Quinta, 29 de outubro de 2015
A Lava Jato e o trabalho escravo: quem paga pela corrupção na construção?
"A corrupção rouba os cofres públicos de recursos que poderiam
ser empregados em outras áreas, tanto para garantir qualidade de vida
quanto para melhorar a infraestrutura para o crescimento econômico. O
senso comum reclama que esse montante transferido ilegalmente para o
bolso de alguns ou contas na Suíça poderia ser usado em educação, saúde, segurança, entre outras áreas carentes", escreve Leonardo Sakamoto, em artigo publicado em seu blog, 28-10-2015.
Mas quantas vezes você já pensou na relação entre casos de corrupção e as condições dos trabalhadores do país?
Investigadas pela Polícia Federal, construtoras como Andrade Gutierrez, Camargo Correa, Odebrecht e OAS apresentam extensa ficha corrida de violações trabalhistas. Algumas delas, inclusive, foram responsabilizadas por trabalho análogo ao escravo. Este levantamento realizado por Igor Ojeda, para a Repórter Brasil, discute a relação entre os dois crimes e analisa como combatê-los de forma integrada.
Lava Jato e o trabalho escravo: quem paga pela corrupção na construção civil, por Igor Ojeda
Os três casos listados abaixo têm três elementos em comum. Descubra quais.
Caso um. Em uma casa da periferia de Guarulhos, em São Paulo, 38 homens se amontoavam no espaço de quatro quartos e dois banheiros. Muitos dormiam na cozinha, outros, debaixo da escada. Não havia colchões para todos. Os habitantes tinham de dividi-los entre si ou dormir no chão, enrolados em lençóis. Faltavam fogão e geladeira, nem a água chegava todos os dias.
Vindos do Pernambuco, os operários aguardavam para trabalhar na ampliação do aeroporto de Cumbica, obra da OAS, em 2013. A promessa era de carteira assinada, salário de R$ 1.412, vale-alimentação de R$ 320 e vale-transporte de R$ 360. Para garantir a vaga, cada um havia desembolsado cerca de R$ 500. O Ministério do Trabalho e Emprego responsabilizou a construtora pela exploração de trabalho análogo ao de escravo. Em novembro do mesmo ano, firmou um acordo judicial com o Ministério Público do Trabalho de São Paulo e aceitou pagar R$ 15 milhões pelo flagrante.
Caso dois. Um par de anos antes, do outro lado do oceano Atlântico, em Angola, operários brasileiros bebiam água não potável, faziam suas refeições de qualidade duvidosa em um ambiente infestado por ratos e baratas e eram obrigados, muitas vezes, a defecar no mato. Vômitos e diarreias eram comuns, assim como doenças como malária e febre tifoide.
Os trabalhadores, recrutados em sua maioria no interior paulista, atuavam na construção da usina de açúcar e etanol Biocom, obra da construtora Odebrecht. Em setembro de 2015, a empresa foi condenada pela Justiça do Trabalho em São Paulo, juntamente com duas de suas subsidiárias, ao pagamento de R$ 50 milhões por tráfico de pessoas e exploração de mão de obra escrava de 500 trabalhadores.
Caso três. Em 2009, 38 operários maranhenses foram obrigados, por vários dias, a disputar o pequeno espaço de um barracão de madeira improvisado para descansar após a dura jornada na construção da vila Nova Mutum, local que abrigaria as famílias que residiam na área inundada pela hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira, em Rondônia. Os trabalhadores dormiam em colchões improvisados, pois não havia camas. As instalações elétricas eram precárias, oferecendo risco de incêndio, e o banheiro, feito de tábuas de madeira, não tinha teto. Sequer água potável era fornecida.
O Ministério do Trabalho e Emprego e o Ministério Público do Trabalho responsabilizaram, por exploração de mão de obra escrava, a Construtora BS, que prestava serviços ao consórcio responsável pela construção da usina, do qual faz parte a empreiteira Camargo Corrêa.
Além da exploração de trabalho escravo e do aliciamento de imigrantes, esses casos têm uma terceira elemento em comum: aconteceram em obras de grandes empreiteiras envolvidas nas denúncias de corrupção da Operação Lava-Jato, da Polícia Federal.
A precariedade de condições ofertadas aos trabalhadores contrasta com as altas cifras de corrupção ligadas a essas mesmas empresas na investigação. Enquanto operários dormiam no chão e não tinham acesso ao banheiro, denúncias apresentadas ao Ministério Público Federal apontam que a Odebrecht teria desembolsado R$ 144 milhões, a Andrade Gutierrez, R$ 123 milhões, e a Camargo Correa, 110 milhões para um esquema de corrupção que envolvia políticos e funcionários da Petrobras.
A economia com os funcionários chama ainda mais atenção quando comparada com as volumosas verbas públicas destinadas a essas construtoras. A expansão do aeroporto de Guarulhos, por exemplo, recebeu um investimento inicial de R$ 1,2 bilhão do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. Em dezembro de 2013, poucos meses após o flagrante de trabalho escravo, a instituição aprovou mais R$ 2,28 bilhões. A OAS era uma das quatro empresas que formavam o consórcio Invepar que, juntamente com a Airports Company South Africa, detinha 51% da sociedade com a Infraero para a administração do Aeroporto Internacional de Guarulhos.
Sobre a construção da usina Biocom pela Odebrecht, pesa a suspeita, segundo o Ministério Público do Trabalho, de que tenha havido “financiamento oculto” do BNDES. Já a construção da usina de Jirau, incluída no Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, do Governo Federal, e tocada pela Camargo Corrêa, recebeu do BNDES financiamento inicial de 7,2 bilhões.
Sobre o caso ocorrido em Angola, a Odebrecht afirma deter participação minoritária na Biocom e não ser responsável pela construção do empreendimento, “que foi executada por companhias especializadas e contratadas pela própria Biocom”. Disse também que as condições de trabalho são “adequadas”, que “nunca existiu qualquer cerceamento de liberdade de qualquer trabalhador”. (Leia a nota da empresa na íntegra).
A construtora, condenada por conta dessa denúncia, deve explicações também sobre a libertação, no fim de julho deste ano, de 11 trabalhadores nas obras da Vila dos Atletas, que irá abrigar competidores das Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016. As vítimas, vindas do Maranhão, Paraíba, Bahia e Espírito Santo, dormiam em pequenas quitinetes numa favela da região. Algumas delas afirmaram passar a noite do lado de fora das casas, por conta da sujeira dos locais. Um cheiro forte de esgoto saía do ralo do quarto de uma das residências, e os operários tinham de conviver com ratos e baratas. Segundo a procuradora Guadalupe Louro Turos Couto, do Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro, além da empresa terceirizada Brasil Global Serviços, as integrantes do Consórcio Ilha Pura, a Odebrecht e a Carvalho Hosken, que tocam a obra, também serão responsabilizadas.
Procurada pela Repórter Brasil sobre esse flagrante de trabalho escravo, o Consórcio Ilha Pura disse identificar e fiscalizar os alojamentos mantidos por seus fornecedores e que a Brasil Global Serviços havia declarado que não possuía alojamento por que todos os contratados tinham comprovantes de residência do Rio de Janeiro. (Leia a nota da empresa na íntegra).
A OAS e a Camargo Corrêa não responderam aos pedidos de entrevista.
Além do caso de trabalho escravo nas obras de compensação social, o canteiro da usina hidrelétrica de Jirau, foi palco de uma revolta de trabalhadores, em março de 2011, por conta de queixas como não pagamento de horas-extras, falta de tratamento para operários adoecidos e o não cumprimento das promessas feitas quando do recrutamento em outros estados. Parte do canteiro ficou destruída e tropas da Força Nacional passaram a ocupar o local. A rebelião resultou na assinatura, em fevereiro de 2012, do Compromisso Nacional para o Aperfeiçoamento das Condições de Trabalho na Indústria da Construção, que foi criticado por não contemplar todos os problemas trabalhistas do setor. Dois meses depois do início da vigência do acordo, uma nova revolta eclodiu em Jirau.
A Andrade Gutierrez, outra grande empreiteira denunciada por corrupção no esquema investigado pela Lava-Jato, também é acusada por uma série de irregularidades trabalhistas, por exemplo, no estado do Amazonas. Responsável pela construção do estádio Arena da Amazônia, em Manaus, a construtora firmou, em setembro de 2014, um acordo judicial para o pagamento de R$ 5 milhões de danos morais coletivos por irregularidades trabalhistas na obra, como violações a regras relacionadas à segurança do trabalho em altura, com máquinas e equipamentos, em instalações elétricas e contra a projeção de materiais. A negligência custou a vida de três operários em decorrência de acidentes: Raimundo Nonato Lima Costa, Antônio José Pita Martins e Marcleudo Melo Ferreira. O horário do acidente ocorrido com este último, de madrugada, levantou a suspeita de que a construtora estaria pressionando os trabalhadores a finalizarem a obra, que recebeu, via estado do Amazonas, um financiamento de R$ 400 milhões do BNDES.
Corrupção e trabalho escravo
Estariam o trabalho escravo e as graves violações trabalhistas diretamente relacionados à corrupção?
Para alguns, sim. “A fraude trabalhista, que é o grande combustível do trabalho escravo, é uma face da mesma moeda da corrupção e da fraude tributária”, diz Renato Bignami, ex-coordenador estadual do programa de erradicação do trabalho escravo da Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de São Paulo. Ele acredita que a empresa que utiliza recursos públicos para a corrupção possivelmente precise “esquentar” esse dinheiro de alguma forma. “Ou cria empresas fictícias, ou cria folhas de pagamento fictícias, ou se beneficia de fraudes trabalhistas diversas”. Para Bignami, se juntamente com as investigações dos casos de trabalho escravo houvesse a busca por crimes de colarinho branco e tributários, outros delitos poderiam ser encontrados.
Para outros, a relação seria menos direta. Para Claudio da Silva Gomes, presidente da Confederação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores nas Indústrias da Construção e da Madeira, filiados à CUT, a partir do momento em que a empreiteira tem de considerar a corrupção como um item de custo, ela compensa na outra ponta. “Como ela faz isso? Mantendo precárias as condições de seus trabalhadores”, diz.
Como forma de abordar esses temas em conjunto, Bignami propõe a implementação de um plano nacional global de combate às fraudes trabalhistas e sociais. “Um plano que envolva a questão do vínculo empregatício, a discussão da terceirização e subcontratação, a questão das cadeias produtivas, principalmente aquelas que se utilizam de dinheiro público, que é onde está a fonte de corrupção, mas também os crimes de natureza securitária. Sugiro que isso seja feito com a participação de instituições como a Inspeção do Trabalho, a Receita Federal e a Polícia Federal”.
Ao contrário das denúncias da Lava-Jato, os inúmeros exemplos de violações aos direitos dos trabalhadores no setor da construção civil não ganham destaque na imprensa. Nem mesmo a extensa lista de mortes, trabalho escravo, obstrução da liberdade, salários não pagos, alojamentos desumanos e aliciamento de trabalhadores é capaz de gerar comoção e medidas concretas pela melhora desse quadro.
De acordo com dados da Previdência Social e do Ministério do Trabalho, a construção civil é o quinto setor econômico no Brasil em número de acidentes, mas o segundo em ocorrências fatais – hoje a média está em torno de 450 mortes por ano. O risco de um trabalhador morrer na construção é mais do que o dobro da média dos outros setores, enquanto a probabilidade de ficar incapacitado permanentemente é multiplicada por seis.
Chama a atenção o aumento de resgates de trabalhadores em condições análogas à escravidão no meio urbano, contrariando uma tendência de libertações majoritariamente no campo desde 1995, quando foi instituída uma política nacional de combate ao crime. Nas cidades, os casos acontecem principalmente nos setores têxteis e da construção civil.
“No ramo da construção, existe muito desprezo pelo atendimento das obrigações trabalhistas”, aponta a procuradora do Trabalho Guadalupe Couto. “Conversando com proprietários de grandes construtoras, percebe-se que há a visão de que ‘se os funcionários estão recebendo marmita, o salário pode atrasar’”.
Dados do Ministério do Trabalho sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra revelaram que a construção civil foi o setor com o maior número de vítimas de trabalho escravo em 2013: 866, o que representa 40% do total de trabalhadores resgatados no país naquele ano. O setor já havia liderado em 2012, mas com um percentual bem menor: 23%. Em 2014, de acordo com levantamento do governo federal, a construção civil continuou à frente, com 27%, do total de libertados.
Grandes empreiteiras são diretamente responsáveis por parte desses números. A MRV, por exemplo, foi flagrada nada menos que cinco vezes desde 2011. Além do caso do aeroporto de Guarulhos, a OAS foi considerada responsável por utilizar mão de obra escrava de 124 pessoas na construção da torre comercial do Shopping Boulevard, em Belo Horizonte, Minas Gerais, também em 2013. O episódio fez a empresa ser incluída, em julho de 2014, na chamada “lista suja” da escravidão, cadastro do Governo Federal em que constam os nomes dos empregadores flagrados utilizando trabalho escravo. A lista hoje está suspensa por conta de uma decisão do Supremo Tribunal Federal a pedido da associação das incorporadoras imobiliárias. Antes da suspensão, porém, a construtora já havia sido excluída.
Para “inglês ver''
“Mais um instrumento para inglês ver” é como o auditor fiscal Marcelo Campos vê o Compromisso Nacional para o Aperfeiçoamento das Condições de Trabalho na Indústria da Construção, acordo assinado em fevereiro de 2012 entre Governo Federal, empreiteiras e trabalhadores após revoltas de operários ocorridas no ano anterior no canteiro de obras da usina hidrelétrica de Jirau, em Rondônia.
Coordenador do Projeto de Combate ao Trabalho Análogo ao de Escravo em Minas Gerais, do Ministério do Trabalho e Emprego, ele diz que, de acordo com a experiência dele e de sua equipe no estado do Sudeste, “entendemos que o compromisso não se efetivou”.
O acordo é criticado por não atacar todos os problemas trabalhistas do setor. Por exemplo, o fato de a construtora aderir a ele não como uma política permanente, mas por inscrição de obras, conjuntos ou frentes de trabalho específicos. Ou seja, em construções não inscritas no compromisso, a empresa não é obrigada a seguir seus termos.
Outro questionamento diz respeito à abrangência do acordo, já que a maioria das empresas continua de fora. Como consequência, violações trabalhistas continuam ocorrendo com frequência no setor. “As empresas que são signatárias vêm cumprindo o acordo. O problema é que o número é pequeno”, avalia Claudio da Silva Gomes, presidente da Confederação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores nas Indústrias da Construção e da Madeira filiados à CUT, uma das entidades de trabalhadores que participou da negociação do compromisso e é uma de suas signatárias.
Por meio do acordo, as grandes empreiteiras se comprometem a, entre outros pontos, garantir condições adequadas de trabalho e a ampliação da representatividade dos trabalhadores nas grandes obras. Segundo Gomes, em relação à última questão, a avaliação é positiva: “tanto que depois do pacto não tivemos mais aqueles conflitos da natureza que tinha anteriormente”. Em relação a Jirau, no entanto, o compromisso não evitou nova revolta de trabalhadores apenas dois meses depois do início de sua vigência.
Há ainda sérias dúvidas sobre a efetividade do cumprimento de um dos principais pontos do compromisso: o recrutamento de trabalhadores em municípios e estados diferentes dos da obra. Essa prática abre caminho para a atuação dos “gatos”, intermediários que buscam operários para trabalharem em outros locais. Como em geral o pretendente à vaga é convencido a viajar por meio de falsas promessas de bons salários, registros em carteira e outros benefícios, ele acaba sendo vítima de superexploração. Como forma de tentar evitar essa situação, o acordo prevê que as empresas devem utilizar o Sistema Nacional de Emprego, o Sine, do Governo Federal, para realizar as contratações – o trabalhador pode se cadastrar no órgão para concorrer a vagas de emprego. Porém, segundo a reportagem apurou, a avaliação do próprio governo é de que o Sine não vem sendo efetivo nessa tarefa, por manter um banco de dados desatualizado e não ter pessoal capacitado para a função. Dessa forma, a atuação dos “gatos” não foi restringida.
Ainda de acordo com o apurado pela Repórter Brasil, durante o processo de negociação do Compromisso, alegando aumento dos custos, as empreiteiras teriam rechaçado a proposta de contratação dos trabalhadores em seus locais de origem. Essa medida é considerada fundamental por quem atua no combate à superexploração de mão de obra como melhor forma de impedir o aliciamento.
A lista de empresas e obras signatárias disponibilizada no site da então Secretaria Geral da Presidência da República (hoje Secretaria de Governo), órgão que articulou o acordo, mostra que empresas já flagradas com trabalho escravo a integram, como a OAS e a MRV. No caso da primeira, consta até a obra na qual foi realizado o flagrante, a de ampliação do aeroporto de Guarulhos.
Questionada pela reportagem, a Secretaria disse que os itens do compromisso, que tem vigência até dezembro de 2018, são fiscalizados pela representação dos trabalhadores nos canteiros de obras criada no âmbito do próprio acordo. “As avaliações do Compromisso feitas periodicamente pelos sindicatos são majoritariamente positivas. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Confederação Internacional dos Trabalhadores da Construção e Madeira [ICM] também já se manifestaram favoravelmente”.
Mas quantas vezes você já pensou na relação entre casos de corrupção e as condições dos trabalhadores do país?
Investigadas pela Polícia Federal, construtoras como Andrade Gutierrez, Camargo Correa, Odebrecht e OAS apresentam extensa ficha corrida de violações trabalhistas. Algumas delas, inclusive, foram responsabilizadas por trabalho análogo ao escravo. Este levantamento realizado por Igor Ojeda, para a Repórter Brasil, discute a relação entre os dois crimes e analisa como combatê-los de forma integrada.
Lava Jato e o trabalho escravo: quem paga pela corrupção na construção civil, por Igor Ojeda
Os três casos listados abaixo têm três elementos em comum. Descubra quais.
Caso um. Em uma casa da periferia de Guarulhos, em São Paulo, 38 homens se amontoavam no espaço de quatro quartos e dois banheiros. Muitos dormiam na cozinha, outros, debaixo da escada. Não havia colchões para todos. Os habitantes tinham de dividi-los entre si ou dormir no chão, enrolados em lençóis. Faltavam fogão e geladeira, nem a água chegava todos os dias.
Vindos do Pernambuco, os operários aguardavam para trabalhar na ampliação do aeroporto de Cumbica, obra da OAS, em 2013. A promessa era de carteira assinada, salário de R$ 1.412, vale-alimentação de R$ 320 e vale-transporte de R$ 360. Para garantir a vaga, cada um havia desembolsado cerca de R$ 500. O Ministério do Trabalho e Emprego responsabilizou a construtora pela exploração de trabalho análogo ao de escravo. Em novembro do mesmo ano, firmou um acordo judicial com o Ministério Público do Trabalho de São Paulo e aceitou pagar R$ 15 milhões pelo flagrante.
Caso dois. Um par de anos antes, do outro lado do oceano Atlântico, em Angola, operários brasileiros bebiam água não potável, faziam suas refeições de qualidade duvidosa em um ambiente infestado por ratos e baratas e eram obrigados, muitas vezes, a defecar no mato. Vômitos e diarreias eram comuns, assim como doenças como malária e febre tifoide.
Os trabalhadores, recrutados em sua maioria no interior paulista, atuavam na construção da usina de açúcar e etanol Biocom, obra da construtora Odebrecht. Em setembro de 2015, a empresa foi condenada pela Justiça do Trabalho em São Paulo, juntamente com duas de suas subsidiárias, ao pagamento de R$ 50 milhões por tráfico de pessoas e exploração de mão de obra escrava de 500 trabalhadores.
Caso três. Em 2009, 38 operários maranhenses foram obrigados, por vários dias, a disputar o pequeno espaço de um barracão de madeira improvisado para descansar após a dura jornada na construção da vila Nova Mutum, local que abrigaria as famílias que residiam na área inundada pela hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira, em Rondônia. Os trabalhadores dormiam em colchões improvisados, pois não havia camas. As instalações elétricas eram precárias, oferecendo risco de incêndio, e o banheiro, feito de tábuas de madeira, não tinha teto. Sequer água potável era fornecida.
O Ministério do Trabalho e Emprego e o Ministério Público do Trabalho responsabilizaram, por exploração de mão de obra escrava, a Construtora BS, que prestava serviços ao consórcio responsável pela construção da usina, do qual faz parte a empreiteira Camargo Corrêa.
Além da exploração de trabalho escravo e do aliciamento de imigrantes, esses casos têm uma terceira elemento em comum: aconteceram em obras de grandes empreiteiras envolvidas nas denúncias de corrupção da Operação Lava-Jato, da Polícia Federal.
A precariedade de condições ofertadas aos trabalhadores contrasta com as altas cifras de corrupção ligadas a essas mesmas empresas na investigação. Enquanto operários dormiam no chão e não tinham acesso ao banheiro, denúncias apresentadas ao Ministério Público Federal apontam que a Odebrecht teria desembolsado R$ 144 milhões, a Andrade Gutierrez, R$ 123 milhões, e a Camargo Correa, 110 milhões para um esquema de corrupção que envolvia políticos e funcionários da Petrobras.
A economia com os funcionários chama ainda mais atenção quando comparada com as volumosas verbas públicas destinadas a essas construtoras. A expansão do aeroporto de Guarulhos, por exemplo, recebeu um investimento inicial de R$ 1,2 bilhão do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. Em dezembro de 2013, poucos meses após o flagrante de trabalho escravo, a instituição aprovou mais R$ 2,28 bilhões. A OAS era uma das quatro empresas que formavam o consórcio Invepar que, juntamente com a Airports Company South Africa, detinha 51% da sociedade com a Infraero para a administração do Aeroporto Internacional de Guarulhos.
Sobre a construção da usina Biocom pela Odebrecht, pesa a suspeita, segundo o Ministério Público do Trabalho, de que tenha havido “financiamento oculto” do BNDES. Já a construção da usina de Jirau, incluída no Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, do Governo Federal, e tocada pela Camargo Corrêa, recebeu do BNDES financiamento inicial de 7,2 bilhões.
Sobre o caso ocorrido em Angola, a Odebrecht afirma deter participação minoritária na Biocom e não ser responsável pela construção do empreendimento, “que foi executada por companhias especializadas e contratadas pela própria Biocom”. Disse também que as condições de trabalho são “adequadas”, que “nunca existiu qualquer cerceamento de liberdade de qualquer trabalhador”. (Leia a nota da empresa na íntegra).
A construtora, condenada por conta dessa denúncia, deve explicações também sobre a libertação, no fim de julho deste ano, de 11 trabalhadores nas obras da Vila dos Atletas, que irá abrigar competidores das Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016. As vítimas, vindas do Maranhão, Paraíba, Bahia e Espírito Santo, dormiam em pequenas quitinetes numa favela da região. Algumas delas afirmaram passar a noite do lado de fora das casas, por conta da sujeira dos locais. Um cheiro forte de esgoto saía do ralo do quarto de uma das residências, e os operários tinham de conviver com ratos e baratas. Segundo a procuradora Guadalupe Louro Turos Couto, do Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro, além da empresa terceirizada Brasil Global Serviços, as integrantes do Consórcio Ilha Pura, a Odebrecht e a Carvalho Hosken, que tocam a obra, também serão responsabilizadas.
Procurada pela Repórter Brasil sobre esse flagrante de trabalho escravo, o Consórcio Ilha Pura disse identificar e fiscalizar os alojamentos mantidos por seus fornecedores e que a Brasil Global Serviços havia declarado que não possuía alojamento por que todos os contratados tinham comprovantes de residência do Rio de Janeiro. (Leia a nota da empresa na íntegra).
A OAS e a Camargo Corrêa não responderam aos pedidos de entrevista.
Além do caso de trabalho escravo nas obras de compensação social, o canteiro da usina hidrelétrica de Jirau, foi palco de uma revolta de trabalhadores, em março de 2011, por conta de queixas como não pagamento de horas-extras, falta de tratamento para operários adoecidos e o não cumprimento das promessas feitas quando do recrutamento em outros estados. Parte do canteiro ficou destruída e tropas da Força Nacional passaram a ocupar o local. A rebelião resultou na assinatura, em fevereiro de 2012, do Compromisso Nacional para o Aperfeiçoamento das Condições de Trabalho na Indústria da Construção, que foi criticado por não contemplar todos os problemas trabalhistas do setor. Dois meses depois do início da vigência do acordo, uma nova revolta eclodiu em Jirau.
A Andrade Gutierrez, outra grande empreiteira denunciada por corrupção no esquema investigado pela Lava-Jato, também é acusada por uma série de irregularidades trabalhistas, por exemplo, no estado do Amazonas. Responsável pela construção do estádio Arena da Amazônia, em Manaus, a construtora firmou, em setembro de 2014, um acordo judicial para o pagamento de R$ 5 milhões de danos morais coletivos por irregularidades trabalhistas na obra, como violações a regras relacionadas à segurança do trabalho em altura, com máquinas e equipamentos, em instalações elétricas e contra a projeção de materiais. A negligência custou a vida de três operários em decorrência de acidentes: Raimundo Nonato Lima Costa, Antônio José Pita Martins e Marcleudo Melo Ferreira. O horário do acidente ocorrido com este último, de madrugada, levantou a suspeita de que a construtora estaria pressionando os trabalhadores a finalizarem a obra, que recebeu, via estado do Amazonas, um financiamento de R$ 400 milhões do BNDES.
Corrupção e trabalho escravo
Estariam o trabalho escravo e as graves violações trabalhistas diretamente relacionados à corrupção?
Para alguns, sim. “A fraude trabalhista, que é o grande combustível do trabalho escravo, é uma face da mesma moeda da corrupção e da fraude tributária”, diz Renato Bignami, ex-coordenador estadual do programa de erradicação do trabalho escravo da Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de São Paulo. Ele acredita que a empresa que utiliza recursos públicos para a corrupção possivelmente precise “esquentar” esse dinheiro de alguma forma. “Ou cria empresas fictícias, ou cria folhas de pagamento fictícias, ou se beneficia de fraudes trabalhistas diversas”. Para Bignami, se juntamente com as investigações dos casos de trabalho escravo houvesse a busca por crimes de colarinho branco e tributários, outros delitos poderiam ser encontrados.
Para outros, a relação seria menos direta. Para Claudio da Silva Gomes, presidente da Confederação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores nas Indústrias da Construção e da Madeira, filiados à CUT, a partir do momento em que a empreiteira tem de considerar a corrupção como um item de custo, ela compensa na outra ponta. “Como ela faz isso? Mantendo precárias as condições de seus trabalhadores”, diz.
Como forma de abordar esses temas em conjunto, Bignami propõe a implementação de um plano nacional global de combate às fraudes trabalhistas e sociais. “Um plano que envolva a questão do vínculo empregatício, a discussão da terceirização e subcontratação, a questão das cadeias produtivas, principalmente aquelas que se utilizam de dinheiro público, que é onde está a fonte de corrupção, mas também os crimes de natureza securitária. Sugiro que isso seja feito com a participação de instituições como a Inspeção do Trabalho, a Receita Federal e a Polícia Federal”.
Ao contrário das denúncias da Lava-Jato, os inúmeros exemplos de violações aos direitos dos trabalhadores no setor da construção civil não ganham destaque na imprensa. Nem mesmo a extensa lista de mortes, trabalho escravo, obstrução da liberdade, salários não pagos, alojamentos desumanos e aliciamento de trabalhadores é capaz de gerar comoção e medidas concretas pela melhora desse quadro.
De acordo com dados da Previdência Social e do Ministério do Trabalho, a construção civil é o quinto setor econômico no Brasil em número de acidentes, mas o segundo em ocorrências fatais – hoje a média está em torno de 450 mortes por ano. O risco de um trabalhador morrer na construção é mais do que o dobro da média dos outros setores, enquanto a probabilidade de ficar incapacitado permanentemente é multiplicada por seis.
Chama a atenção o aumento de resgates de trabalhadores em condições análogas à escravidão no meio urbano, contrariando uma tendência de libertações majoritariamente no campo desde 1995, quando foi instituída uma política nacional de combate ao crime. Nas cidades, os casos acontecem principalmente nos setores têxteis e da construção civil.
“No ramo da construção, existe muito desprezo pelo atendimento das obrigações trabalhistas”, aponta a procuradora do Trabalho Guadalupe Couto. “Conversando com proprietários de grandes construtoras, percebe-se que há a visão de que ‘se os funcionários estão recebendo marmita, o salário pode atrasar’”.
Dados do Ministério do Trabalho sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra revelaram que a construção civil foi o setor com o maior número de vítimas de trabalho escravo em 2013: 866, o que representa 40% do total de trabalhadores resgatados no país naquele ano. O setor já havia liderado em 2012, mas com um percentual bem menor: 23%. Em 2014, de acordo com levantamento do governo federal, a construção civil continuou à frente, com 27%, do total de libertados.
Grandes empreiteiras são diretamente responsáveis por parte desses números. A MRV, por exemplo, foi flagrada nada menos que cinco vezes desde 2011. Além do caso do aeroporto de Guarulhos, a OAS foi considerada responsável por utilizar mão de obra escrava de 124 pessoas na construção da torre comercial do Shopping Boulevard, em Belo Horizonte, Minas Gerais, também em 2013. O episódio fez a empresa ser incluída, em julho de 2014, na chamada “lista suja” da escravidão, cadastro do Governo Federal em que constam os nomes dos empregadores flagrados utilizando trabalho escravo. A lista hoje está suspensa por conta de uma decisão do Supremo Tribunal Federal a pedido da associação das incorporadoras imobiliárias. Antes da suspensão, porém, a construtora já havia sido excluída.
Para “inglês ver''
“Mais um instrumento para inglês ver” é como o auditor fiscal Marcelo Campos vê o Compromisso Nacional para o Aperfeiçoamento das Condições de Trabalho na Indústria da Construção, acordo assinado em fevereiro de 2012 entre Governo Federal, empreiteiras e trabalhadores após revoltas de operários ocorridas no ano anterior no canteiro de obras da usina hidrelétrica de Jirau, em Rondônia.
Coordenador do Projeto de Combate ao Trabalho Análogo ao de Escravo em Minas Gerais, do Ministério do Trabalho e Emprego, ele diz que, de acordo com a experiência dele e de sua equipe no estado do Sudeste, “entendemos que o compromisso não se efetivou”.
O acordo é criticado por não atacar todos os problemas trabalhistas do setor. Por exemplo, o fato de a construtora aderir a ele não como uma política permanente, mas por inscrição de obras, conjuntos ou frentes de trabalho específicos. Ou seja, em construções não inscritas no compromisso, a empresa não é obrigada a seguir seus termos.
Outro questionamento diz respeito à abrangência do acordo, já que a maioria das empresas continua de fora. Como consequência, violações trabalhistas continuam ocorrendo com frequência no setor. “As empresas que são signatárias vêm cumprindo o acordo. O problema é que o número é pequeno”, avalia Claudio da Silva Gomes, presidente da Confederação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores nas Indústrias da Construção e da Madeira filiados à CUT, uma das entidades de trabalhadores que participou da negociação do compromisso e é uma de suas signatárias.
Por meio do acordo, as grandes empreiteiras se comprometem a, entre outros pontos, garantir condições adequadas de trabalho e a ampliação da representatividade dos trabalhadores nas grandes obras. Segundo Gomes, em relação à última questão, a avaliação é positiva: “tanto que depois do pacto não tivemos mais aqueles conflitos da natureza que tinha anteriormente”. Em relação a Jirau, no entanto, o compromisso não evitou nova revolta de trabalhadores apenas dois meses depois do início de sua vigência.
Há ainda sérias dúvidas sobre a efetividade do cumprimento de um dos principais pontos do compromisso: o recrutamento de trabalhadores em municípios e estados diferentes dos da obra. Essa prática abre caminho para a atuação dos “gatos”, intermediários que buscam operários para trabalharem em outros locais. Como em geral o pretendente à vaga é convencido a viajar por meio de falsas promessas de bons salários, registros em carteira e outros benefícios, ele acaba sendo vítima de superexploração. Como forma de tentar evitar essa situação, o acordo prevê que as empresas devem utilizar o Sistema Nacional de Emprego, o Sine, do Governo Federal, para realizar as contratações – o trabalhador pode se cadastrar no órgão para concorrer a vagas de emprego. Porém, segundo a reportagem apurou, a avaliação do próprio governo é de que o Sine não vem sendo efetivo nessa tarefa, por manter um banco de dados desatualizado e não ter pessoal capacitado para a função. Dessa forma, a atuação dos “gatos” não foi restringida.
Ainda de acordo com o apurado pela Repórter Brasil, durante o processo de negociação do Compromisso, alegando aumento dos custos, as empreiteiras teriam rechaçado a proposta de contratação dos trabalhadores em seus locais de origem. Essa medida é considerada fundamental por quem atua no combate à superexploração de mão de obra como melhor forma de impedir o aliciamento.
A lista de empresas e obras signatárias disponibilizada no site da então Secretaria Geral da Presidência da República (hoje Secretaria de Governo), órgão que articulou o acordo, mostra que empresas já flagradas com trabalho escravo a integram, como a OAS e a MRV. No caso da primeira, consta até a obra na qual foi realizado o flagrante, a de ampliação do aeroporto de Guarulhos.
Questionada pela reportagem, a Secretaria disse que os itens do compromisso, que tem vigência até dezembro de 2018, são fiscalizados pela representação dos trabalhadores nos canteiros de obras criada no âmbito do próprio acordo. “As avaliações do Compromisso feitas periodicamente pelos sindicatos são majoritariamente positivas. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Confederação Internacional dos Trabalhadores da Construção e Madeira [ICM] também já se manifestaram favoravelmente”.
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