"Se se tiver em conta as
civilizações, como principais personagens da história, será preciso
forçosamente distinguir as guerras "internas" desta ou daquela
civilização, das guerras "exteriores" entre estes universos hostis. De
um lado, as Cruzadas e as Jihads, do outro, as guerras internas da
Cristandade ou do Islã, porque as civilizações queimam-se a si mesmas em
intermináveis guerras civis, fratricidas: o Protestante contra o
Romano, o Sunita contra o Xiita..."
F. Braudel, 1995 [1966], "O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo", Vol II, p: 206 Publicações Dom Quixote, Lisboa.
Escrevo estas linhas num Café de
Sarajevo. Seu nome, sua decoração, e sua elegância, lembram Viena, e o
período da dominação austro-húngara da Bósnia-Herzegovina, entre 1878 e
1918. O Café está situado a poucos metros da Ponte Latinska, sobre o rio
Miljaka, o lugar exato em que o estudante sérvio Gavrilo Princip, de 19
anos, matou o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono
austríaco, no dia 28 de julho de 1914, dando início - sem saber, nem
pretender - a uma guerra devastadora que destruiu quatro impérios, mudou
a geografia da Europa e redesenhou a história e geopolítica mundiais.
Ao mesmo tempo, na frente do Café Vienense, uma placa convida para
visitar um museu com filmes e fotografias sobre a última grande guerra
europeia do século XX, que também passou pela Bósnia e Sarajevo, entre
1992 e 1995, e pelo Kosovo, em 1998/9, incluindo o massacre de
Srebrenica, em julho de 1995. Durante esta última guerra, a cidade
Sarajevo sofreu o mais longo cerco da história militar moderna. Durante
três anos, Sarajevo sofreu um bombardeio sistemático que deixou um
"passivo" de 12 mil mortos e 50 mil feridos, sendo 85% civis. Uma
história terrível, que transformou o nome desta cidade, Sarajevo, em
sinônimo de guerra e destruição, através de todo o Século XX, e para
todas as gerações futuras.
No entanto, Sarajevo poderia ter sido
apenas uma cidade de montanha alegre e acolhedora, se a história não a
tivesse colocado numa encruzilhada por onde circularam e onde se
instalaram vários povos e etnias. Mais do que isto, onde se criou um
espaço de convivência e confronto quase permanente entre as duas
principais civilizações/religiões que contribuíram decisivamente para a
transformação do Mediterrâneo no berço do mundo moderno: o islamismo e o
cristianismo, com seus vários povos e divisões internas.
Tudo começou, de alguma forma, com a
Batalha de Poitiers, no ano de 732 D.C., quando o exército de Charles
Martel derrotou e deteve a expansão muçulmana, perto dos Pirineus,
estabelecendo uma espécie de primeira e definitiva fronteira entre o
mundo cristão europeu e o mundo islâmico arábico. A partir dali, e
durante os últimos 1300 anos, estes povos e estas duas
civilizações-religiões estabeleceram entre si uma relação indissolúvel,
de guerra e complementariedade, de admiração e ódio. Foi esta relação
que funcionou como a grande fonte energética que moveu o poder dos
homens e de sua capacidade produtiva na direção do mundo moderno, do
sistema interestatal e do capitalismo que começou pelo Mediterrâneo e
acabou sendo liderado pelos europeus.
Nesta longa trajetória, os europeus
foram periferia econômica e politica dos impérios muçulmanos, até o
século XVI, mas o mundo islâmico acabou se transformando numa periferia
da Europa, nos últimos 300 anos. Sarajevo foi criada pelos islâmicos, em
1461, no auge do Império Turco-Otomano e foi a cidade mais importante
do Império, na região dos Balcãs. Só no fim do século XIX, a Bósnia e
Sarajevo passaram para o domínio austro-húngaro, já em pleno declínio do
império otomano. Com o fim da I GGM e o retalhamento do antigo Império
Otomano, os europeus conquistaram uma vitória militar e política
estrondosa com relação ao mundo islâmico, mas esta vitória não eliminou a
relação essencial entre estes dois pedaços do mesmo universo que mudou
uma vez mais sua forma, mas manteve sua relação essencial até o fim da
Guerra Fria. Por isto, não é de estranhar que tenha sido nos Balcãs, e
na própria Bósnia-Herzegovinia - depois no Kosovo - que tenham sido, de
novo, travadas as últimas guerras do século XX, envolvendo cristãos
ortodoxos, romanos e islâmicos. E que tenha sido nesta guerra "local"
que tenha começado a se desenhar a nova ordem mundial imposta pelos
ganhadores da Guerra Fria, no momento em que eles decidiram fazer a
primeira intervenção militar direta da OTAN, fora do seu território
original, exatamente nos Balcãs.
As "guerras balcânicas", dos anos 90,
provocaram um êxodo populacional de 2,5 milhões de refugiados, muito
maior do que o que está ocorrendo, neste momento, com esta nova
procissão de refugiados que vem atravessando os Balcãs na busca da
proteção dos seus próprios algozes. Só no século XXI, já houve 5 guerras
"externas" ou intervenções "ocidentais", e 9 guerras civis ou
religiosas, do lado do mundo islâmico. O problema é que do outro lado
deste mesmo universo, a Europa também está se dividindo e desintegrando,
social e politicamente, assediada pela estagnação econômica, pelo
desemprego, pela crise financeira dos seus estados, pelo fechamento das
suas fronteiras internas, pelo aumento da prepotência alemã, e pelas
manifestações cotidianas da mais alta desumanidade, com relação a este
novo êxodo de povos sobretudo islâmicos.
Foi neste momento que o garçom se
aproximou da mesa e me perguntou sobre o que tanto eu escrevia.
Expliquei e ele me disse: "pois então anote senhor, que haverá uma nova
guerra em breve, muito breve." Como lhe perguntasse por quê, respondeu:
"Porque isto aqui são os Balcãs, isto aqui é uma ponte, senhor." Depois
se afastou, e me deixou meditando sobre suas palavras, e sobre sua
certeza de uma guerra próxima. Seja como for, a verdade é que quando se
olha hoje, desde aqui, para este "universo Mediterrâneo" que conquistou e
moldou o mundo no último milênio, fica-se com a impressão, quase
certeza, de que ele já perdeu sua energia criadora e está se apagando
como uma "estrela de nêutrons", consumido por suas guerras civis e
religiosas infindáveis, por suas divisões e ódios cada vez mais
profundos, e por suas agressões e intervenções "humanitárias" cada vez
mais ineficientes, irracionais e catastróficas. O que foi uma relação
conflituosa e criativa, através da historia do último milênio, está se
transformando num "abraço de morte". E pensar que tudo isto começou - de
alguma forma - nesta ponte, aí na frente deste Café.
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