Com um braço, governo francês lança bombas contra o ISIS. Com outro, vende armas à Arábia Saudita, que promove guerra suja contra Iêmen e é o principal inspirador dos fundamentalistas
Por Robert Fisk, com tradução de Victor Farinelli, em Carta Maior
O país que ofereceu o credo sunita wahhabista aos autores dos atentados de Paris não dará a mínima importância ao fato de o presidente francês, François Hollande soprar e ares de guerra no Médio Oriente. A Arábia Saudita já conhece essa ladainha, desde que ela surgiu na forma do discurso da Nova Ordem Mundial – em 1991, quando George Bush pai sonhava com uma expressão subhitleriana do Golfo Pérsico, onde poderia existir um oásis de paz, um lugar sem armas, onde as espadas se transformavam em enxadas, e a riqueza que provém dessas terras deixasse de partir em navios petroleiros para passar por oleodutos mais longos.
Os sauditas estão demasiado ocupados a destruir o Iêmen, na sua
enlouquecida guerra contra os houthis xiitas, e não têm tempo para se
preocupar com os loucos sunitas wahhabistas do Estado Islâmico. Seu
inimigo continua a ser o Irã xiita, e estão tão obstinados como sempre
em destronar o presidente sírio, Bashar al Assad, mesmo que o ISIS
esteja na primeira fila de seus inimigos.
Mas os governantes sauditas também sabem que a
política exterior francesa favorece tanto os seus interesses que Paris
chegou a opor-se a um acordo nuclear com o Irã – sem contar os bilhões
de dólares em armamento vindos dos Estados Unidos que continuarão a
fluir até ao reino sunita, apesar das ligações deste com a organização
que destruiu 129 vidas em Paris.
Se alguém acredita que Barack Obama vai disciplinar a
teocracia monárquica dos sauditas, deveria observar melhor a proposta
dos Estados Unidos de vender, por 29 bilhões de dólares, armas ao rei
Salman, de 79 anos de idade, para entender que Washington não se
interessa nem um pouco por controlar a ferocidade do reino.
Riad deixou de bombardear o ISIS (que grande
surpresa!), mas necessita dessas armas desesperadamente depois de
queimar todo o seu arsenal atacando os iemenitas, afundados na extrema
pobreza. O contrato de venda de armas à Arábia Saudita já foi aprovado
pelo Departamento de Estado norte-americano, e inclui munições de ataque
direto fabricadas pela Boeing, além de bombas guiadas a laser, do tipo
Paveway, construídas pela Raytheon.
Os houthis ainda controlam a maior parte do Iêmen, incluindo a
capital Saná, apesar de o apoio que supostamente recebem do Irã ser um
mito alardeado pela Arábia Saudita. Grupos de defesa dos direitos
humanos acusam há muito os sauditas de lançarem ataques aéreos que matam
civis indiscriminadamente. Segundo números das Nações Unidas, já são
2.335 mortes. Vale a pena lembrar que cada uma dessas vidas perdidas é
tão preciosa quanto as 129 que foram ceifadas em 13 de novembro, em
Paris.
Os norte-americanos e os franceses possivelmente
esperavam que os sauditas matassem 2.335 membros do Estado Islâmico, o
que não acontecerá. O Congresso dos Estados Unidos já autorizou Obama a
vender à Arábia Saudita mais 600 mísseis antiaéreos Patriot PAC-3, o que
significa mais 8,3 bilhões de libras esterlinas aos cofres da Lockheed,
apesar de os houthis não terem um mísero avião. Supostamente, esses
mísseis estão destinados a proteger os sauditas de um ataque aéreo
iraniano, coisa em que ninguém em toda a região do Golfo acredita.
As novas leis de emergência na França não afetarão os
sauditas. No Oriente Médio, onde os ditadores locais, reis e emires –
quase todos aliados do Ocidente – espionam regularmente os seus
cidadãos, colocando escutas nos telefones e praticando torturas, ninguém
se importa se as novas leis de Hollande restringem a igualdade, ou a
liberdade dos franceses.
Para os sauditas, a batalha familiar entre o príncipe
herdeiro (o ministro do Interior, Mohammed bin Nayef) e o ministro de
Defesa (Mohammed bin Salman bin Saud) — este último, com apenas 30 anos
de idade, encabeça o bombardeio saudita ao Iêmen –, é muito mais
interessante que o futuro da região e do ISIS.
E se algo interessa muito mais à França são os seus
próprios e bastante lucrativos acordos de venda de armas com a Arábia
Saudita, já que Hollande ainda tem esperanças – algo desesperadas, vale
dizer – de suplantar os Estados Unidos, como principal fornecedor de
armas ao reino. Talvez Paris acredite que está em guerra com o Estado
Islâmico, mas os mentores espirituais do grupo permanecerão intactos.
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