O último herói da Legalidade
O país perdeu, na Semana Santa, Mauro Borges Teixeira, um dos últimos heróis da resistência democrática e comandante, ao lado de Leonel Brizola, da chamada “Cadeia da Legalidade”, movimento radiofônico que defendeu a posse do vice João Goulart com a renúncia do presidente Jânio Quadros em 1961. Particularmente, eu perdi o primeiro personagem político da minha vida, cuja deposição do governo de Goiás, aos 26 dias do mês de novembro de 1964, acompanhei freneticamente, aos 10 anos de idade, imitando os repórteres de rádio.
A reportagem é de Jorge Bastos Moreno, publicado no jornal O Globo, 06-04-2013.
Quem chefiava a minha “redação” era meu pai, motorista de táxi, cujo ponto de trabalho, na Praça Alencastro, em Cuiabá, ficava ao lado da única banca de jornal do centro da cidade. Quando voltava para casa, no fim do dia, meu pai trazia os jornais do dia anterior, que o dono da banca lhe emprestava para serem devolvidos no dia seguinte às distribuidoras. Como a minha memória sempre foi mais auditiva que visual, meu pai lia para mim as notícias mais importantes, e eu saía relatando para os vizinhos.
Eu não peguei Mauro Borges durante a chamada “Cadeia da Legalidade”, quando, a exemplo do que fizera Brizola com a Rádio Guaíba de Porto Alegre, trouxe os estúdios da Rádio Brasil Central de Goiânia para dentro do Palácio das Esmeraldas. Mauro Borges só entrou na minha vida quando começou a ser perseguido pelo golpe militar, através das instaurações de inquéritos policiais militares, os famosos IPMs, nos quais era acusado de “corrupto e subversivo”. Foi aí que entrou no meu cenário o segundo personagem da política, Pedro Ludovico Teixeira, pai de Mauro, fundador de Goiânia. E Ludovico entrou na minha “redação de jornalismo” de forma apoteótica, pela voz de meu pai lendo para mim, em tom grave, a declaração que mais tarde eu passaria aos meus vizinhos e guardo na lembrança até hoje:
“Acusam meu filho de corrupto e subversivo. Desde cedo, ainda quase menino, entreguei-o às Forças Armadas do meu país. Se meu filho é hoje apontado por essas mesmas Forças Armadas como corrupto e subversivo, então quem o fez assim foi o próprio Exército brasileiro.”
Travou-se aí um grande debate no Supremo Tribunal Federal, com o primeiro pedido de habeas corpus preventivo da história do Judiciário, impetrado pelo advogado Sobral Pinto, a favor de Mauro Borges, para que o mesmo, na condição de governador, fosse investigado e julgado pela Assembleia Legislativa de Goiás e não pelo Superior Tribunal Militar. O STF concedeu o habeas corpus por unanimidade.
Essa decisão irritou ainda mais os militares. E Mauro Borges acabou sendo deposto, e em seu lugar assumiu, como interventor, o ex-comandante do 16º Batalhão de Caçadores de Cuiabá, o então coronel Carlos de Meira Mattos, mais tarde subchefe do Gabinete Militar do presidente Castelo Branco.
A minha cabeça de “repórter mirim” não conseguia entender tudo aquilo que estava acontecendo e que eu repassava aos meus “ouvintes”. Primeiro, Mauro Borges, na Cadeia da Legalidade, defendia a posse de Jango, colocando em risco toda a população de Goiânia, ameaçada por rasantes de caças das bases aéreas de Anápolis e Brasília. Com a posse de Jango, ele rompe a aliança PSD-PTB e passa a fazer oposição ao governo que por pouco não defendera com armas. Depois, começa a flertar com os golpistas, participando de uma reunião no Rio de governadores com o futuro presidente Castelo Branco, de quem se tornara amigo ainda quando servia o Exército. Mais tarde, é deposto pelo mesmo Castelo Branco.
Demorei mais dez anos para entender tudo, quando passei a ser repórter de verdade e fui conviver com minhas fontes e meus professores Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, colegas de Mauro Borges no PSD e, depois, no PMDB.
Ulysses me desatou o primeiro nó: Mauro Borges, realmente, armazenou armas para defender a posse de Jango, mas dele se afastou porque o governo federal não deu à Metago, companhia de siderurgia estatal criada pelo governador, o direito de explorar níquel em Goiás, preferindo prorrogar o contrato de exploração da Votorantim, do então senador José Ermírio de Moraes (PTB-PE).
Tancredo Neves, líder do governo Jango no Congresso e amigo pessoal de Castelo Branco, decifrou-me o mistério mais complicado: como Castelo, de amigo e aliado, passou a ser algoz de Mauro Borges. É que o governador de Goiás participou da célebre reunião no Rio com seus colegas Carlos Lacerda (RJ), Magalhães Pinto (MG), Adhemar de Barros (SP) e Ney Braga (PR) para tratar do apoio dos políticos à candidatura de Castelo Branco à Presidência da República, que estava sendo articulada por Golbery do Couto e Silva. Pela segunda vez, Mauro Borges estava contra os militares da linha dura, chefiados pelo então general Artur da Costa e Silva, que queria assumir no lugar de Castelo. Costa e Silva impôs a Castelo a deposição de Mauro Borges da mesma forma como impôs também, depois, a cassação de Juscelino Kubitschek. O curioso é que, na guerra PSD x UDN, Lacerda foi a Goiânia insuflar a deposição de Borges.
Como se vê, com Mauro Borges foi-se um importante pedaço da História deste país, além de um político corajoso que montou um campo de guerra no Palácio das Esmeraldas para defender a legalidade democrática. No seu velório, outra frase que meu pai me repetia me veio à memória, a da dona Gercina, mãe de Mauro, diante da ameaça da ditadura de prender seu filho:
"Prefiro acender uma vela no túmulo do meu filho no cemitério do que levar um prato de comida para ele na cadeia".
fonte: IHU
A reportagem é de Jorge Bastos Moreno, publicado no jornal O Globo, 06-04-2013.
Quem chefiava a minha “redação” era meu pai, motorista de táxi, cujo ponto de trabalho, na Praça Alencastro, em Cuiabá, ficava ao lado da única banca de jornal do centro da cidade. Quando voltava para casa, no fim do dia, meu pai trazia os jornais do dia anterior, que o dono da banca lhe emprestava para serem devolvidos no dia seguinte às distribuidoras. Como a minha memória sempre foi mais auditiva que visual, meu pai lia para mim as notícias mais importantes, e eu saía relatando para os vizinhos.
Eu não peguei Mauro Borges durante a chamada “Cadeia da Legalidade”, quando, a exemplo do que fizera Brizola com a Rádio Guaíba de Porto Alegre, trouxe os estúdios da Rádio Brasil Central de Goiânia para dentro do Palácio das Esmeraldas. Mauro Borges só entrou na minha vida quando começou a ser perseguido pelo golpe militar, através das instaurações de inquéritos policiais militares, os famosos IPMs, nos quais era acusado de “corrupto e subversivo”. Foi aí que entrou no meu cenário o segundo personagem da política, Pedro Ludovico Teixeira, pai de Mauro, fundador de Goiânia. E Ludovico entrou na minha “redação de jornalismo” de forma apoteótica, pela voz de meu pai lendo para mim, em tom grave, a declaração que mais tarde eu passaria aos meus vizinhos e guardo na lembrança até hoje:
“Acusam meu filho de corrupto e subversivo. Desde cedo, ainda quase menino, entreguei-o às Forças Armadas do meu país. Se meu filho é hoje apontado por essas mesmas Forças Armadas como corrupto e subversivo, então quem o fez assim foi o próprio Exército brasileiro.”
Travou-se aí um grande debate no Supremo Tribunal Federal, com o primeiro pedido de habeas corpus preventivo da história do Judiciário, impetrado pelo advogado Sobral Pinto, a favor de Mauro Borges, para que o mesmo, na condição de governador, fosse investigado e julgado pela Assembleia Legislativa de Goiás e não pelo Superior Tribunal Militar. O STF concedeu o habeas corpus por unanimidade.
Essa decisão irritou ainda mais os militares. E Mauro Borges acabou sendo deposto, e em seu lugar assumiu, como interventor, o ex-comandante do 16º Batalhão de Caçadores de Cuiabá, o então coronel Carlos de Meira Mattos, mais tarde subchefe do Gabinete Militar do presidente Castelo Branco.
A minha cabeça de “repórter mirim” não conseguia entender tudo aquilo que estava acontecendo e que eu repassava aos meus “ouvintes”. Primeiro, Mauro Borges, na Cadeia da Legalidade, defendia a posse de Jango, colocando em risco toda a população de Goiânia, ameaçada por rasantes de caças das bases aéreas de Anápolis e Brasília. Com a posse de Jango, ele rompe a aliança PSD-PTB e passa a fazer oposição ao governo que por pouco não defendera com armas. Depois, começa a flertar com os golpistas, participando de uma reunião no Rio de governadores com o futuro presidente Castelo Branco, de quem se tornara amigo ainda quando servia o Exército. Mais tarde, é deposto pelo mesmo Castelo Branco.
Demorei mais dez anos para entender tudo, quando passei a ser repórter de verdade e fui conviver com minhas fontes e meus professores Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, colegas de Mauro Borges no PSD e, depois, no PMDB.
Ulysses me desatou o primeiro nó: Mauro Borges, realmente, armazenou armas para defender a posse de Jango, mas dele se afastou porque o governo federal não deu à Metago, companhia de siderurgia estatal criada pelo governador, o direito de explorar níquel em Goiás, preferindo prorrogar o contrato de exploração da Votorantim, do então senador José Ermírio de Moraes (PTB-PE).
Tancredo Neves, líder do governo Jango no Congresso e amigo pessoal de Castelo Branco, decifrou-me o mistério mais complicado: como Castelo, de amigo e aliado, passou a ser algoz de Mauro Borges. É que o governador de Goiás participou da célebre reunião no Rio com seus colegas Carlos Lacerda (RJ), Magalhães Pinto (MG), Adhemar de Barros (SP) e Ney Braga (PR) para tratar do apoio dos políticos à candidatura de Castelo Branco à Presidência da República, que estava sendo articulada por Golbery do Couto e Silva. Pela segunda vez, Mauro Borges estava contra os militares da linha dura, chefiados pelo então general Artur da Costa e Silva, que queria assumir no lugar de Castelo. Costa e Silva impôs a Castelo a deposição de Mauro Borges da mesma forma como impôs também, depois, a cassação de Juscelino Kubitschek. O curioso é que, na guerra PSD x UDN, Lacerda foi a Goiânia insuflar a deposição de Borges.
Como se vê, com Mauro Borges foi-se um importante pedaço da História deste país, além de um político corajoso que montou um campo de guerra no Palácio das Esmeraldas para defender a legalidade democrática. No seu velório, outra frase que meu pai me repetia me veio à memória, a da dona Gercina, mãe de Mauro, diante da ameaça da ditadura de prender seu filho:
"Prefiro acender uma vela no túmulo do meu filho no cemitério do que levar um prato de comida para ele na cadeia".
fonte: IHU
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