Uma história de resistência
Releia matéria da Fórum 117: a situação dos guarani kaiowá reflete não apenas a luta de um povo que busca seus direitos, mas a omissão do poder público que há tempos ignora os povos indígenas
Por Glauco Faria, Igor Carvalho e Fora do Eixo*
“Divulguei essa carta porque as pessoas do nosso tekoha têm passado muita necessidade, temos perdido lideranças. Não só aqui, mas em outros tekohas. Parei e pensei: acho que vou divulgar isso”. Ademir Riquelme Lopes, da comunidade de Pyelito Kue, foi o autor de um texto que chamou a atenção do país e levou o apelo de uma etnia brasileira a diversos cantos do mundo. O local onde vive, ou tekoha (terra sagrada), fica no município de Iguatemi (MS), e sua carta foi divulgada após a 1ª Vara Federal de Naviraí (MS) ter determinado que 170 indígenas saíssem dali.
A reação foi imediata. Abaixo-assinados em defesa dos indígenas começaram a circular na internet, o assunto se tornou pauta constante na mídia e, nas redes sociais, milhares de usuários adotaram o sobrenome “guarani kaiowá” como forma de apoiar a sua causa e de resgatar as raízes de um Brasil que o País teima em tentar esquecer. A pressão deu resultado e, no último dia 30 de outubro, a desembargadora Cecília Mello suspendeu a decisão liminar que determinava a expulsão, além de ter suspendido ainda a multa de R$ 500 ao dia fixada pela Justiça de Naviraí.
Talvez a repercussão da carta não tivesse tido a dimensão que alcançou se não fosse por um mal-entendido que levou muitos a acreditarem que o texto falava de um suicídio coletivo, algo negado pelo próprio autor, Ademir. “Ali está escrito que a gente só vai sair daqui se nos matarem, mas não que nós vamos nos matar. A gente vai enfrentar essa luta até o fim.” Mas a confusão tem sua razão de ser. Entre 2003 e 2010, de acordo com dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), houve 555 suicídios entre os guarani kaiowá, e a situação de falta de perspectiva, as ameaças constantes e o confinamento a que muitas vezes são obrigados a se submeter têm grande responsabilidade nesse índice absurdo, levando-se em conta uma população estimada de 43 mil pessoas desta etnia.
Mas os que ali estão não sofrem só com ameaças, já sentiram na pele a violência. Mudaram para aquele local porque, em 23 de agosto de 2011, em outra área do município de Iguatemi, sofreram um ataque, que teria sido ordenado por fazendeiros locais, e que resultou em diversos indígenas feridos, como Arturo Fernandes, de 78 anos. No dia 5 de setembro, os poucos que restaram sofreram com mais uma ação violenta, na qual foram queimados barracos onde moravam, e foram obrigados a se mudar para a área que é motivo de discórdia hoje.
O relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil – 2011”, divulgado pelo Cimi, revela que o Mato Grosso do Sul é o estado com o maior número de assassinatos de índios no Brasil. Foram 32 em 2011, número que representa 62,7% do total de ocorrências no país inteiro e, destes, 27 eram guarani kaiowá. “Com uma taxa de homicídios de cem por cem mil pessoas, maior que a do Iraque, e quatro vezes maior do que a taxa nacional, o povo guarani kaiowá, do Mato Grosso do Sul, enfrenta uma verdadeira guerra contra o agronegócio”, aponta a antropóloga Lucia Helena Rangel no relatório.
O agronegócio, citado por Rangel, tem sido um dos principais motores do estado. O crescimento da produção agrícola e pecuária do Estado pode ser utilizado como um dos indicadores para mensurar a importância do agronegócio para a economia sul-mato-grossense. Conforme o Balanço Anual do Agronegócio Sul-Mato-Grossense (Infoagro), a produção de soja, em um período de 35 anos, cresceu 880%, passando de 472 mil toneladas na safra 1977/1978 para 4,628 milhões de toneladas em 2011/2012. O rebanho bovino teve um índice de crescimento ainda maior: em 1977, o Mato Grosso do Sul contava com 9,3 milhões de animais e, estima-se que esse número chegue a 22,3 milhões de cabeças.
“Faz tempo, percebemos que, de fato, o que está em jogo é um processo ideológico e uma disputa por modelo de sociedade”, aponta Flávio Vicente Machado, coordenador regional do Cimi. “Por um lado, há um modelo de sociedade de partilha e, do outro lado, uma sociedade de consumo individualista, alavancada pelo poder do capital e do agronegócio. Então, de fato, o diálogo é quase que inviável, porque são vários interesses em jogo, tentamos no passado enão levou a nada. Acho que o caminho é o Direito, pois os índios têm direitos, não só constitucionais como aqueles garantidos pelos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário”, atesta. “É importante ressaltar a autonomia desses povos, são comunidades altamente capacitadas e conhecedoras de seus direitos. Qualquer tentativa de tomar essas comunidades como ingênuas ou massa de manobra é uma tentativa de desqualificar essas lutas, como dizer que os indígenas não são capazes de realizá-las, e isso não é verdade. Quem trava a mais antiga luta por modelo de sociedade são os povos indígenas, há 512 anos.”
Anastacio Peralta, líder indígena guarani kaiowá, sintetiza o conflito entre esses dois pontos de vista. “Para ter uma vida alegre, saudável e feliz, é preciso pouca coisa, não precisa ter milhões de hectares de terra, milhões de hectares de cana, milhões de hectares de soja, milhões de cabeças de boi. Você vive feliz com pouca coisa, e a terra, o mundo e Deus também vão agradecer por isso”.
Rastro de sangue e o papel do poder público
“Estão derramando muito sangue do meu povo, guarani kaiowá, por causa do tekoha dele, fica por isso e nós não temos apoio de ninguém aqui no Mato Grosso do Sul. Eu choro por meu pessoal, já estou no meio da estrada, tenho 66 anos, e não vejo nenhum resultado.
Nós não queremos a terra do fazendeiro, queremos a nossa terra”, lamenta, em um depoimento emocionado, Alda Silva, que vive na reserva indígena de Dourados. Entre as pessoas que vivem ali, muitas têm histórias de perdas familiares e agressões sofridas por não-índios.
Eleito em 2009 vereador pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Otoniel Ricardo Guarani tornou-se o primeiro indígena parlamentar na região de Dourados. Porém, fala com mais orgulho de sua posição como membro do conselho do Aty Guasu, a grande assembleia do povo guarani kaiowá. Desde que assumiu o cargo, ele e sua família são alvo de constantes ameaças, algumas levadas adiante. Já teve o sobrinho sequestrado em uma invasão da sua aldeia por pistoleiros que queriam matá-lo e, meses depois, a casa de sua mãe foi incendiada. Apesar dos riscos, Otoniel não se intimidou e continuou atuante na defesa do povo guarani kaiowá. “Esses dias mesmo, me ligaram e falaram que dois paraguaios tinham sido contratados para me matar, que iam acabar comigo. Tenho medo, mas um líder não pode deixar parada sua obra. Ando muito triste, se não me levantar vejo que meu povo vai se encolher, é difícil juntar forças e continuar.” O líder indígena dá detalhes da cruel violência cotidiana praticada contra os índios. “Os produtores rurais e os fazendeiros se armam contra nós, dizendo que nós estamos invadindo e atrapalhando o progresso da economia. Todo mundo que se manifestar vai sofrer ameaça, esses dias jogaram um tambor de veneno em um rio aqui. As crianças entram no rio e bebem água, não pode fazer isso.”
Na região, o que parece ser uma política de assassinatos seletivos remonta a um conflito entre produtores rurais e indígenas que resultou na morte de Marcel de Souza, o Tupã-Y, liderança guarani executada em 1983. Machado atribui o assassinato dos líderes à ação de pistoleiros contratados por fazendeiros. “Em 2003, Marcos Verón foi assassinado; pouco tempo depois, foi Durvalino Rocha. Já em 2007, executaram o Ortiz Lopes; dois anos depois, em 2009, Genivaldo Verá e Rionildo Verá.” O corpo de Rionildo nunca foi encontrado, já o de Genivaldo apareceu boiando no rio, “com marcas de tortura e espancamento”, lembra Machado. “Ainda foram mortos o Teodoro Ricardo, em 2010, e o Nísio Gomes, em 2011.”
Boa parte desses crimes permanece impune e a atuação do poder público não sugere até agora uma atenção maior à situação dos guarani kaiowá, tanto na sua proteção e segurança como na garantia dos seus direitos. No final de outubro, a Agência Pública divulgou documentos obtidos pelo Wikileaks que relatavam um comunicado diplomático de março de 2009. O texto falava sobre uma visita do então cônsul estadunidense no Brasil, Thomas White, ao estado do Mato Grosso do Sul e descrevia suas conversas com o governador André Puccinelli (PMDB). O telegrama endereçado ao Departamento de Estado dos Estados Unidos pelo Consulado de São Paulo revelava que a possibilidade de os guarani kaiowá terem terras demarcadas era vista com desdém pelo líder político. “O governador Puccinelli zombou da ideia de que a terra, num estado como o Mato Grosso do Sul, cuja principal atividade econômica é a agricultura, poderia ser retirada das mãos dos produtores que cultivam a terra há décadas para devolvê-la aos grupos indígenas”, dizia. O presidente do Tribunal de Justiça do estado à época, Elpidio Helvecio Chaves Martins, também se queixou de “calúnias” sofridas pelas autoridades ativistas locais, acusadas de “tortura e racismo” por ativistas, quando elas estariam apenas “tentando cumprir a lei”.
As declarações dão uma pista sobre o que tem sido a ação do poder público em relação não só aos guarani kaiowá, mas aos indígenas em geral no Brasil. A Constituição de 1988 determinava, em seu artigo 67, que todas as demarcações de áreas indígenas por parte da União fossem feitas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Carta. Hoje, somente um terço das 1.046 terras indígenas foram demarcadas e o ritmo das demarcações tem caído, como atesta o Cimi no relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil – 2011”.
“É nítida a estratégia governamental que aponta para uma marcante retração do ritmo na condução de procedimentos administrativos que visam à demarcação de terras. Em 2011, Dilma Rousseff homologou apenas três terras indígenas. No mesmo período, o Ministério da Justiça declarou como tradicionais somente seis terras indígenas, enquanto apenas nove terras foram identificadas e delimitadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai)”, aponta no documento Cléber C. Buzatto, secretário-executivo da entidade. “A retração, porém, parece crescer a cada ano. Lula, por exemplo, ao homologar apenas 80 processos de demarcação de terras indígenas nos oito anos em que esteve na Presidência, perdeu para todos os seus antecessores do período pós-1988. O governo Dilma toca a mesma música. Uma sinalização importante é a informação, tornada pública em 2011, de que apresidentatrouxe para si o aval para a formação de Grupos Técnicos da Funai. Essa retração tende a potencializar ainda mais os conflitos fundiários entre indígenas e fazendeiros”. O ministro da Justiça José Eduardo Cardozo defendeu, em meados de novembro, que a Funai não deveria ser o único ente responsável por definir as demarcações e que seria melhor que outro grupo técnico analisasse os documentos que fundamentariam a demarcação. “O fato de a Funai defender os direitos dos índios faz com que os pareceres técnicos proferidos tenham a imparcialidade questionada”, declarou.
Mas o que é ruim pode piorar. A bancada ruralista no Congresso Nacional tenta aprovar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que transfere para o Legislativo a responsabilidade pela demarcação e homologação de terras indígenas, quilombolas e áreas de conservação ambiental, que hoje é do Poder Executivo. “Existe uma bancada forte que defende que nada seja feito, a do agronegócio. A ideia que está por trás é essa: sair do Executivo, que já não faz quase nada, e passar para o Legislativo, para aí sim não fazer absolutamente nada”, analisa a desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo e cofundadora da Associação Juízes para a Democracia (AJD) Kenarik Boujikian.
Mas foi uma decisão do Judiciário que trouxe ao conhecimento do grande público a situação dos guarani kaiowá. Não são somente decisões que, em geral, beneficiam aqueles que detêm o poder econômico, mas também a lentidão para que diversos processos sejam julgados. “Há áreas no MS que já foram homologadas, isto é, já passaram pela última etapa do processo de demarcação das terras indígenas, mas, por decisão do STF, essas terras estão impedidas de serem ocupadas pelos indígenas. Por exemplo, Nhanderu Marangatu foi homologada em 2005, pelo presidente Lula; são pouco mais de nove mil hectares, mas os índios hoje vivem em 120 hectares”, conta Flávio Machado. O tekoha de Arroio Koral, localizado no município de Paranhos, teve sua demarcação homologada também no governo Lula, em 2009, mas a eficácia do decreto presidencial foi suspensa pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes.
Entre os guarani kaiowá e os indígenas em geral, há poucas perspectivas positivas em relação ao Estado. “O Brasil tem uma dívida muito grande por não atender os nossos direitos, que foram aprovados na Constituição Federal de 1988. Muitas lideranças já tombaram ao lutar por eles. No Brasil, quem luta por direitos morre”, analisa, de forma pessimista, Anastacio Peralta. “A Justiça nossa é a da cana, do boi e da soja, mas para o indígena que precisa da terra, não tem justiça.”
O valor da terra
Uma das principais dificuldades de se entender a questão indígena é ignorar o que significa a terra para um índio. Se há algo que é comum àqueles que vivem nas Américas, seja na Bolívia, no Peru, no Brasil ou em outro país vizinho, é a relação que se estabelece entre o local em que vivem – e onde viveram seus antepassados – com sua própria cultura, sua história, o seu modo de vida. Algo absolutamente distinto do que em geral pensa o homem branco, que em geral se resume apenas à noção de propriedade ou a uma forma de acumular capital.
“O índio e terra são uma coisa só. Não há índio se não houver terra. As expressões indígenas não são manifestações festivas superficiais, são a mais profunda forma de permanecer em seu espaço sagrado, o tekoha guasu, onde a ancestralidade se consolida em suas mínimas ações, ganhando uma dimensão mítica e simbólica, para nós, que assistimos de fora, mas é sistêmica, visceral, integrante do modo de vida de cada um dos índios”, explica a historiadora Rita Alves, membro fundadora do Instituto Orlando Villas Boas. Ela lembra uma frase do sertanista que dá nome à entidade para ilustrar a relação do indígena com a terra. “’Na tribo, o velho é o dono da história, o adulto é o dono da aldeia e a criança é a dona do mundo’. E o mundo para o índio é o seu território preservado e suficiente para as suas expressões. Índio não acumula, não precisa de excedente.”
“Os guarani kaiowá confrontam, no bom sentido, o país, por causa da disputa de terra. Nós somos diferentes dos não-índios. A terra pertence para o branco, nós pertencemos àquela terra. Quando voltamos à nossa terra, mesmo à custa de bala, de sangue, é porque pertencemos àquele local, àquela região, porque fazemos parte daquela terra”, explica Anastacio Peralta. “Não temos terra pra negócio, mas pra continuidade de vida, pra ser feliz, e ela é comparada à nossa mãe. Nem a mãe pode abandonar o filho e nem o filho pode abandonar a mãe.”
Justamente por conta desse fato de terem um outro tipo de relação com a terra e de tirarem dela, além do sustento, todas as condições para o que denominam ser o “bem viver”, as restrições impostas por fazendeiros e seus jagunços à sua mobilidade dentro das terras torna-se ainda mais perversa. “Na semana passada tinha uma criança doente, com muita febre, e fomos em busca de remédios do outro lado [do rio], e fomos atacados por eles [“seguranças” dos fazendeiros]. Mesmo assim, voltamos com nossos guerreiros, pegamos a planta e trouxemos, mesmo correndo risco de vida”, conta Ademir Lopes.
Por conta dessa visão diferenciada do valor que tem a terra, os indígenas também têm o que ensinar aos doutos não-índios sobre a preservação do meio ambiente. “A diferença é que o povo branco, os fazendeiros, desmatam a terra, acabam com as plantas medicinais, e fazem plantação de eucalipto, que pra nós não presta, não serve pra nada. A gente cuida da terra, planta, e, se for preciso, os rezadores oram pra que as plantas nasçam melhor”, diz Lopes.
Otoniel também cita outro exemplo da ação predatória do homem. “Quando foram demarcar as terras para nos dar, fomos visitá-las e estava tudo acabado, igual a uma roupa velha que alguém doa. Não tinha mais condição nenhuma para o plantio, o solo estava destruído. A terra para nós é sagrada”, explica. “Hoje, precisamos de dez mil hectares para ter condição de acomodar nosso povo, vamos aumentar as famílias, o povo guarani kaiowá vai crescer. A gente está refletindo e buscando fortalecer o solo e a pureza dos rios daqui, queremos preservar essa natureza que os fazendeiros estão massacrando. Para nós, não tem lucro na sagrada terra, é só sobrevivência. Queremos autonomia sobre nossa sobrevivência.”
“A monocultura vem pisando em cima de tudo, da vida que tinha, que era mato, peixe, e nós, indígenas, seres humanos que estávamos aqui, estamos sofrendo muito”, lamenta Peralta. “Nós temos nossa cultura, nossa ciência, nossa história, nossa língua e temos nossas tecnologias que podem ajudar a continuidade do planeta, sem explorar, sem estragar, e por isso estamos estudando também para que nosso conhecimento seja levado em conta como ciência acadêmica. Não temos experiência de 500 anos, temos experiência de milhares de anos que todo mundo viveu bem, com o ‘bem viver’, a felicidade, a alegria, e a Terra também está precisando disso. Não estão morrendo só os guarani kaiowá, nosso planeta está morrendo, o que não mata com bala, mata com veneno.” F
Um histórico de violações
Para além dos conflitos que ocorrem hoje pelo direito à terra, os indígenas no Brasil sofrem com um longo histórico de violação de direitos, que pode ser contado desde o chamado “descobrimento” do País. Em sua dissertação de mestrado “A proteção constitucional das terras indígenas brasileiras no período republicano: evolução e estagnação”, o pesquisador da Faculdade de Direito da USP, Rodrigo Meirelles Marchini, aponta falhas seculares na relação do Estado com os mais antigos habitantes daqui.
“Ações protetivas em relação ao índio, que ao mesmo tempo buscam integrá-los a um modo de vida diverso do seu, situam-se num campo mais nebuloso e polêmico, que é bastante ilustrativo da história do tratamento jurídico do índio no período republicano brasileiro”, ressalta no estudo. “O destino das terras de aldeias abandonadas mostra como era frágil a proteção das terras indígenas nos tempos coloniais e imperiais, pois as aldeias abandonadas poderiam ser legitimamente adquiridas por sesmeiros ou, posteriormente, posseiros, o que muitas vezes incentivava o ataque aos aldeamentos.”
Marchini ressalta que a combinação desses três fatores, domínio da União, usufruto e abandono das aldeias, passa a afetar o futuro das ações orientadas na área mais tarde. “Trata-se de um método de ocupação das terras indígenas e integração dos índios. Esse método foi aplicado pelo SPI [Serviço de Proteção ao Índio] e depois pela Funai. A União, tendo o domínio das terras indígenas, pode escolher onde quer que uma aldeia se fixe. Concedendo a essa aldeia apenas o usufruto, mantém a região conservada até que os índios sejam assimilados aos modos de vida dos não-índios. Quando forem assimilados, a aldeia será abandonada, ficando essa terra disponível para ocupações dos não-índios. Esse elaborado sistema atinge o ápice no Estatuto do índio, na época da ditadura militar, quando o governo decide fazer uma série de obras em terras indígenas, principalmente estradas para integrar o país.”
O Mato Grosso do Sul, durante a década de 1940, recebeu uma grande leva de migrantes em razão da Marcha para o Oeste, promovida por Getúlio Vargas, o que envolvia as companhias de colonização que se estabeleceram nas regiões central e sul do estado. “Foi um processo intenso ao longo dos anos 1930, 1940 e 1950, quando famílias de diversos cantos do país foram incentivadas pelo governo a ir para a região e ocupar terras. Na época, o governo criou colônias agrícolas e promoveu o deslocamento da população indígena para as chamadas ‘reservas’, que foram criadas entre 1910 e 1924”, contextualiza Flávio Machado, coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que destacou essa época como o momento em que os índios da região começam a resistir, intensificando os conflitos, com “registros de muitas mortes.”
Com o Milagre Econômico e o boom na construção civil, várias obras viárias foram elaboradas durante a ditadura militar, o que acelerou o processo de expulsão de comunidades indígenas de suas terras. Na década de 1970, uma nova leva de pessoas chegou ao estado à procura de terras nas quais pudessem produzir cereais. Para a historiadora Rita Alves, “a extinção dos índios já acontece desde os descobrimentos predatórios, pois eles tiveram sempre um caráter comercial, justificados como catequização para o salvamento das almas, como se fosse uma atitude benevolente do homem ‘civilizado’ para com as almas perdidas.”
As consequências de 500 anos de violação dos direitos indígenas podem ser vistas nas cercas que divisam as fazendas sul-matogrossenses. “Hoje, quando há um processo de identificação de áreas como Marangatu, você tem um problema, porque são nove mil hectares, mas nessa área estão estabelecidas fazendas, algumas com mais de 50 anos”, explica Machado. Hoje, são 43 mil guarani kaiowá vivendo no MS, sendo que 14 mil estão na região de Dourados, distribuídos em acampamentos, e 33 desses são em beira de estradas.
De acordo com Marchini, algo fundamental seria a observância das Convenções 107 e 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os povos indígenas, ratificadas pelo Brasil. “Todos esses documentos internacionais falam sobre a necessidade dos Estados reconhecerem aos índios a propriedade das terras que os indígenas ocupam. O reconhecimento da propriedade coletiva representaria o fim de uma posição paternalista do Estado, admitindo a capacidade dos índios de administrarem seus bens, além de colocar fim a um sistema que no início visava a deslocar os índios de suas ocupações originais.”
Uma resposta a Pondé
Além da terra, a preservação cultural se tornou relevante no debate sobre a causa guarani kaiowá. Sob o título de “Guarani Kaiowá de Boutique”, o filósofo Luiz Felipe Pondé apresentou um texto de análises simplistas no jornal Folha de S.Paulo, que chocou os defensores dos direitos indígenas. “Essas pessoas que andam colocando nomes de tribos indígenas no seu ‘sobrenome’ no Face acham que índios são lindos e vítimas sociais”, escreveu. Em outro trecho, Pondé continua em seu ataque: “Não acho que devemos nada a eles. A humanidade sempre operou por contágio, contaminação e assimilação entre as culturas. Apenas hoje em dia equivocados de todos os tipos afirmam o contrário como modo de afetação ética. Desejo que eles arrumem trabalho, paguem impostos como nós e deixem de ser dependentes do Estado. Sou contra parques temáticos culturais (reservas) que incentivam dependência estatal e vícios típicos de quem só tem direitos e nenhum dever. Adultos condenados à infância moral seguramente viram pessoas de mau-caráter com o tempo.”
O texto mereceu uma resposta que também circulou bastante nas redes sociais, escrita por Rita Alves. “Seu artigo é uma catástrofe. Muito me espanta um homem com sua relevância midiática fazer uso de um precioso espaço para tantos absurdos num único artigo.” A historiadora acusa Pondé de ser desinformado ou “mal formado”. Alguns dias após a publicação do texto, Rita ainda demonstrava consternação pelo que leu. “O texto do Pondé representa algo muito maior, representa o pensamento do seu tempo, o capitalismo em seu estágio camuflado de democracia, em que tudo é altamente ‘perecível’, para que possa ser substituído rapidamente e movimente a máquina do mercado consumidor. E sendo tudo tão fugaz, por que motivo valorizar a memória?”, pergunta Rita, que analisa o texto do filósofo como “superficial” e lembra que pode ser “mais danoso desmoralizar com ironias e chacotas do que com argumentos fundamentados na história e na antropologia, pois estimula uma banalização das opiniões.”
Otoniel se sente incomodado quando lhe falam sobre adaptação da cultura indígena. “Olha, a interculturalidade não é nossa cultura, a gente sempre foi uma cultura tradicional, desde o nascer da criança até a morte, nós respeitamos nossa cultura e tradição. Há 500 anos nos pediam para que nos adaptássemos e hoje continuam pedindo que nos adaptemos, não queremos essa interculturalidade”. Para o parlamentar e líder dos guarani kaiowá, existem muitos problemas que o contato com os não-índios traz. “Com fome ninguém vive. Sobre a economia: tem pais que precisam ficar fora trabalhando até quinze dias, e a família fica esperando, a gente tem que buscar recursos fora, quando nosso sustento tem que estar na terra. Na tentativa de sobreviver, muita gente começa a comercializar dentro da aldeia, aí vêm bebidas e drogas, por exemplo, temos isso entre os índios, hoje, é uma consequência”, disse o petista, que tem como bandeira, ainda, a instituição de escolas indígenas. “Quando uma criança vai para a escola, tem que ser a escola de vocês, tem que aprender a língua de vocês. Por que não tem escola nossa, com nossa língua e costumes?”, questiona.
Contudo, o contato entre a cultura indígena e a dos “homens brancos” é uma realidade. O que não significa que os indígenas não possam, mesmo assim, preservar a sua própria cultura. Elton Rivas, doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, desenvolveu um trabalho com a Ação de Jovens Indígenas (AJI) que envolvia os jovens da etnia terena e guarani nhandeva, na reserva de Dourados. Por meio de oficinas de vídeo e fotografia, eles puderam entrar em contato com ferramentas de comunicação e de produção audiovisual, encontrando uma nova forma de expressar seu olhar sobre a realidade em que vivem. Entre as atividades desenvolvidas, eles produzem um jornal impresso de circulação bimestral, além de manter um blogue e um fotolog da organização
“A ideia era envolver esses jovens e trabalhar a relação entre cidade e aldeia. Na aldeia, a construção da figura social do jovem não existe, e muitas vezes eles são encarados como problema, pois trazem comportamentos novos e nem sempre têm voz. Na cidade, eles não se identificam com o jovem urbano, em geral o português é a segunda língua e a escolarização é deficitária”, explica. “As ferramentas de comunicação auxiliam o entendimento desse processo multicultural e eles passam a ressignificar a própria cultura. Se não existe essa ressignificação, esses povos tendem a se desestruturar. Os povos que permaneceram souberam mudar para continuarem os mesmos, já que, uma vez em contato com outra sociedade, não existe mais volta, a cultura é dinâmica”, acredita.
Rivas critica ainda o que entende ser uma falsa dicotomia, na qual ou o indígena corresponde exatamente ao estereótipo que a sociedade cria a respeito dele ou ele “deixa de ser índio”. “Temos uma expectativa de como os povos indígenas devem se comportar, que é um olhar colonizador”, aponta.
*Parte das entrevistas dessa matéria é fruto do trabalho dos midialivristas Thiago Dezan e Rafael Vilela, da Casa Fora do Eixo São Paulo, que registraram em áudio, fotos e vídeos a passagem pelas aldeias do Mato Grosso do Sul.
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