Os arquivos wikileaks da América Latina
Autor: Alexander Main
No início deste Verão, o mundo viu a
Grécia a tentar resistir a um desastroso “diktat” neoliberal e a receber
uma sova dolorosa no processo. Quando o governo de esquerda grego
decidiu fazer um referendo nacional sobre o programa de austeridade
imposto pela “troika”, o Banco Central Europeu retaliou restringindo a
liquidez dos bancos gregos. Com isso acarretou um fechamento prolongado
dos bancos e submergiu a Grécia ainda mais na recessão.
Apesar dos eleitores gregos terem
rejeitado em massa a austeridade, a Alemanha e o cartel de credores
europeu foi capaz de subverter a democracia e obter exatamente o que
queria: submissão total à sua agenda neoliberal. Na última década e
meia, uma luta similar contra o neoliberalismo vem sendo travada em toda
a extensão de um continente e maioritariamente fora do olhar do
público. Ainda que Washington inicialmente tenha procurado anular toda a
dissidência e frequentemente utilizando táticas mais violentas que as
utilizadas contra a Grécia, a resistência da América Latina à agenda
neoliberal tem sido parcialmente bem sucedida. É um conto épico que
gradualmente vem vindo a ser conhecido graças à contínua exploração do
massivo tesouro de telegramas diplomáticos dos Estados Unidos e
difundidos pela WikiLeaks.
O neoliberalismo foi firmemente
implantado na América Latina bem antes da Alemanha e as autoridades da
zona euro terem imposto ajustes estruturais à Grécia e a outros países
periféricos endividados. Através da coerção (e.g., condições anexadas a
empréstimos do FMI) e endoutrinação (e.g., treinamento de “chicago boys”
regionais apoiados pelos Estados Unidos), os Estados Unidos tiveram
êxito, em meados dos anos 80, em difundir o evangelho da austeridade
fiscal, desregulação, “mercados livres”, privatização e cortes
draconianos no setor público por toda a América Latina.
O resultado foi incrivelmente parecido
ao que vimos na Grécia: crescimento estagnado (quase nenhum crescimento
per capita durante vinte anos de 1980-2000), aumento da pobreza,
declínio do nível de vida para milhões e muitas novas oportunidades para
os investidores internacionais e empresas fazendo dinheiro em pouco
tempo. Começando nos finais dos anos 80, a região começou a ter
convulsões e a levantar-se contra as políticas neoliberais. No início a
rebelião era maioritariamente espontânea e desorganizada — como foi no
caso venezuelano das revoltas do “Caracazo” no início de 1989.
Mas depois, candidatos anti-neoliberais
começaram a ganhar eleições e, para choque do establishment da política
externa dos EUA, um número crescente destes manteve as suas promessas de
campanha e começou a implementar medidas anti-pobreza e políticas
heterodoxas que reafirmavam o papel do estado na economia. De 1999 a
2008, candidatos com inclinação de esquerda ganharam eleições
presidenciais em Venezuelana, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia,
Honduras, Equador, Nicarágua e Paraguai. Muita da história das
tentativas dos governos dos EUA para conter e reverter a onda
anti-neoliberal pode ser encontrada nas dezenas de milhares de
telegramas diplomáticos dos EUA na região, difundidos pela WikiLeaks e
datados desde os primeiros anos de George W. Bush até aos primeiros anos
da administração do Presidente Obama.
Os telegramas — que analisamos no novo
livro, The WikiLeaks Files: The World According to US Empire — revelam
os mecanismos do dia-a-dia da política de intervenção de Washington na
América Latina (e fazem do mantra do Departamento de Estado de que “os
EUA não interfere na política interna de outros países” uma farsa).
Apoio material e estratégico é providenciado aos grupos de oposição de
direita, alguns dos quais são violentos e anti-democráticos. Os
telegramas também pintam uma imagem vívida da mentalidade ideológica de
Guerra Fria dos emissários mais velhos e os expõem a tentar usar medidas
coercivas que fazem lembrar o recente estrangulamento aplicado à
democracia grega.
De forma nada surpreendente, os
principais meios de comunicação ignoraram ou falharam em grande medida
em expor estas perturbadoras crônicas de agressão imperial, preferindo
focalizar os relatos potencialmente embaraçosos dos diplomatas ou as
ações ilegais de oficiais estrangeiros. Os poucos especialistas que
deram uma análise de fundo aos telegramas afirmaram que não havia uma
disparidade significativa entre a retórica oficial dos EUA e a realidade
descrita nos telegramas. Nas palavras de um analista de relações
internacionais dos Estados Unidos, “não obtemos uma imagem dos Estados
Unidos como sendo esse todo poderoso mestre das marionetas a tentar
puxar as cordas dos vários governos à volta do mundo para servir os seus
interesses corporativos.” No entanto, uma leitura atenta dos telegramas
desmente claramente esta afirmação.
“Isto Não é Chantagem”
No final de 2005, na Bolívia, Evo
Morales teve uma vitória esmagadora nas eleições presidenciais com base
em uma reforma constitucional, direitos indígenas e a promessa de lutar
contra a pobreza e o neoliberalismo. No dia 3 de Janeiro, apenas dois
dias após a sua tomada de posse, Morales recebeu uma visita do
embaixador David L. Greenlee. O embaixador foi direto ao assunto: O
visto dos EUA sobre a ajuda multilateral à Bolívia dependeria do bom
comportamento do governo de Morales. Podia ser uma cena do Poderoso
Chefão.
[O embaixador] mostrou a importância
crucial das [instituições] financeiras internacionais, das quais a
Bolívia dependia para assistência, tais como o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.
“Quando pensar no BID, deve pensar nos EUA,” disse o embaixador, “isto
não é chantagem, é a simples realidade.”
No entanto, Morales aferrou-se à sua
agenda. Durante os dias seguintes forjou planos para regular novamente o
mercado de trabalho, renacionalizar a indústria dos hidrocarbonetos e
estreitar a cooperação com o arqui-inimigo de Washington, Hugo Chavez.
Em resposta, Greenlee sugeriu um menu de opções para forçar Morales a
curvar-se perante a vontade do seu governo. Estas incluíam; vetar
empréstimos multilaterais de vários milhões de dólares, adiar os já
agendados alívios multilaterais da dívida, desencorajar os fundos da
Millennium Challenge Corporation (que a Bolívia nunca recebeu até hoje,
apesar de ser um dos países mais pobres do hemisfério) e cortar o “apoio
material” às forças de segurança bolivianas.
Infelizmente para o Departamento de
Estado, em pouco tempo, ficou claro que este tipo de ameaças seriam
devidamente ignoradas. Morales já tinha decidido reduzir drasticamente a
dependência da Bolívia nas linhas de crédito multilaterais que
requisitassem uma habilitação do Departamento do Tesouro dos Estados
Unidos. Poucas semanas depois de tomar posse, Morales anunciou que a
Bolívia já não estaria dependente do FMI, e deixaria o acordo de
empréstimos com o Fundo expirar. Anos mais tarde, Morales, aconselharia a
Grécia e outros países endividados da Europa a seguir o exemplo de
Bolívia e a “libertarem-se da ordem do Fundo Monetário Internacional.”
Não conseguindo forçar Morales às suas
jogadas, o Departamento de Estado começou, então, a centrar-se no
fortalecimento da oposição boliviana. A região controlada pela oposição,
Media Luna, começou a receber cada vez mais assistência dos Estados
Unidos. Um telegrama de Abril de 2007, discute “um maior esforço da
Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID)
para fortalecer os governos regionais como contrapeso ao governo
central.”
Um relatório da USAID de 2007 mencionava
que o seu Office of Transition Initiatives (OTI) tinha aprovado 101
bolsas por US$4.066.131 para ajudar os governos departamentais a operar
mais estrategicamente.” Também se fez chegar fundos aos grupos indígenas
que se opunham à visão de Morales para as comunidades indígenas.”
Um ano mais tarde os departamentos de
Media Luna, iriam empenhar-se na rebelião contra o governo de Morales,
primeiramente com um referendo sobre a autonomia, apesar destes terem
sido considerados ilegais pelas autoridades judiciais; e posteriormente
apoiando os protestos violentos pró-autonomia que tiveram como
consequência pelo menos 20 simpatizantes do governo mortos.
Muitos acreditavam que se estava a
desenvolver uma tentativa de golpe de estado. A situação apenas se
acalmou com a pressão de todos os outros presidentes da América do Sul,
que emitiram uma declaração conjunta de apoio ao governo constitucional
do país. Mas enquanto que a América do Sul se unia em apoio a Evo, os
Estados Unidos seguiam em comunicação regular com os líderes da oposição
do movimento separatista, mesmo quando estes falavam em “rebentar com
as condutas de gás” e usar a “violência como uma probabilidade de forçar
o governo a levar a sério qualquer diálogo.”
Contrariamente à posição oficial durante
os eventos de Agosto e Setembro de 2008, o Departamento de Estado,
levou muito a sério a possibilidade de um golpe de estado ou assassinato
do presidente boliviano, Evo Morales. Um telegrama revela planos da
Embaixada dos EUA em La Paz para tal caso: “[o Emergency Action
Committee] irá desenvolver, com [o US Southern Command Situational
Assessment Team], um plano de resposta no caso de uma urgência
repentina, i.e. um golpe de estado ou a morte do Presidente Morales,”
lê-se no telegrama.
Os acontecimentos de 2008 foram o maior
desafio até agora da presidência de Morales e a situação em que ele
esteve mais perto de ser derrubado. As preparações para uma possível
saída da presidência de Morales revelam que os Estados Unidos, pelo
menos, acreditaram que a ameaça a Morales era bastante real. O fato de
não ter dito nada publicamente apenas sublinha de que lado Washington se
posicionava durante o conflito e qual desfecho provavelmente
preferiria.
Como Funciona
Alguns dos métodos de intervenção usados
na Bolívia foram emulados de outros países com governos de esquerda ou
com movimentos fortes de esquerda. Por exemplo, após o regresso dos
Sandinistas ao poder, em Nicarágua, no ano 2007, a embaixada dos EUA em
Manágua trabalhou “a toda a velocidade” para reforçar o apoio ao partido
de oposição de direita, o Alianza Liberal Nicaraguense (ALN). Em
Fevereiro de 2007, a embaixada reuniu com o coordenador estratégico do
ALN e explicou-lhe que os EUA “não providenciavam assistência direta a
partidos políticos,” mas — de maneira a ultrapassar esta restrição —
sugeriu que o ALN estivesse mais estreitamente coordenado com ONGs
amigas que pudessem receber fundos dos EUA.
A líder do ALN disse que “avançaria com
uma lista extensiva da lista ONGs que, de fato, apoiam os esforços do
ALN” e a embaixada proporcionou-lhe “encontros com os diretores para o
país do IRI [Instituto Republicano Internacional] e NDI [Instituto
Internacional Democrata para os Assuntos Internacionais].” O telegrama
também faz notar que a embaixada iria “dar seguimento ao incremento de
angariação de fundos” para o ALN.
Telegramas como este deveriam ser de
leitura obrigatória para estudantes da diplomacia dos EUA e aqueles que
querem perceber como o sistema de “promoção de democracia” realmente
funciona. Através do USAID, Fundação Nacional para a Democracia (NED),
NDI, IRI e outras entidades para-governamentais, o governo dos EUA
fornece uma ampla assistência aos movimentos políticos que apoiem os
objetivos econômicos e políticos dos EUA.
Em Março de 2007, o embaixador dos EUA
na Nicarágua pediu ao Departamento de Estado que providenciasse
aproximadamente 65 milhões de dólares acima dos níveis de base recentes
nos próximos quatro anos — ao longo das próximas eleições presidenciais
de maneira a financiar o “fortalecimento dos partidos políticos, ONGs
“democráticas” e “pequenas e flexíveis subvenções de decisão rápida a
grupos comprometidos em desenvolver esforços críticos que defendam a
democracia em Nicarágua, que façam avançar os nossos interesses e se
contraponham a aqueles que se mobilizam contra nós.”
No Equador, a embaixada dos EUA opôs-se
ao economista de esquerda, Rafael Correa, vencedor destacado nas
eleições de 2006 e o levaram ao cargo presidencial. Dois meses antes
dessas eleições, o conselheiro político da embaixada alertou Washington
que “se podia esperar que Correa se juntasse ao grupo
Chavez-Morales-Kirchner de líderes sul americanos
nacionalistas-populistas,” e fazia notar que a embaixada tinha “avisado
os nossos contatos políticos, econômicos e midiáticos da ameaça que
Correa representa para o futuro de Equador e desencorajou as alianças
políticas que podiam equilibrar a percepção de Correa com o
radicalismo.” Imediatamente após a eleição de Correa, a embaixada enviou
um telegrama ao Departamento de Estado com o seu plano de jogo:
Não mantemos ilusões de que as
tentativas do Governo dos Estados Unidos possam influenciar a direção do
novo governo ou do Congresso, mas esperamos maximizar a nossa
influência junto com outros equatorianos e grupos que partilham os
nossos pontos de vista. As propostas de reformas de Correa e atitude
perante o Congresso e partidos políticos tradicionais, se não for
controlada, pode prolongar o período atual de conflitos e instabilidade.
Os maiores medos da embaixada foram
confirmados. Correa anunciou que fecharia a base aérea dos EUA em Manta,
aumentaria os gastos sociais, e avançaria uma assembleia constituinte.
Em Abril de 2007, 80 porcento de eleitores equatorianos validaram a
proposta de uma assembleia constituinte e em 2008, 62 porcento aprovaram
a nova constituição que consagrava uma série de princípios
progressistas, incluindo a soberania alimentar, direito à habitação,
saúde e emprego e controle governamental sobre o banco central (um
enorme não-não à cartilha neoliberal).
No início de 2009, Correa anunciou que o
Equador cumpriria parcialmente com a sua dívida externa. A embaixada
estava furiosa com esta decisão e outras ações recentes, como a decisão
de Correa de alinhar Equador mais estreitamente com a Aliança
Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA) de esquerda (que tinha
sido iniciada pela Venezuela e Cuba em 2004 como contrapeso à Área de
Comércio Livre das Américas (ALCA), naquela altura promovida pela
administração Bush. Mas o embaixador estava também consciente de que
tinha pouca influência sobre ele:
Estamos a transmitir a mensagem em
privado de que as ações de Correa irão ter consequências na sua relação
com a nova administração de Obama, enquanto evitamos comentários
públicos que seriam contraproducentes. Não recomendamos que se termine
qualquer programa do Governo dos Estados Unidos que sirvam os nossos
interesses uma vez que essa opção apenas enfraqueceria os incentivos de
Correa de retroceder para uma posição mais pragmática.
O incumprimento parcial teve sucesso e
aforrou ao governo equatoriano aproximadamente 2 bilhões de dólares. Em
2011, Correa recomendou o mesmo tratamento para os países europeus
endividados, particularmente Grécia, aconselhando-os a não cumprir os
pagamentos da dívida e 'ignorar o conselho do FMI.'
As Ruas Estão Quentes
Durante a Guerra Fria, a suposta ameaça
do avanço soviético e cubano serviu para justificar um sem número de
intervenções para remover governos de inclinação de esquerda e apoiar
regimes militares de direita. De maneira similar, os telegramas do
WikiLeaks mostraram como, nos anos 2000, o espectro do “Bolivarianismo”
foi usado para validar intervenções contra novos governos de esquerda
anti-liberais, como o da Bolívia, representado como tendo “caído sem
reservas no abraço venezuelano;” ou do Equador, visto como um
“testa-de-ferro” para Chávez”
As relações com o governo de esquerda de
Hugo Chávez amargaram desde o início. Chávez eleito presidente pela
primeira vez em 1998, rejeitando amplamente as políticas econômicas
neoliberais, desenvolveu uma relação estreita com Cuba de Fidel Castro e
criticou, bem alto, o assalto da administração Bush ao Afeganistão após
os ataques de 9/11 (os EUA retiraram o seu embaixador de Caracas após
Chavéz ter proclamado: “Não podes lutar contra o terrorismo com
terrorismo”).
Mais tarde fortaleceu o controle
governamental do setor petrolífero, aumentando os valores de royalties
pagos pelas empresas estrangeiras e usou as receitas do petróleo para
financiar o sistema público de saúde, educação e programas alimentares
para os pobres.
Em Abril de 2002, a administração Bush
validou publicamente um golpe de estado, de pequena duração, que removeu
Chávez do poder por quarenta e oito horas. Os documentos da Fundação
Nacional para a Democracia, obtidos através da Freedom of Information
Act [Lei pela Liberdade de Informação], mostraram que os EUA forneceram
fundos para a “promoção da democracia” e treinamento a grupos que
apoiassem o golpe de estado e que mais tarde viriam a estar envolvidos
em esforços para remover Chávez através de “greves” administrativas que
paralisaram a indústria petrolífera, nos finais de 2002 e mergulharam o
país em recessão. Os telegramas da WikiLeaks mostram que após essas
tentativas falhadas de derrubar o governo eleito venezuelano, os EUA
continuaram a apoiar a oposição venezuelana através da NED e USAID.
Em um telegrama de Novembro de 2006,
William Brownfield, embaixador naquela altura, explicava a estratégia de
USAID/OTI para debilitar a administração de Chávez:
Em Agosto de 2004, o embaixador
delineava os 5 pontos estratégicos da sua equipe para o país neste
período [2004-2006] que serviriam de guia para a embaixada... o foco da
estratégia é: 1) Fortalecimento das Instituições Democráticas, 2)
Penetrar na Base Política de Chávez, 3) Dividir o Chavismo, 4) Proteger
os negócios vitais dos EUA, e 5) Isolar Chávez internacionalmente.
Os laços apertados que existem entre a
embaixada dos EUA e os vários grupos de oposição são evidentes em
numerosos telegramas. Um telegrama de Brownfield relaciona a Súmate —
uma ONG que teve um papel central nas campanhas de oposição — aos
“nossos interesses na Venezuela.” Outros telegramas revelam que o
Departamento de Estado fez pressão internacional para que se
demonstrasse apoio à Súmate e encorajou apoio financeiro, político e
legal dos EUA a esta organização, muito dele canalizado através da NED.
Em Agosto de 2009, a Venezuela foi
atingida por protestos violentos de oposição (como tinha ocorrido um
variado número de vezes sob Chávez e depois com o seu sucessor Nicolas
Maduro). Um telegrama secreto de 27 de Agosto cita o contratante
Development Alternatives Incorporated (DAI) referindo-se a “todas” as
pessoas protestando naquele momento como “nossos beneficiários”:
[O empregado da DAI] Eduardo Fernandez
disse que “as ruas estão quentes” referindo-se aos cada vez maiores
protestos contra as tentativas de Chávez de consolidar o poder e que
“todas estas pessoas (organizando os protestos) são nossos
beneficiários.”
Os telegramas também revelam que o
Departamento de Estado providenciou treinamento e apoio a um líder
estudante que reconhecidamente tinha liderado multidões com a intenção
de “linchar” um governador Chavista: “Durante o golpe de estado de Abril
de 2002, [Nixon] Moreno participou nas manifestações no estado de
Merida, liderando multidões que marcharam na capital do estado para
linchar o governador Florencio Porras do MVR.”
No entanto, uns anos depois disto, outro
telegrama mostra: “Moreno participou no International Visitor Program
[do Departamento de Estado] em 2004.” Moreno viria mais tarde a ser
procurado por tentativa de homicídio e ameaças a uma polícia, além de
outras acusações. Também na linha da estratégia dos cinco pontos, como
delineava Brownfield, o Departamento de Estado priorizava os seus
esforços no isolamento internacional do governo venezuelano e em
contrabalançar a sua influência em toda a região. Os telegramas mostram
como os chefes das missões diplomáticas na região desenvolveram
estratégias coordenadas para contrabalançar a “ameaça” regional.
Assim como a WikiLeaks inicialmente
revelou em Dezembro de 2010, os chefes de missão para 5 países sul
americanos encontraram-se no Brasil em Maio de 2007 para desenvolver uma
resposta conjunta aos alegados “planos agressivos” do Presidente
Chávez… de criar um movimento unificado Bolivariano por toda a América
Latina.” Entre as áreas de ação que os chefes de missão havia um plano
de “continuar a fortalecer laços com aqueles líderes militares na região
que partilham a nossa preocupação com Chávez.” Um encontro similar dos
chefes de missão dos EUA da América Central — focada na “ameaça” de
“atividades políticas populistas na região” — realizou-se na embaixada
dos EUA em El Salvador em Março de 2006.
Os diplomatas dos EUA fizeram grandes
esforços para tentar prevenir que os governos das Caraíbas e América
Central se juntassem à Petrocaribe, um acordo regional de energia de
Venezuela que providencia petróleo aos seus membros em termos
extremamente preferenciais. Telegramas vindos a público mostram que os
oficiais norte-americanos reconheciam, de forma privada, os benefícios
econômicos do acordo para os países membros, assim como mostravam
preocupação que a Petrocaribe fosse aumentar a influência da Venezuela
na região.
No Haiti, a embaixada trabalhou de forma
estreita com grandes empresas de petróleo para tentar prevenir que o
governo de René Préval se juntasse à Petrocaribe, apesar de reconhecerem
que “liberaria 100 milhões de dólares por ano,” como foi reportado por
Dan Coughlin e Kim Ives na Nation. Em Abril de 2006 a embaixada
“telegrafou” de Porto Príncipe: “Continuaremos a pressionar [o
presidente René do Haiti] Preval contra a sua adesão à PetroCaribe. O
embaixador verá hoje o conselheiro chefe de Preval, Bob Manuel. Em
reuniões anteriores este compreendeu as nossas preocupações e está
consciente que um acordo com Chávez iria provocar problemas conosco.”
O Histórico da Esquerda
Devemos ter em conta que os telegramas
do WikiLeaks não mostram vislumbres das atividades mais secretas das
agências de informação dos EUA e são provavelmente apenas a ponta do
icebergue no que toca às interferências políticas de Washington na
região. No entanto os telegramas fornecem evidências alargadas da
persistência e dos esforços determinados dos diplomatas dos EUA em
intervir contra os governos de esquerda na América Latina, usando a
alavancagem financeira e os múltiplos instrumentos disponíveis na caixa
de ferramentas para a “promoção da democracia” — e às vezes até através
de meios violentos e ilegais.
Apesar do restabelecimento das relações
diplomáticas com Cuba por parte da administração Obama, não há
indicações de que as políticas em relação à Venezuela e outros governos
de esquerda da América Latina tenham mudado significativamente. Não há
dúvida que a hostilidade da administração em relação ao governo eleito
da Venezuela é inexorável. Em Junho de 2014, o Vice Presidente Joe Biden
deu início à Caribbean Energy Security Initiative, visto como um
“antídoto” à Petrocaribe. Em Março de 2015, Obama declarou Venezuela
como “ameaça extraordinária à segurança nacional” anunciado sanções
contra oficiais venezuelanos, uma atitude criticada de forma unânime por
outros países na região.
Mas, apesar das agressões incessantes
dos EUA, a Esquerda, em grande medida, tem prevalecido na América
Latina. Com a excepção de Honduras e Paraguai, onde golpes de estado de
direita derrubaram líderes eleitos, quase todos os movimentos de
esquerda que chegaram ao poder nos últimos quinze anos mantêm-se ainda
hoje no poder.
Principalmente como resultado destes
governos, de 2002 a 2013 a taxa de pobreza da região baixou de 44% para
28% após ter, de fato, piorado nas duas décadas anteriores. Estes
sucessos e vontades dos líderes de esquerda de correr riscos de maneira a
se libertarem do diktat neoliberal, deve hoje ser uma fonte de
inspiração para a esquerda anti-austeridade da Europa. É certo que
alguns dos governos estão hoje a passar por dificuldades significativas,
em parte devido à recessão econômica regional que afetou os governos de
direita e de esquerda de igual maneira. Mas visto através das lentes
dos telegramas, há boas razões para questionar se todas estas
dificuldades são fomentadas internamente.
Por exemplo, em Equador — onde o
presidente Correa está sob ataque da Direita e de alguns setores da
Esquerda — os protestos contra as novas propostas de impostos
progressivos envolve os mesmos homens de negócios, alinhados com a
oposição, com quem os diplomatas dos EUA são vistos a definir
estratégias nos telegramas.
Em Venezuela, onde um sistema de
controlo monetário disfuncional gerou uma enorme inflação, protestos
violentos de estudantes de direita desestabilizaram seriamente o país.
As probabilidades são extremamente altas de que alguns destas pessoas
que protestam tenham recebido financiamentos e/ou treinamento da USAID
ou NED, que viram o seu orçamento para Venezuela aumentar 80 porcento de
2012 para 2014.
Ainda há muito mais a aprender dos
telegramas da WikiLeaks. Para os capítulos América Latina e as Caraíbas”
do “The WikiLeaks Files”, examinamos atentamente centenas de telegramas
e fomos capazes de identificar distintos padrões de intervenção dos EUA
que descrevemos em maior profundidade no livro (alguns destes já
previamente reportados por outros). Outros autores do livro fizeram o
mesmo para outras regiões do mundo. Mas há mais de 250,000 telegramas
(quase 35,000 só da América Latina) e há sem dúvida muitos outros
aspectos referenciáveis da diplomacia dos EUA na atualidade que estão à
espera de ser desmascarados.
Tristemente, após a excitação inicial,
na altura que os telegramas foram inicialmente divulgados, poucos
jornalistas e acadêmicos têm mostrado grande interesse no assunto. Até
que isto mude, não teremos uma discrição completa de como os EUA se vêem
a si mesmos no mundo e como o seu braço diplomático responde aos
desafios à sua hegemonia.
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