Pablo Vilaça.
"Aqueles
que me acompanham há algum tempo sabem que frequentemente escrevo sobre
a necessidade da serenidade na política. Inúmeras vezes falei que não
era aceitável tratar oponentes políticos como inimigos. Salientei que o
debate não se faz com violência.
Infelizmente,
se sempre adotei esta postura de forma natural, sem qualquer esforço,
nos últimos dias passei a ter que me obrigar a mantê-la. Se os
acontecimentos de quinta/sexta-feira conseguiram algo, foi radicalizar
até mesmo quem se orgulhava da moderação.
Na
quinta-feira, uma delação não homologada (e que, mesmo se fosse,
deveria ser sigilosa) foi publicada na IstoÉ. Enquanto o suposto delator
se recusou a confirmá-la, o procurador-geral da república, que seria o
responsável por fazê-la, foi mais enfático: negou sua existência. Isto
não impediu a Globo e suas cúmplices de transformarem a tal "delação" em
destaque absoluto. Se Delcídio antes era retratado por elas como um
sujeito sem escrúpulos, imediatamente sua palavra passou a ter peso de
lei - não eram necessárias mais quaisquer provas; Delcídio havia afirmado e pronto. Até que, claro, ele se negou a confirmar a delação e voltou a ser sumariamente ignorado.
Já na
sexta-feira de madrugada, por volta de duas da manhã, o editor da Época
(ligada à Globo), que há muito já deixou de sequer simular qualquer
objetividade jornalística, tuitou duas vezes sobre a ação da PF que só
aconteceria horas depois. Uma ação que, de novo, deveria ser sigilosa,
mas sobre a qual a imprensa já havia sido informada há dez dias (como
comprovou a denúncia feita pelo blogueiro Eduardo Guimarães uma semana
antes). Antes que a PF chegasse ao apartamento de Lula, um helicóptero
da Globo sobrevoava seu apartamento e repórteres da Foxlha esperavam na
porta. Já os ADVOGADOS do ex-presidente ainda não haviam sido notificados.
Mas o
abuso maior estava por vir: sem ter sido sequer intimado previamente,
Lula foi submetido à humilhação do depoimento coercitivo - um abuso tão
grande de poder que até dois ministros do STF (um deles historicamente
crítico à esquerda) condenaram a ação, bem como juristas respeitados e
até mesmo (pasmem) um dos fundadores do PSDB, Bresser Pereira.
O
abuso, claro, foi ignorado pela Globo e suas comparsas; o Jornal
Nacional chegou a aumentar em meia hora sua duração para celebrar a
ação. Já no sábado, quando a sede do PT foi atacada em Belo Horizonte, a
Globo chamou de "protesto" o que era claramente um ato de violência - e
quando algo similar aconteceu em outra capital, a emissora ENTREVISTOU
os "manifestantes".
Por
outro lado, quando manifestantes se posicionaram diante dos prédios da
emissora neste domingo, foram chamados de "milícia" e os colunistas
Merval e Noblat chegaram a convocar OS MILITARES pra combater a "turba".
Como
manter a serenidade assim? Como tentar se manter ponderado quando
passamos a viver em um país no qual a oposição agora, mesmo perdendo nas
urnas, se vê no direito até de dizer quem pode ou não ser ministro? No
qual a mídia escancarou de vez o objetivo de destruir toda a esquerda? No
qual um juiz, "premiado" pela Globo e celebrado por tucanos, usa o
poder judiciário para perseguir os inimigos políticos das corporações?
Um
país no qual investigações e notícias são seletivas? A
funcionária-fantasma de Serra já foi esquecida; os apartamentos no
exterior e as remessas feitas por offshore por FHC não são mais
discutidos; o helicóptero com 500kg de pasta-base virou anedota; o
aeroporto construído na fazenda da família do senador é passado; o
merendão tucano é só uma expressão sem significado; o cartel dos trens
depende mais das ações da justiça suíça do que da brasileira; a
sonegação bilionária de impostos da Globo virou apenas meme; a operação
Zelotes decidiu que investigar a RBS (e a Globo) é bobagem; etc, etc,
etc.
E é
neste momento, quando apontamos a impunidade da direita e das
corporações, que alguém invariavelmente diz: "Um erro não justifica o
outro! TODOS devem ser investigados!" - uma das mais frequentes
manifestações de cinismo vistas na rede. Sim, cinismo. Porque quem diz
isso SABE que não, NÃO são todos que são investigados. É como um sujeito
que, vendo o primo bater num vizinho todos os dias, diz que ninguém
deve interferir na briga, pois o outro garoto também pode bater se
quiser - mesmo sabendo que ele não tem condições semelhantes para lutar.
Esta
lógica particular é a mesma que ocorre nas ofensas diárias na rede. Se
critico a direita, sou "vendido"; se critico a esquerda, é porque "o
boleto venceu", "a mesada foi suspensa", "a mortadela acabou", etc.
Na mente desta neodireita, não há ideologia, há apenas jogo de
interesse e recompensas financeiras - uma postura despolitizada,
alienada, que encontra reflexos nos "argumentos" com os
quais lotam as caixas de comentários: "Chola mais", "Fora PT",
"Dilmanta", "o Brahma", "Pixulecos" e por aí afora. Detalhe: estas expressões não são apenas a introdução do que será um argumento, mas o argumento em si.
"Lá
vem você falando de 'nós' e 'eles', de 'direita' e 'esquerda' de novo! O
Lula está separando o Brasil! Vocês estão dividindo o país!" - é o
"argumento" que vem a seguir. A Globo e seus asseclas, ao lado
de um judiciário aparelhado pela direita, atacam a esquerda dia e noite,
massacram qualquer figura que se destaque neste lado do espectro
político, mas é a esquerda que está "dividindo" o país ao reagir. O que
eles querem dizer é: "aceitem o que estamos fazendo. Se não aceitarem,
dividirão o Brasil!". E então se enrolam na bandeira, cantam o hino
nacional, enchem suas bios de palavras como "patriota", "amo meu país" e
de outros sintomas do nacionalismo mais fascista enquanto espalham
memes sobre como qualquer um que defenda esta ou aquela ideia, que
critique este ou aquele partido, é "defensor de bandido", deve "ir pra Cuba" e - um que vi hoje - deve ser demitido do emprego, qualquer que seja este.
E o
mais triste? Em vez de perceberem o que está acontecendo, setores da
esquerda preferem ficar em cima do muro ou mesmo aproveitar a situação
para atacarem antigos aliados. No dia da condução coercitiva de
Lula, Luciana Genro soltou uma nota que é um primor de cinismo: em vez
de denunciar o abuso, preferiu afirmar que "há muito Lula não é de
esquerda".
E DAÍ, Luciana Genro? Vivo escrevendo que o governo Dilma e o PT não são de esquerda - e há pouco mais de dez dias escrevi
um texto atacando pesadamente o governo por sua traição na questão do
pré-sal que foi lido por mais de um milhão de pessoas e compartilhado
algumas milhares de vezes. Mas uma coisa garanto: por mais
decepcionante que PT e Dilma sejam, ainda são mais esquerdistas do que a
Globo, o PSDB e as elites desejam. Bem mais. E se você acha que não, espere para ver o que os programas de inclusão social sofrerão nas mãos desse pessoal.
E o que
Luciana Genro e semelhantes esperam com isso? Que a direita destrua o
PT e Lula e, então, permita que o PSOL se torne o grande representante
da esquerda brasileira? Mesmo?
A
mídia e a direita escancararam a guerra; agora chegam a pedir ação dos
militares contra aqueles que ousam desafiá-las. Não há mais "em cima do
muro".
Há momentos nos quais fazer a História é mais importante do que comentá-la. Este é um deles."
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