terça-feira, 23 de setembro de 2008

ARTIGO - Os meninos de nossa América.

Há duas formas de ver uma realidade social. Podemos vê-la em sua abstraçãoestatística e acadêmica. Saber que, em qualquer país do mundo, tantos por cento da população sofrem de desnutrição nos comove. Mas quando olhamos a face de uma só criança faminta, somos convocados à reflexão.

Por Mauro Santayana

Líderes de nove países sul-americanos se reuniram segunda-feira em Santiago e decidiram, por unanimidade, defender a ordem constitucional na Bolívia. Deixaram claro, na economia verbal de sua declaração, que reagirão, em bloco, contra toda tentativa de golpe ou rebelião que ameace o processo constitucional no país andino. Fizeram o que deviam ter feito: é imperioso que se defenda o estado democrático de direito, para que se garanta a vida e a dignidade de todos os habitantes do continente. Até agora, a "democracia" dos nossos países vinha sendo pautada pelos interesses norte-americanos. Quando procurávamos romper esses limites, a fim de que ela se construísse, como governo do povo e para o povo, a violência da intervenção estrangeira frustrava nossos esforços. Pela primeira vez, agora, os sul-americanos se reuniram, sem estranhos, a fim de decidir sobre um problema do continente.

Enquanto os líderes se reuniam em Santiago, em Salvador era exibido – durante a Jornada Internacional de Cinema, organizada por Guido Araújo – documentário do cineasta argentino Rodrigo Vázquez sobre os meninos da cordilheira boliviana, que arrancam, de minas precárias, lascas de rochas estaníferas, para delas sobreviver. Rodrigo desprezou as estatísticas. Colocou diante da câmera dois meninos, Jorge e Alex, e os ouviu com atenção. Dividiu seu trabalho em duas etapas. Acompanhou-os durante alguns dias e voltou um ano mais tarde, em 2007.

As minas de Lhallagua, na velha região mineira de Oruro, cenário de seu filme, são de propriedade do Estado, mas não há empresas organizadas para explorá-las. O governo permite que os antigos sindicatos de mineiros o façam, e os sindicatos, depois de escolher os melhores veios, autorizam a entrada de mineradores autônomos. Há controle oficial, para impedir a entrada de menores, mas, com cumplicidade solidária, os encarregados fecham os olhos à chegada dos meninos, depois da hora habitual de início do trabalho. Se não trabalham ali, não têm o que comer. Ganham, no máximo, um dólar por jornada. "Eu sei que vou ficar doente, que posso morrer. Mas prefiro não morrer de fome", diz Jorge, um deles.

Eles sabem que serão vítimas da silicose, como seus pais e avós. Antigamente, quando o estanho tinha melhor preço, e os trabalhadores eram organizados, seus pais iam para os túneis já adultos. Ainda assim, quase todos morriam por volta dos 40 anos. Como o organismo infantil é mais débil, a morte chega bem mais cedo. Quando Vazquez voltou a Lhallagua, Jorge já estava atingido pela doença.

O filme é seco na narrativa. A câmera acompanha os dois meninos escolhidos pelo interior das minas. Seu medo maior é o dos desabamentos, quando mineiros são soterrados ou bloqueados nas galerias, e a morte, pela progressiva asfixia, é ainda pior. Essas crianças mantêm, no entanto, a esperança. Jorge quer estudar e ser advogado. Se não puder ser advogado, qualquer outra coisa longe das minas lhe serve, como o ofício de pedreiro ou de carpinteiro.

O governo de Morales ainda não pôde dedicar-se aos mineiros das terras frias e áridas das altas encostas andinas. Eles perderam força política a partir do novo liberalismo, com a privatização das empresas estatais pelo governo de Sánchez de Lozada, um boliviano que fala melhor o inglês do que o espanhol. As crianças – segundo o cineasta, mais de 3 mil, espalhadas por todas as minas sucateadas – são também vilmente exploradas por algumas ONGs que se encarregam de comprar o minério e o revender, com lucros, é claro.

O documentário comoveu um casal de muçulmanos residente em Londres, que decidiu usar o dinheiro economizado para financiar sua viagem a Meca, a fim de salvar os dois meninos, que voltaram à escola. Mas os outros ali continuam. Continuam ali, como continuam os meninos das favelas cariocas, vivendo das sobras do narcotráfico, para morrer abatidos pelas balas, provavelmente fabricadas com os metais que os garotos dos Andes extraem do fundo das montanhas. Como morrem as crianças do Iraque, do Afeganistão, da Palestina.
Fonte: Site O Vermelho.

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