30.06.2014
[ Argentina ]
[ENTREVISTA] Argentina em recessão: dos Fundos Abutres à superação da esquerda limitada
Andrés Figueroa Cornejo
Adital
"Quando a hipocrisia começa a ser de muito má qualidade,
é hora de começar a dizer a verdade.”
Bertolt Brecht
No bar "El Libertador de Corrientes y Dorrego” está o escritório de um dos mais procurados, consultados e autorizados economistas de esquerda da Argentina, Eduardo Lucita. De seu escritório me disse enquanto apertamos as mãos e seu café vazio acusa minha não pontualidade em meio a uma luz agradável que reflete na mesinha sem toalha.
É inevitável lhe perguntar o que são os Fundos Buitre (FB).
Os Fundos Buitre são investidores e fundos especulativos em grande escala que compram bônus a muito baixo preço e logo entabulam demandas contra Estados soberanos para cobrar 100% deles. No caso concreto da Argentina, se trata do Grupo MN Elliot, que fez essa mesma operação há anos contra o Peru, triunfou e cobrou por muito bom preço bônus que tinha comprado a um preço de graça.
A Argentina emitiu os bônus em 2001. Uma parte deles conta com cessão de soberania jurídica no distrito de Nova York, que é o que está em discussão hoje. Na prática, os FB compraram bônus argentinos emitidos ao preço de um dólar em 0,4 centavos de dólar e, atualmente, reclamam o pagamento de um dólar. Houve uma decisão em primeira instância desfavorável para a Argentina contra a qual o governo apelou. Depois uma decisão em segunda instância, que também foi perdida, e depois se apelou à Corte Suprema de Justiça dos EUA, que convalidou as decisões anteriores do juiz federal de Nova York, Thomas Griesa.
À Argentina estão reclamando agora o montante de 1,5 bilhão de dólares, quando a dívida original há 10 ou 12 anos era de 400 milhões de dólares.
O Estado argentino realizou uma grande reestruturação da dívida com os FB, que chegou a 92-93% do total. 7% dos bônus não ingressou nessa reestruturação. Aí está o fundo Elliot, que corresponde a cerca de um ponto de 7%. Si se paga esse 1%, o resto de 7% pode reclamar seu pagamento também. Nem toda essa percentagem tem sua sede legislativa em Nova York, por tanto há um debate sobre o eventual montante da dívida a cancelar. Poderá estar entre 8 bilhões a 15 bilhões de dólares, enquanto as reservas do Estado alcançam ao redor de 29 bilhões.
As condições da quebra
Aparentemente, resulta contraditório que o governo, tendo cumprido com a negociação da dívida do Clube de Paris, o oneroso pagamento à Repsol e o tipo de negócio realizado com a Chevron, ou seja, tendo cumprido com os requisitos do imperialismo, hoje seja castigado através dos FB.
Há mais de um ano que o giro aberto rumo aos mercados da administração K tem por objetivo a aquisição de mais crédito como demonstra o caso Repsol; o contrato secreto com a Chevron em condições que não nenhuma outra empresa tem; o arranjo com o Clube de Paris de uma dívida de 9,7 bilhões, quando a dívida consolidada um ano antes era de pouco mais de 6 bilhões (por que apareceram 3,7 bilhões a mais? Ninguém sabe, é outro segredo). Isto é, o governo realizou uma série de concessões para voltar aos mercados internacionais, o que significou a tomada de mais dívida. Hoje, o julgamento dos FB coloca o governo em perigo de descumprir suas metas de tomar financiamento para reativar a economia e terminar 2015 com um crescimento de dois a três pontos.
Na semana passada, o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (INDEC) reconheceu que a Argentina se encontra em recessão.
Sim. Há dois trimestres consecutivos com queda do Produto Interno Bruto (PIB). A recessão é especialmente forte na indústria automotiva, que recebe o golpe da depressão da atividade econômica do Brasil. Mas não se trata apenas da indústria automotiva (pilar, referência e paradigma de toda a indústria argentina). Está caindo a metal-mecânica e o plástico. Ou seja, a recessão está se agravando. Pelo contrário, os bancos nunca estiveram melhor.
Por que se fala tão fortemente de um possível default do país?
Se o Estado argentino cancela a dívida nos 7% mencionados, 92-93% já reestruturados, devido a uma quitação em favor do país em sua negociação, goza de uma cláusula que permite cobrar 100% da dívida, apelando a um não tratamento discriminatório. Hoje, é 27 de junho. Existe um risco parecido com uma tormenta perfeita. À noite, o governo rolou um montante destinado aos bonificados reestruturados, do qual uma percentagem pode ser desembolsada aos FB pelo juiz Griesa. Isso habilitaria os mesmos bonificados reestruturados a reclamar seu pagamento total. E se a Argentina renega a decisão entra em default (cesse de pagamentos por insolvência). Por isso o governo hoje mesmo está tentando negociar o cancelamento, um movimento cujo resultado desconheço, claro. (Enquanto se edita esta entrevista, na sexta-feira, 27 de junho de 2014, segundo a imprensa, o juiz Griesa havia anulado o pagamento no tempo e forma do governo aos bonificados reestruturados, realizado só à noite.)
O que acontece se o default se concretiza?
Quebraria toda possibilidade imediata de conseguir créditos externos para financiar a crise. Isso aprofundaria a derrubada das empresas, aumentaria a desocupação e as formas de flexibilização trabalhista. No entanto, a taxa de ganhos do capital no mundo e na Argentina é uma das mais altas da história, apesar da desvalorização do salário e do aumento dea pobreza.
As causas principais da crise argentina
Há economistas de distintas escolas que se referem a uma sorte de ciclos críticos na Argentina…
Desde a metade do século passado que as crises recorrentes do país explodem pela falta de divisas e pela inflação provocada pelas lutas intercapitalistas. A Argentina tem uma economia muito concentrada. Há 500 empresas que explicam 50% do PIB e das 500 há 50 que, por sua vez, explicam a metade do PIB. E a imensa maioria dessas empresas (salvo exceções como a YPF) pertencem a capitais privados transnacionais. Aí está o miolo da crise.
Ou seja, a causa é a forma nacional que contém o capitalismo argentino…
De fato. o crescimento econômico dos últimos anos, descontando a queda de 2014, jamais rompeu com os limites estruturais do capitalismo. É a dependência própria do desenvolvimento capitalista na Argentina e nos Estados periféricos. Por exemplo, o processo de substituição de importações logo após a segunda guerra mundial foi um fenômeno acordado em grande parte da América Latina.
Argentina e a hegemonia do capital financeiro mundial
Observando a expressão nativa da crise mundial, como impacta a condução do momento financeiro do controle de comandos da reprodução capitalista?
Com a queda da taxa de ganhos no fim dos anos 60 do século passado, o aparecimento dos petrodólares, etc., se constituiu um excesso de capital financeiro, que não encontrava onde investir na economia real. Essa crise se subsumiu na década seguinte.
Alguns defendem que a atual crise provém dos anos 30 do século XX…
A meu ver tem mais a ver com a crise dos 70 e com a fórmula de sua saída, que implicou o redesenho produtivo capitaneado pela hegemonia do capital financeiro. Então, o capital financeiro relançou a crise nos anos 70 até 2007-2008. Nesse marco surgiram os sistemas financeiros derivados. Inclusive se diz que o capital financeiro que está dando voltas no mundo é 10 vezes superior ao PIB do planeta. Frente a semelhante massa de capital-dinheiro girando, o complexo financeiro mundial teve que adequar seu dispositivo jurídico a essa realidade do capitalismo e sua financeirização global.
E sob que formas?
A Comunidade Europeia, no início dos anos 70 e em 1976 nos EUA, juridicamente, estabeleceu como "recomendação” que cada vez que um país contratasse dívida ou emitisse bônus, ante qualquer litígio deveria incorporar um terceiro país. Isso se chama hoje cessão de soberania jurídica. Certamente que os países que cedem soberania jurídica são os dependentes, não os Estados imperialistas. Isso terminou de se consolidar com o Plano Brady para a América Latina, que consiste na titularização dos bônus, em que desaparecem os organismos internacionais e os bancos como os grandes emprestadores, e surgem pessoas de direito privado, milhares de indivíduos compradores de bônus. A partir daí, a cessão da soberania jurídica, de "recomendação” passou a ser uma imposição de fato.
A Queda
O governo encabeçado por Cristina Fernández no termina de reiterar as cifras de crescimento macroeconômico, comparando-as inclusive com as chinesas. O que está acontecendo?
Nos últimos anos, a Argentina cresceu, mas sem modificar as bases estruturais do tipo de capitalismo existente há muitas décadas. A indústria foi incapaz de obter as divisas para seu desenvolvimento, retornou o déficit fiscal primário (aquele que gera a economia sem contemplar o pagamento da dívida) e se incrementou a dívida interna. E, politicamente, se manifestou a incapacidade do Estado de arbitrar entre os distintos interesses capitalistas, ou seja, na disputa pela monopolização da apropriação privada do excedente econômico, disputa produtora de inflação.
Como você caracteriza a contingência política argentina?
Toda a direita tradicional está de acordo em pagar a dívida para retomar mais dívida. Isso é o que buscam as grandes instituições de crédito mundial. Agora, a atual administração paga, com o agravante de que o faz com as reservas fiscais. Salvo a minoria de esquerda, todo o espectro do sistema de partidos políticos é também "pagador em série”. Também é preciso assinalar que o presente governo jamais quis romper com o capitalismo nem com o imperialismo. A presidenta tem sido clara quando diz que sua administração é pró-capitalista. Basta dar conta, entre tantos exemplos possíveis, de seu acordo e promoção do extrativismo. O que se tentou foi canalizar e gerir institucionalmente a luta de classes, e guardar distancia das formas mais radicais do menemismo.
De todos os modos, o que ocorre no país tem provocado uma discussão interna no sistema financeiro internacional porque uma coisa são os Estados imperialistas e a indústria financeira, e outra coisa são os interesses dos credores, dos FB e dos bancos, que querem cobrar sem importar as consequências. Pelo demais, o juiz Thomas Griesa é um homem ligado ao Partido Republicano norte-americano, no qual o Tea Party (http://www.rebelion.org/noticia.php?id=154928) tem um peso extraordinário.
E o movimento popular que se adverte muito fragmentado?
O processo histórico do capitalismo concentra, centraliza e hegemoniza por cima, e divide e heterogeneiza por baixo. A heterogeneidade do movimento dos trabalhadores e do povo é muito grande, tal qual a tendência mundial. Ademais, tanto o governo como alguns setores populares têm concordado com a cooptação.
Pessoalmente, hoje, sou incapaz de ver una esquerda que seja vanguarda de algo. O que observo são territórios de povos em luta, que, e, qualquer de seus movimentos se torna, querendo ou não, anticapitalista.
Mas não acaba de se resolver porque não existe um eixo concentrador. Não tem surgido - apesar da multiplicidade de lutas sociais e de todas os agrupamentos políticos, sociais e culturais aparecidos desde a crise de 2001 (http://www.rebelion.org/noticia.php?id=141791) - um movimento que não escape da pura reivindicação econômica. Aqui não se grita "Trabalhadores ao poder”.
Uma zona da esquerda tradicional obteve um punhado de vagas legislativas nas últimas eleições…
Efetivamente, a Frente de Esquerda dos Trabalhadores (FIT, bloco trotskista) obteve muito bons resultados eleitorais, sobretudo e surpreendentemente no interior do país (Salta, Jujuy, Mendoza, Santa Cruz, etc.).”
Honradamente, o apreço em seu mérito, mas é uma faixa completamente insuficiente quando nos referimos ao importante: as formas de implicar-se no movimento real do povo e o fetiche parlamentarista, ou seja, na matéria estratégica e de sentido da vocação poder. Como você imagina a unidade política necessária e independente dos oprimidos/as?
Estamos frente a uma nova realidade que produz discussões que não existiam. Sobre a unidade eu advirto dois planos: um político eleitoral e outro das lutas concretas. Ante a conjuntura dos FB deveria existir uma Frente Ampla Antiimperialista, por exemplo. Agora bem, quanto ao âmbito político eleitoral, a FIT é una realidade e ao mesmo tempo uma limitação. É preciso ampliar essa frente, ainda que dentro da própria FIT há quem se oponha. Urge romper o sectarismo da FIT, tanto como o sectarismo dos não sectários. Em resumo: a multiplicidade de resistências populares como a próprio FIT terão que se autossuperar na formação de um novo continente político abrangente.
é hora de começar a dizer a verdade.”
Bertolt Brecht
No bar "El Libertador de Corrientes y Dorrego” está o escritório de um dos mais procurados, consultados e autorizados economistas de esquerda da Argentina, Eduardo Lucita. De seu escritório me disse enquanto apertamos as mãos e seu café vazio acusa minha não pontualidade em meio a uma luz agradável que reflete na mesinha sem toalha.
É inevitável lhe perguntar o que são os Fundos Buitre (FB).
Os Fundos Buitre são investidores e fundos especulativos em grande escala que compram bônus a muito baixo preço e logo entabulam demandas contra Estados soberanos para cobrar 100% deles. No caso concreto da Argentina, se trata do Grupo MN Elliot, que fez essa mesma operação há anos contra o Peru, triunfou e cobrou por muito bom preço bônus que tinha comprado a um preço de graça.
A Argentina emitiu os bônus em 2001. Uma parte deles conta com cessão de soberania jurídica no distrito de Nova York, que é o que está em discussão hoje. Na prática, os FB compraram bônus argentinos emitidos ao preço de um dólar em 0,4 centavos de dólar e, atualmente, reclamam o pagamento de um dólar. Houve uma decisão em primeira instância desfavorável para a Argentina contra a qual o governo apelou. Depois uma decisão em segunda instância, que também foi perdida, e depois se apelou à Corte Suprema de Justiça dos EUA, que convalidou as decisões anteriores do juiz federal de Nova York, Thomas Griesa.
À Argentina estão reclamando agora o montante de 1,5 bilhão de dólares, quando a dívida original há 10 ou 12 anos era de 400 milhões de dólares.
O Estado argentino realizou uma grande reestruturação da dívida com os FB, que chegou a 92-93% do total. 7% dos bônus não ingressou nessa reestruturação. Aí está o fundo Elliot, que corresponde a cerca de um ponto de 7%. Si se paga esse 1%, o resto de 7% pode reclamar seu pagamento também. Nem toda essa percentagem tem sua sede legislativa em Nova York, por tanto há um debate sobre o eventual montante da dívida a cancelar. Poderá estar entre 8 bilhões a 15 bilhões de dólares, enquanto as reservas do Estado alcançam ao redor de 29 bilhões.
As condições da quebra
Aparentemente, resulta contraditório que o governo, tendo cumprido com a negociação da dívida do Clube de Paris, o oneroso pagamento à Repsol e o tipo de negócio realizado com a Chevron, ou seja, tendo cumprido com os requisitos do imperialismo, hoje seja castigado através dos FB.
Há mais de um ano que o giro aberto rumo aos mercados da administração K tem por objetivo a aquisição de mais crédito como demonstra o caso Repsol; o contrato secreto com a Chevron em condições que não nenhuma outra empresa tem; o arranjo com o Clube de Paris de uma dívida de 9,7 bilhões, quando a dívida consolidada um ano antes era de pouco mais de 6 bilhões (por que apareceram 3,7 bilhões a mais? Ninguém sabe, é outro segredo). Isto é, o governo realizou uma série de concessões para voltar aos mercados internacionais, o que significou a tomada de mais dívida. Hoje, o julgamento dos FB coloca o governo em perigo de descumprir suas metas de tomar financiamento para reativar a economia e terminar 2015 com um crescimento de dois a três pontos.
Na semana passada, o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (INDEC) reconheceu que a Argentina se encontra em recessão.
Sim. Há dois trimestres consecutivos com queda do Produto Interno Bruto (PIB). A recessão é especialmente forte na indústria automotiva, que recebe o golpe da depressão da atividade econômica do Brasil. Mas não se trata apenas da indústria automotiva (pilar, referência e paradigma de toda a indústria argentina). Está caindo a metal-mecânica e o plástico. Ou seja, a recessão está se agravando. Pelo contrário, os bancos nunca estiveram melhor.
Por que se fala tão fortemente de um possível default do país?
Se o Estado argentino cancela a dívida nos 7% mencionados, 92-93% já reestruturados, devido a uma quitação em favor do país em sua negociação, goza de uma cláusula que permite cobrar 100% da dívida, apelando a um não tratamento discriminatório. Hoje, é 27 de junho. Existe um risco parecido com uma tormenta perfeita. À noite, o governo rolou um montante destinado aos bonificados reestruturados, do qual uma percentagem pode ser desembolsada aos FB pelo juiz Griesa. Isso habilitaria os mesmos bonificados reestruturados a reclamar seu pagamento total. E se a Argentina renega a decisão entra em default (cesse de pagamentos por insolvência). Por isso o governo hoje mesmo está tentando negociar o cancelamento, um movimento cujo resultado desconheço, claro. (Enquanto se edita esta entrevista, na sexta-feira, 27 de junho de 2014, segundo a imprensa, o juiz Griesa havia anulado o pagamento no tempo e forma do governo aos bonificados reestruturados, realizado só à noite.)
O que acontece se o default se concretiza?
Quebraria toda possibilidade imediata de conseguir créditos externos para financiar a crise. Isso aprofundaria a derrubada das empresas, aumentaria a desocupação e as formas de flexibilização trabalhista. No entanto, a taxa de ganhos do capital no mundo e na Argentina é uma das mais altas da história, apesar da desvalorização do salário e do aumento dea pobreza.
As causas principais da crise argentina
Há economistas de distintas escolas que se referem a uma sorte de ciclos críticos na Argentina…
Desde a metade do século passado que as crises recorrentes do país explodem pela falta de divisas e pela inflação provocada pelas lutas intercapitalistas. A Argentina tem uma economia muito concentrada. Há 500 empresas que explicam 50% do PIB e das 500 há 50 que, por sua vez, explicam a metade do PIB. E a imensa maioria dessas empresas (salvo exceções como a YPF) pertencem a capitais privados transnacionais. Aí está o miolo da crise.
Ou seja, a causa é a forma nacional que contém o capitalismo argentino…
De fato. o crescimento econômico dos últimos anos, descontando a queda de 2014, jamais rompeu com os limites estruturais do capitalismo. É a dependência própria do desenvolvimento capitalista na Argentina e nos Estados periféricos. Por exemplo, o processo de substituição de importações logo após a segunda guerra mundial foi um fenômeno acordado em grande parte da América Latina.
Argentina e a hegemonia do capital financeiro mundial
Observando a expressão nativa da crise mundial, como impacta a condução do momento financeiro do controle de comandos da reprodução capitalista?
Com a queda da taxa de ganhos no fim dos anos 60 do século passado, o aparecimento dos petrodólares, etc., se constituiu um excesso de capital financeiro, que não encontrava onde investir na economia real. Essa crise se subsumiu na década seguinte.
Alguns defendem que a atual crise provém dos anos 30 do século XX…
A meu ver tem mais a ver com a crise dos 70 e com a fórmula de sua saída, que implicou o redesenho produtivo capitaneado pela hegemonia do capital financeiro. Então, o capital financeiro relançou a crise nos anos 70 até 2007-2008. Nesse marco surgiram os sistemas financeiros derivados. Inclusive se diz que o capital financeiro que está dando voltas no mundo é 10 vezes superior ao PIB do planeta. Frente a semelhante massa de capital-dinheiro girando, o complexo financeiro mundial teve que adequar seu dispositivo jurídico a essa realidade do capitalismo e sua financeirização global.
E sob que formas?
A Comunidade Europeia, no início dos anos 70 e em 1976 nos EUA, juridicamente, estabeleceu como "recomendação” que cada vez que um país contratasse dívida ou emitisse bônus, ante qualquer litígio deveria incorporar um terceiro país. Isso se chama hoje cessão de soberania jurídica. Certamente que os países que cedem soberania jurídica são os dependentes, não os Estados imperialistas. Isso terminou de se consolidar com o Plano Brady para a América Latina, que consiste na titularização dos bônus, em que desaparecem os organismos internacionais e os bancos como os grandes emprestadores, e surgem pessoas de direito privado, milhares de indivíduos compradores de bônus. A partir daí, a cessão da soberania jurídica, de "recomendação” passou a ser uma imposição de fato.
A Queda
O governo encabeçado por Cristina Fernández no termina de reiterar as cifras de crescimento macroeconômico, comparando-as inclusive com as chinesas. O que está acontecendo?
Nos últimos anos, a Argentina cresceu, mas sem modificar as bases estruturais do tipo de capitalismo existente há muitas décadas. A indústria foi incapaz de obter as divisas para seu desenvolvimento, retornou o déficit fiscal primário (aquele que gera a economia sem contemplar o pagamento da dívida) e se incrementou a dívida interna. E, politicamente, se manifestou a incapacidade do Estado de arbitrar entre os distintos interesses capitalistas, ou seja, na disputa pela monopolização da apropriação privada do excedente econômico, disputa produtora de inflação.
Como você caracteriza a contingência política argentina?
Toda a direita tradicional está de acordo em pagar a dívida para retomar mais dívida. Isso é o que buscam as grandes instituições de crédito mundial. Agora, a atual administração paga, com o agravante de que o faz com as reservas fiscais. Salvo a minoria de esquerda, todo o espectro do sistema de partidos políticos é também "pagador em série”. Também é preciso assinalar que o presente governo jamais quis romper com o capitalismo nem com o imperialismo. A presidenta tem sido clara quando diz que sua administração é pró-capitalista. Basta dar conta, entre tantos exemplos possíveis, de seu acordo e promoção do extrativismo. O que se tentou foi canalizar e gerir institucionalmente a luta de classes, e guardar distancia das formas mais radicais do menemismo.
De todos os modos, o que ocorre no país tem provocado uma discussão interna no sistema financeiro internacional porque uma coisa são os Estados imperialistas e a indústria financeira, e outra coisa são os interesses dos credores, dos FB e dos bancos, que querem cobrar sem importar as consequências. Pelo demais, o juiz Thomas Griesa é um homem ligado ao Partido Republicano norte-americano, no qual o Tea Party (http://www.rebelion.org/noticia.php?id=154928) tem um peso extraordinário.
E o movimento popular que se adverte muito fragmentado?
O processo histórico do capitalismo concentra, centraliza e hegemoniza por cima, e divide e heterogeneiza por baixo. A heterogeneidade do movimento dos trabalhadores e do povo é muito grande, tal qual a tendência mundial. Ademais, tanto o governo como alguns setores populares têm concordado com a cooptação.
Pessoalmente, hoje, sou incapaz de ver una esquerda que seja vanguarda de algo. O que observo são territórios de povos em luta, que, e, qualquer de seus movimentos se torna, querendo ou não, anticapitalista.
Mas não acaba de se resolver porque não existe um eixo concentrador. Não tem surgido - apesar da multiplicidade de lutas sociais e de todas os agrupamentos políticos, sociais e culturais aparecidos desde a crise de 2001 (http://www.rebelion.org/noticia.php?id=141791) - um movimento que não escape da pura reivindicação econômica. Aqui não se grita "Trabalhadores ao poder”.
Uma zona da esquerda tradicional obteve um punhado de vagas legislativas nas últimas eleições…
Efetivamente, a Frente de Esquerda dos Trabalhadores (FIT, bloco trotskista) obteve muito bons resultados eleitorais, sobretudo e surpreendentemente no interior do país (Salta, Jujuy, Mendoza, Santa Cruz, etc.).”
Honradamente, o apreço em seu mérito, mas é uma faixa completamente insuficiente quando nos referimos ao importante: as formas de implicar-se no movimento real do povo e o fetiche parlamentarista, ou seja, na matéria estratégica e de sentido da vocação poder. Como você imagina a unidade política necessária e independente dos oprimidos/as?
Estamos frente a uma nova realidade que produz discussões que não existiam. Sobre a unidade eu advirto dois planos: um político eleitoral e outro das lutas concretas. Ante a conjuntura dos FB deveria existir uma Frente Ampla Antiimperialista, por exemplo. Agora bem, quanto ao âmbito político eleitoral, a FIT é una realidade e ao mesmo tempo uma limitação. É preciso ampliar essa frente, ainda que dentro da própria FIT há quem se oponha. Urge romper o sectarismo da FIT, tanto como o sectarismo dos não sectários. Em resumo: a multiplicidade de resistências populares como a próprio FIT terão que se autossuperar na formação de um novo continente político abrangente.
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