por Michael Hudson
As actuais discussões sobre a desordem hipotecária estão a afundar num mundo irreal. Os advogados do salvamento de US$700 mil milhões estão agora a entoar um coro a proclamar que o problema é simplesmente uma falta de liquidez. Esta espécie de problema, dizem eles, pode ser resolvida "de forma limpa" (isto é, sem qualquer contribuição do Congresso a fim de proteger alguém excepto os principais contribuidores para a campanha eleitoral da administração Bush) pela "bombagem de crédito" da Reserva Federal para dentro do sistema através da compra de títulos que não têm qualquer mercado quando "seca a liquidez".
O que há de errado com este quadro? A realidade é que há demasiada liquidez no sistema. É por isso que o rendimento dos títulos do Tesouro dos EUA caiu para apenas 0,16 por cento – apenas um sexto de um por cento! Isto é o que acontece quando há uma fuga para a segurança. Pelos investidores líquidos. Muitos dos quais estão agora a fugir para o estrangeiro, como mostrou ontem (22/Setembro) o pelo mergulho de 3% do dólar em relação ao Euro
A pergunta que os media evitam fazer é quem estão a tentar tornar seguras? A resposta deveria ser óbvia para qualquer um que tenha estado a ler acerca do problema das hipotecas lixo. Os investidores – especialmente na Alemanha, cujos bancos foram severamente queimados – procuram estarem seguros da fraude e da adulteração. Os bancos e firma dos EUA perderam a confiança dos grandes investidores institucionais daqui e do exterior, devido a anos e anos de adulterações tanto em relação à qualidade das hipotecas como de outras dívidas que vendiam. Isto é uma contabilidade estilo Enron com um ponto de exclamação – fraude numa escala sem paralelo.
Quantas lágrimas deveríamos nós verter pelas vítimas? As firmas e bancos da Wall Street enterradas em hipotecas lixo estão na posição de receptadores a que acreditavam terem comprado de boa fé dinheiro roubado ("caído de um camião") a uma gang de assaltantes de bancos, só para descobrir que os títulos que haviam comprado eram contrafacções – com os seus números de série registados para tornar o seu gasto um bocado difícil. O problema deles agora é como livrar-se deste lixo. A resposta é selar um acordo com os próprios vendedores, os que os ajudaram a roubar o banco em primeiro lugar.
Há um longo pedigree para esta espécie de comportamento. E ele parece sempre envolver uma parceria entre os iniciados cleptocráticos e o Tesouro. A novidade de hoje é que os banksters [=banqueiros+gangsters] conseguiram a cumplicidade da indústria contabilística e também das companhias de classificação de títulos. A gang toda está aqui.
Como os mass media destes dias estão a considerar Henry Paulson como o mais poderoso secretário do Tesouro desde Alexander Hamilton, penso que é relevante examinar os dois actos principais do sr. Hamilton que representam notáveis precedentes para os actuais US$800 mil milhões de "cash para lixo" do acordo do sr. Paulson com os principais contribuintes da Wall Street para a campanha eleitoral do sr. Bush.
Os dois paralelos mais apropriados são o resgate (redemption) dos "continentals" – papel moeda emitido pelas colónias durante a Guerra Revolucionária – e as concessões de terra no Yazoo. Durante a Revolução, alguns estados emitir dinheiro em papel para pagar as tropas e atender outras despesas básicas. Estas notas em papel depreciaram-se, portanto a expressão "não vale um continental" (devido também à contrafacção em grande escala pelos britânicos a fim de provocar rupturas económicas aqui). Nas crise, homens com dinheiro metálico moviam-se de um lado para outro a fim de comprar continentals com um grande desconto. Num dos actos mais notórios e debatidos da Convenção Constitucional, o novo Governo dos Estados Unidos resgatou ao par este depreciado dinheiro de papel.
Isto foi como o Tesouro de hoje a comprar hipotecas lixo ao valor facial. Mas é no escândalo Yazoo a seguir que encontramos uma combinação perfeita de fraude financeira e imobiliária de uma magnitude que ajudou a estabelecer algumas das grandes fortunas fundadoras da América, criando riqueza dinástica que sobreviveu até os dias de hoje.
A fraude das terras no [rio] Yazoo , em Bourbon County, Geórgia, é um dos mais infames incidentes da nossa primitiva República. Em Janeiro de 1795 o estado vendeu 35 milhões de acres [141.641 km 2 ] a quatro companhias de terra por menos de 1,5¢ por acre. Isto resultou de subornos organizados por James Wilson – a quem George Washington a seguir deu um prémio nomeando-o para o Supremo Tribunal. (Moral: o crime compensa) Para agravar ainda mais a situação, o estado foi pago em divisa depreciada, os "continentals". Tão grande foi o protesto que foi eleito um novo legislativo do estado, que em Fevereiro de 1796 revogou a venda acusando seus beneficiários de "influência imprópria".
Mas um mês antes da reunião desta nova legislatura, uma das companhias (a Georgia Mississippi Land Company) vendeu 10 milhões de acres [40.689 km 2 ], nominalmente a 10¢, à New England Mississippi Land Company, a qual fora rapidamente organizada exactamente para isto por alguns eminentes especuladores de Boston, encabeçados por William Wetmore. Só uma parte do dinheiro foi realmente paga em cash, e a transacção era em grande parte no papel. A companhia contratou rapidamente agentes que começaram a vender porções de terra ao público. A especulação generalizou-se a seguir em muitos estados, com cada novo investidor tornando-se um defensor que pressionava os governos nacional e estadual a irem em frente com a fraude original.
Novos fraudadores saltaram para o negócio. Patrick Henry ("Dê-me a liberdade, ou dê-me a morte") encabeçou a Virginia Yazoo Company, a qual fez um acordo com o governador da Virgínia, Telfair, para comprar 20 milhões de acres a um tostão por acre – pagos com continentals sem valor. O público estava furioso, mas os adeptos do "livre mercado" daqueles dias consideraram que de qualquer forma a riqueza não era senão um prémio pela assunção de riscos.
Depois de as terras do Yazzo serem submetidas ao governo federal, em 1803, uma série de investigações do Congresso relatou que a companhia de Boston realmente pouco havia pago, se é que algum, do preço da compra. (Isto agora é chamado alavancagem da dívida). Mas a companhia processou e fez lobby junto ao Congresso por mais de uma década para conseguir compensação pela perda dos seus papéis – isto, sua oportunidade perdida de lucrar com a transacção. Em 1814, na turbulência sequência da Guerra de 1812, o Congresso aprovou uma lei de indemnização compensando-os, e a outros investidores Yazoo, com US$8 milhões de fundos públicos. [1]
Este acordo ajudou a estabelecer um fatídico precedente legal conhecido como a doutrina dos compradores inocentes que possuem certos direitos adquiridos. O veredicto foi tramitado no Supremo Tribunal por James Wilson, que em 1782 (juntamente com Robert Morris como presidente do banco e o governador Morris) haviam obtido do legislativo da Pennsylvania um alvará para o Bank of North America em termos semelhantes àqueles da pretensão às terras Yazoo.
Como apontou Charles Beard no seu clássico Economic Interpretation of the Constitution, James Wilson, os dois Morris, e dois outros directores de banco (Thomas Fitzsimmons e George Clymer) actuaram como delegados junto à Convenção Constitucional, onde moldaram leis da América de modo a facilitar a desclassificação da propriedade pública e obter direitos especiais e alvarás para bancos e outros monopólios. (A palavra "privatização" precisou esperar cerca de dois século para entrar no léxico). Depois de o Bank of North America ter sido tão mal administrado que se seguiu um pânico monetário, a Pennsyulvania revogou o seu alvará. Wilson processou, argumentando "que o acto original foi uma admissão de um DIREITO ADQUIRIDO. Tal alvará não podia ser revogado sem "PREJUDICAR DIREITOS ADQUIRIDOS, e os direitos de partes inocentes". O legislativo capitulou e em 1787 reincorporou o banco. Assim teve origem a cláusula que Wilson inseriu na actual constituição proibindo qualquer estado de aprovar legislação que prejudicasse as obrigações de um contrato. E como resultado vieram decisões do Supremo Tribunal que deram a este país o mais negro registo de validações de fraudes de terra e subornos de toda a história", pois proibiram os legislativos estaduais e o Congresso de desfazer os resultados de subornos visíveis. (A história é contada por Thomas L. Brunk, em American Lordships, or A Brief Insight into the Suppressed History of Land Sharks and Their Control Over Government and Industry (Sioux City, Iowa, 1927, p. 84).
O Supremo Tribunal decidiu (em resposta à alegação de John Marshall sobre o caso de fraude de terras Fairfax na Virgínia) que o que importava não eram os métodos utilizados para obter uma concessão ou contrato, mas o facto de que compradores inocentes seriam prejudicados pela revogação de tais contratos uma vez que haviam sido firmados (Chandler 1945:74,390). Mesmo fraudes rematadas foram mantidas como irrevogáveis pela legislação subsequente, na base de que uma vez vendido um negócio a um comprador inocente, desfazer o contrato seria injusto. O comprador inconsciente ficaria despojado. Myers (1936:217) considerou isto como "a primeira de uma longa linha de decisões judiciais a validarem concessões e privilégios de toda espécie assegurados pelo suborno e pela fraude".
A nova doutrina deu um motivo para os privatizadores obterem dinheiro rapidamente através da venda de porções de transacções fraudulentas a especuladores e outros compradores, os quais podiam então pedir ao estado para "indemnizá-los" por tê-los prejudicado ao revogar sua compra criminosa! Hoje, da mesma, poluidores e proprietários imobiliários estão a processar o governo a fim de serem compensados por leis públicas que os impedem de fazer dinheiro através da violação ecológica e de outras regulamentações imobiliárias. Sua exigência é serem indemnizados por ganhos que alegadamente teriam sido capazes de obter se tais leis públicas não tivessem sido aprovadas!
As doutrinas do "comprador inocente" e dos "interesses adquiridos" tornaram difícil desfazer a fraude, nem que seja só porque a alternativa seria devolver ao estado o activo obtido pelo público comprador através de fraude. O Supremo Tribunal decidiu ser preferível deixar o primeiro roubo legitimar a sua fraude, deixando os "compradores inocentes" na posse da propriedade roubada. A posso tornou-se, ipso facto, nove décimos da lei. A moral desta história foi de que uma vez obtidos activos públicos, mesmo através do suborno, ele é seu, pelo menos se você fizer a transacção suficientemente complicada e envolver suficientes "partes inocentes" para tornar qualquer restauração do status quo ante irremediavelmente complicada.
O incidente Yazoo é excepcional apenas pela sua dimensão e pelo facto de que se tornou um precedente para práticas futuras. Em 1835 o Comité do Senado sobre Terras relatou: "O primeiro passo necessário para o êxito de qualquer esquema de especulação com terras públicas é corromper os responsáveis pela terra, através de um entendimento secreto entre as partes de que deverão receber uma certa porção dos lucros". [2]
Sessenta anos depois, em 1895, o governador de Iowa, William Larrabee, escreveu sobre como o sistema fora aperfeiçoado (em grande medida pelos barões ladrões dos caminhos de ferro): "O suborno sem rodeios é provavelmente o meio menos frequentemente empregado pelas corporações para o avanço das suas medidas. ... A táctica dos comités de corrupção políticos das corporações é averiguar as fraquezas e desejos de cada homem cujos serviços provavelmente vão necessitar, e atacá-lo, se a sua capitulação fosse essencial para a sua vitória, no seu ponto mais fraco. Homens com ambição política são encorajados a aspirar a subida ao cargo, e é-lhes assegurado o apoio corporativo para isso. A advogados sem clientes são prometidos negócios corporativos ou procuradorias assalariadas. Aqueles em apuros financeiros são acomodados com empréstimos. Homens vaidosos são bajulados e dada publicidade nos jornais. A outros são dados passes para suas famílias e amigos. A transportadores são dadas vantagens em termos de taxas sobre os seus competidores. A ideia é que todo legislador receberá alguma compensação pelo seu voto e influência que combine o máximo de desejabilidade para ele com o mínimo de violência para o seu auto-respeito. O lobby que representa as companhias de caminhos de ferro nas sessões legislativas habitualmente é o maior, o mais sagaz e o mais inescrupuloso de todos. ... Telegramas chovem sobre os membros não suspeitos. ... Outro reforço poderosos do lobby dos caminhos de ferro é, não raramente, uma imprensa subsidiada e seus correspondentes".
History of the Great American Fortunes (1936, pp. 218 e seguintes), de Gustavus Myers, dá os pormenores desta e de outras fraudes que moldaram a história americana. A moral é que grandes prendas para iniciados têm efeitos que perduram por séculos. É disto que estamos ameaçados hoje com a dádiva "limpa" do sr. Paulson aos seus clientes da Wall Street.
A moral é que há um grande perigo em ter um secretário do Tesouro que representa interesses financeiros de iniciados ao invés de representar o interesse nacional.
23/Setembro/2008
NOTAS
[1] Myers History of the Great American Fortunes (New York 1936):216ff. e 1912:181-84, 258-64, Brunk 1927:147f., e Chandler 1945:388f., drawing on Senate Docs., 18th Cong., 2nd Sess., Vol. II, Doc. No. 14, and Sen. Docs., 24th Cong., 1836-37, Vol. II, Doc. No. 212, and Wheaton's Reports, Supreme Court, IV, 255). Ver também Albert James Pickett, History of Alabama (to 1851), (Sheffield: 1896).
[2] Senate Docs., 23rd Cong., 2nd Sess. IV, Doc. No. 151 (March 3, 1835), cited in Myers 1936:218.
O original encontra-se em http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=10316
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
Nenhum comentário:
Postar um comentário