Mostra no Museu Judaico de Berlim põe em questão política de preservação dos museus europeus, diante do saque artístico e cultural feito pelos nazistas em relação a famílias judaicas no passado.
Flávio Aguiar
O Museu Judaico de Berlim expõe no momento a mostra “Saque e restituição”, dedicada a história das famílias judaicas que tiveram seu patrimônio artístico e cultural saqueado pelos nazistas nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, ou durante o conflito.Na mostra, há mais documentação e relatos do que objetos de arte. Ela acompanha a trajetória de quadros (a maioria), esculturas e livros que ou foram confiscados das famílias judaicas ou foram vendidos por estas em circunstâncias desfavoráveis. Ou seja, muitas vezes essas famílias eram forçadas a vender seu patrimônio seja por leis ou por serem obrigadas a emigrar.O mais impressionante da mostra é o detalhismo e a discriminação a que os nazistas chegaram na “apropriação” deste patrimônio. Em primeiro lugar, eles seguiam políticas diversificadas. Nos países do Ocidente (França, Holanda, Bélgica, a própria Alemanha e outros), a política era “tomar e preservar”. Nos países do Leste europeu, sobretudo na União Soviética, a política era “tomar e destruir”, em nome de neutralizar o suposto “complô judaico-comunista” para solapar o nacional-socialismo. Tudo, neste último caso, era visto como “arte ou cultura degeneradas”, não merecendo preservação. Ao contrário, sua destruição era um “serviço” prestado à “civilização superior” que estava por vir.Com a documentação extensa, pelo menos no que se referia ao Ocidente da Europa e à Alemanha, não foi muito difícil para os aliados, depois do fim da guerra, empreender e administrar a restituição aos ex-donos ou seus herdeiros. Criaram a Comissão Aliada de Arte. Mas houve custos e percalços inesperados.Nem todas as obras de arte expropriadas ou vendidas em condições adversas foram adquiridas por próceres nazistas, como Herrman Göring, que era um grande colecionador, além de presenteador, tendo oferecido quadros ao próprio Führer Adolf Hitler. Muitos dos quadros foram adquiridos ou foram parar em museus, que, depois da guerra, não se conformavam em devolve-los a seus antigos donos.Os processos de devolução tornaram-se demorados e custosos, e sua organização exigia apresentação de documentos comprobatórios, testemunhas, e a contratação dispendiosa de escritórios de advocacia especializados.A mostra do Museu Judaico é muito engenhosa e rigorosa neste sentido. Além de demonstrar o saque perpetrado pelos nazistas, exibe que se criou, nos anos do pós-guerra, uma verdadeira “indústria da restituição”. Quase nenhum dos quadros restituídos às famílias ficou no patrimônio destas. A maioria foi revendida a museus ou a colecionadores particulares. Não se tratava apenas de uma “impulsão a negócios” de herdeiros (muitas vezes os donos originais tinham morrido, alguns assassinados pelos próprios nazistas) sem compromisso estético ou de memória com as obras recuperadas.A recuperação das obras exigia gastos e dívidas consideráveis em viagens e comissões a advogados, que só a venda das obras podia saldar. Companhias de aviação ofereciam pacotes especiais para quem, dos Estados Unidos, quisesse viajar à Europa em busca de seus quadros de família, com comida kosher e tudo o mais. Uma exceção pungente a esse quadro de bons negócios foi o de um filho que, exasperado com a resistência que um museu lhe oferecia, negociou um bom preço e comprou o quadro que anos antes sua mãe vendera aos nazistas por uma bagatela, e deu-lhe de presente no seu nonagésimo nono aniversário.A vernissage da exposição transcorreu em meio a polêmicas. Recebi em mãos um manifesto de mulheres que tiveram seus pedidos de restituição negados. Além disso, levantava-se sistematicamente a pergunta: e o resto? Isto é: houve, com todas as suas contradições, uma política de restituição aos judeus cujo patrimônio artístico foi saqueado pelos nazistas. Mas o que fazer, como se vem debatendo, com o que os países do Ocidente saquearam de outros povos, como na Ásia, na África, nas Américas, na Oceania e inclusive na própria Europa, como no caso da Grécia?Museus e instituições do Ocidente levantam questões de segurança: dizem estar prontos à devolução, mas questionam se isso adiantaria, uma vez que os países reclamantes “não teriam condições” de proteger as próprias obras. O argumento é dúbio e conveniente, uma vez que essa suposta “falta de condições”, se verdadeira, foi provocada muitas vezes pelas políticas de saqueio econômico levadas a cabo pelos países das instituições que hoje detém a “posse” dos objetos em questão. No caso da restituição às famílias judaicas, o processo só se apressou com o fim da Guerra Fria, e com uma convenção assinada por dezenas de países em Washington, em 1998. No caso da corrente (ou correnteza?) de objetos levados de países pobres para países ricos ao longo dos séculos de exploração e domínio coloniais, só um marco regulatório concertado num organismo como a ONU, ou a ela conexo (como a UNESCO) poderia dirimir as dúvidas e criar uma baliza de direito para dirimir dúvidas e disputas. Mas será isso possível num momento em que as crises endêmicas do capitalismo triunfante desse começo de século XXI levam à contestação das arenas internacionais (como a própria ONU) em favor do novo imperialismo emergente do recrudescimento da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Européia de um lado, e a Rússia e a emergente China, dos outros lados?Enquanto o mundo das artes, das culturas e das nações se debate entre tais perguntas, uma boa leitura sobre o tema é o livro “Eu fui Vermeer”, do escritor irlandês Frank Wynne, lançado no mercado brasileiro pela Cia. das Letras. Trata-se de (mais) uma biografia, bastante bem escrita, apesar do estilo romanceado, de Han van Meegeren, falsário holandês que, por motivos pessoais e estéticos, criou brilhantes (algumas, pelo menos) telas atribuídas a Johannes Vermeer e outros pintores do século XVII, e as vendeu como autênticas a diversos museus europeus. Preso depois da Guerra como colaborador dos nazistas, por vender “tesouros nacionais” da Holanda ao invasor nazista, Meegeren teve de se posicionar diante de uma questão dilemática: se confessasse a verdade, seria solto e salvo, mas perderia sua obra; se não confessasse, seria condenado à morte, mas salvaria “seu” patrimônio artístico da vergonha e da execração.A narrativa de Wynne lembra outra falsificação famosa, a empreendida por James McPherson, no século XVIII, que literalmente inventou poemas que ele mesmo atribuía a um poeta celta do século III, Ossian, da antiga Escócia. Quando sua fraude foi descoberta, no século XIX, seus poemas atribuídos a Ossian já tinham sido traduzidos no mundo inteiro, inspirado Goethe e Chateaubriand, entre outros, e se transformado numa das pedras fundamentais da construção do Romantismo e da então moderna prosa poética. “O Guarani” e “Iracema” de Alencar são netos desta necessária “fraude literária”. Sic transit gloria mundi.PS – Peço desculpas aos leitores e internautas da Carta Maior pela prolongada ausência. Estive imerso em dois processos complexos, o de obtenção definitiva do visto de residência na Alemanha e o de mudança de casa. Ambos me levaram a desapertar e apertar centenas de parafusos durante algumas semanas, além de mover cargas pesadas de um lado para o outro, seja no sentido físico, seja no espiritual, para constituir a nova moradia. Terminados os processos, volto à escrita dos artigos habituais. Enquanto isso o capitalismo passou de uma bonança aparente a uma crise (crise, ou renovação periódica?) anunciada no sistema financeiro norte-americano que ameaça uma tsunami em escala mundial; na Alemanha o Partido Social Democrata entrou numa crise interna que pode redesenhar o panorama europeu, e o CSU, partido de direita, perdeu neste domingo passado uma hegemonia de 40 anos na Baviera, hoje o estado mais populoso e rico do país. Trataremos disso em seguida, além de outros assuntos. Não desligue, fique na linha.
Fonte: Agência Carta Maior.
Nenhum comentário:
Postar um comentário