos salários em benefício unicamente dos dirigentes das grandes empresas privadas. 2. Reforçar a dominação das economias europeias mais fortes (Alemanha, França, Benelux…) onde estão baseadas as maiores empresas privadas europeias. Isto implica manter fortes assimetrias entre as economias mais fortes e as mais débeis.
A vitória de uma coligação de esquerdas anti austeritária na Grécia em janeiro de 2015 constituiu uma ameaça para o BCE, a Comissão Europeia, as grandes empresas e todos os demais governos da UE (não só os da zona euro). O BCE e todos os dirigentes europeus fizeram da derrota do projeto de Syriza um objetivo central das suas atividades e conseguiram os seus objetivos em julho de 2015. O BCE asfixiou literalmente o sistema financeiro grego e o governo de Tsipras para pô-lo de joelhos. Para evitar capitular, o governo Tsipras poderia ter optado por soluções alternativas como as que são propostas no capítulo final de Bancocracia. Deveria ter-se apoiado nos resultados da auditoria realizada pela Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega. Preferiu manter uma orientação moderada que estava condenada ao falhanço.
No entanto, nestes últimos anos, vê-se muito claramente que, como consequência da crise de 2007-2008 e do reforço das políticas neoliberais, os povos estão dispostos a optar por soluções radicais. Como prova disso, o eco encontrado em particular pelas propostas mais à esquerda do Syriza na Grécia, do Podemos em Espanha e inclusive de Jeremy Corbyn no Reino Unido ou de Bernie Sanders nos Estados Unidos. Uma das lições centrais da capitulação grega de julho de 2015 é que são necessárias forças políticas que tenham verdadeiramente vontade de aplicar as medidas que propõem integrando-as num programa coerente de rutura com o sistema. Outra lição é que um governo de esquerdas deve aplicar medidas radicais no que respeita à dívida ilegítima, aos bancos privados, aos impostos, aos serviços públicos… a fim de promover a justiça social e de empreender uma transição ecológica. Sem isto, não haverá saída da crise a favor dos povos.
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