É hora de mudar o jogo
Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Hoje é um bom dia para se olhar de frente para um fato tão grave e monstruoso, muitas pessoas não conseguem sequer encará-lo.
Estou falando sobre a possibilidade de Lula ser condenado pelo juiz Sérgio Moro e levado a cumprir pena de prisão depois de uma derrota mais do que previsível na segunda instância.
Contrariando uma visão bastante comum nos dias de hoje, acredito que esta é uma hipótese muito mais real do que a maioria das pessoas consegue imaginar.
E é bom pensar sobre isso num dia em que, no país inteiro, os trabalhadores saem à rua para defender direitos que, de uma forma ou outra, Lula ajudou a ampliar e consolidar. Para quem compreende o risco de uma iniciativa representa para a democracia brasileira, é bom entender o papel essencial das mobilizações num confronto tão crucial para os destinos do país.
Vivemos uma época na qual cidadãos maiores de idade perderam o direito de cultivar ilusões generosas e reproduzir argumentos infantis. Sabe a conversa de “golpe nunca mais” ou “Podemos ter governos de direita ou de esquerda, mas a democracia sempre será preservada”?
A história também pode andar para trás, como se vê.
Depois das sentenças fortes para provas fracas da AP 470, das prisões preventivas e delações premiadas da Lava Jato, do silencio obsequioso do Supremo Tribunal Federal diante de um impeachment sem crime de responsabilidade, estamos sendo reconduzidos de volta a realidade de um país onde 1% de cima dominam 99% sem admitir contestações leves – como foram os 13 anos e meio de Lula-Dilma no Planalto.
A grande ilusão consiste em acreditar que o papel histórico de Lula, origem de um reconhecimento popular único e mesmo do aplauso internacional, pode funcionar como salvo conduto contra abusos e medidas de exceção, reservadas aos mortais comuns. É como se o apreço popular servisse de couraça protetora, uma segunda pele, paralisando a máquina de abusos que funciona a partir de Curitiba. Sua prisão seria impensável, portanto.
Nesta visão, a liberdade de Lula, a preservação de seus direitos, estaria assegurada por antecedência.
Sinto muito. A lógica aqui é outra. Não tem a ver com reconhecimento popular nem direitos democráticos, mas relação de forças, lavagem cerebral e interesse político. Não por acaso, o mesmo sistema que alimentou a retorica do impeachment sem provas contra Dilma agora se volta para o ataque final a Lula. Batalhas da mesma guerra.
Quem denuncia com base em convicção não quer produzir Justiça. Quer punir. Quem aceita uma denúncia dessa natureza segue o mesmo caminho, mesmo que faça ressalvas formais.
Estamos falando do governo pelo medo, da ameaça, típico de ditaduras, que precisa criar cidadãos submetidos e enganados, indispensáveis nas derrotas da democracia.
Diante da dificuldade extrema de provar que Lula é o verdadeiro proprietário do tríplex do Guarujá, Moro não recusou a denuncia. Seguiu na trilha e lançou um argumento novo para justificar a acusação contra Lula.
Escreveu que os trâmites finais da trama, que poderiam finalmente provar que ele seria o verdadeiro dono do imóvel, talvez não tenham sido executados em função de um problema de calendário. O presidente da OAS, Leo Batista, que iria efetivar a transação, acabou preso – pela própria Lava Jato – antes da transferência da propriedade ser consumada. Assim, uma pura hipótese, um exercício de raciocínio, ajuda na tentativa de enquadrar e condenar Lula.
Mesmo que a hipótese imaginária seja verdadeira, o que ainda está por ser demonstrado, resta o fato essencial: a vantagem ilícita não se consumou. Supondo que todos os lances anteriores do enredo anunciado sejam verdadeiros, o que também não está demonstrado, principal está aqui: o apartamento não mudou de dono. Lula nunca recebeu as chaves. Nunca passou uma noite no local.
Como nos filmes B de Hollywood, o ladrão foi preso antes do assalto, na porta do banco. Cadê o saco de dinheiro, a prova do crime? Não importa. Lula é réu e será julgado por corrupção e lavagem de dinheiro. Como a mídia grande fará seu papel, o cirquinho está garantido.
A tentativa de criminalizar Lula – e Paulo Okamoto, presidente do Instituto que leva o nome do ex-presidente - pelos milhões gastos pela OAS com a guarda do acervo presidencial é ainda mais problemática. É difícil encontrar alguma irregularidade – quanto mais um crime – neste caso.
A prática de obter patrocínio para a proteção dos volumosos arquivos de quem passou pela presidência da República não foi uma invenção de Lula mas se justifica com base na lei 8394, de 1991, elaborada no governo Fernando Collor. Ali se diz que os bens do “acervo presidencial privado são na sua origem, de propriedade do Presidente da República, inclusive para fins de herança, doação ou venda”.
A mesma lei define que, embora se trate de patrimônio pessoal, sua natureza é pública, impondo um “conjunto de medidas e providências a serem levadas a efeito por entidades públicas e privadas, coordenadas entre si, para a preservação, conservação e acesso aos acervos documentais privados dos presidentes da República”.
Em agosto de 2002, quando se preparava para deixar o Planalto, Fernando Henrique fez um decreto para regulamentar a lei de 1991. Ali se diz, no artigo 3, que “os acervos documentais privados dos presidentes da República são os conjuntos de documentos, em qualquer suporte, de natureza arquivística, bibliográfica e museológica, produzidos sob as formas textual (manuscrita, datilografada ou impressa), eletromagnética, fotográfica, filmográfica, videográfica, cartográfica, sonora, iconográfica, de livros e periódicos, de obras de arte e de objetos tridimensionais”.
Com base em seu próprio decreto, Fernando Henrique reuniu o acervo no IFHC, com patrocínio da IBM, ainda um gigante mundial de informática, e outras empresas privadas. Não havia nada de errado na decisão tomada. O apoio de “entidades públicas e privadas” está previsto explicitamente na lei 8394.
É tão cristalino que a maioria dos interessados entrou no patrocínio ao IFHC através da lei Rouanet, o que permite uma observação curiosa. Além de assegurar um gesto de agrado a memória de FHC, o acerto permitiu aos patrocinadores do IFHC jogarem a conta para o contribuinte. Gozado, não?
Num editorial, o Estado de S. Paulo investiu contra o auxílio da OAS ao acervo de Lula. Numa linha maliciosa, lamentou que “Okamoto não esclareceu a contrapartida para tanta generosidade”. Poderia ter feito a mesma cobrança de FHC, não é mesmo? O problema é que isso iria atrapalhar o circo e mostrar que neste espetáculo, o grande palhaço está na platéia.
Quando se considera a identificação particular, quase íntima, que a maioria dos brasileiros construiu na relação com Lula, em função de uma vitória de baixo para cima, o que se programa é uma derrota pelo alto, uma revanche cruel e miserável.
Vencedores com Lula, serão derrotados através dele, ainda que se tente esconder este fato, por todos os meios ao alcance dos interessados. Quando os brasileiros se derem conta, será tarde: o país do 1% humilhou 99% mais uma vez.
Mesmo sendo a conclusão lógica do processo, a prisão de Lula não é uma fatalidade. Irá depender da capacidade da população reagir.
Este é o movimento que tem força para colocar as peças da democracia em seu devido lugar. A coragem daqueles que - contrariando uma frase famosa - já tem o que perder além dos próprios grilhões faz nascer a vergonha dos acomodados que se omitem. Também questiona o conforto dos bem situados que fingem que nada tem a ver com o futuro da maioria dos brasileiros, daqueles que mostram caninos afiados depois de exibir tantos sorrisos doces na hora em que pediam favores a um grande homem, hoje caçado como um animal.
Esta é a opção.
Hoje é um bom dia para se olhar de frente para um fato tão grave e monstruoso, muitas pessoas não conseguem sequer encará-lo.
Estou falando sobre a possibilidade de Lula ser condenado pelo juiz Sérgio Moro e levado a cumprir pena de prisão depois de uma derrota mais do que previsível na segunda instância.
Contrariando uma visão bastante comum nos dias de hoje, acredito que esta é uma hipótese muito mais real do que a maioria das pessoas consegue imaginar.
E é bom pensar sobre isso num dia em que, no país inteiro, os trabalhadores saem à rua para defender direitos que, de uma forma ou outra, Lula ajudou a ampliar e consolidar. Para quem compreende o risco de uma iniciativa representa para a democracia brasileira, é bom entender o papel essencial das mobilizações num confronto tão crucial para os destinos do país.
Vivemos uma época na qual cidadãos maiores de idade perderam o direito de cultivar ilusões generosas e reproduzir argumentos infantis. Sabe a conversa de “golpe nunca mais” ou “Podemos ter governos de direita ou de esquerda, mas a democracia sempre será preservada”?
A história também pode andar para trás, como se vê.
Depois das sentenças fortes para provas fracas da AP 470, das prisões preventivas e delações premiadas da Lava Jato, do silencio obsequioso do Supremo Tribunal Federal diante de um impeachment sem crime de responsabilidade, estamos sendo reconduzidos de volta a realidade de um país onde 1% de cima dominam 99% sem admitir contestações leves – como foram os 13 anos e meio de Lula-Dilma no Planalto.
A grande ilusão consiste em acreditar que o papel histórico de Lula, origem de um reconhecimento popular único e mesmo do aplauso internacional, pode funcionar como salvo conduto contra abusos e medidas de exceção, reservadas aos mortais comuns. É como se o apreço popular servisse de couraça protetora, uma segunda pele, paralisando a máquina de abusos que funciona a partir de Curitiba. Sua prisão seria impensável, portanto.
Nesta visão, a liberdade de Lula, a preservação de seus direitos, estaria assegurada por antecedência.
Sinto muito. A lógica aqui é outra. Não tem a ver com reconhecimento popular nem direitos democráticos, mas relação de forças, lavagem cerebral e interesse político. Não por acaso, o mesmo sistema que alimentou a retorica do impeachment sem provas contra Dilma agora se volta para o ataque final a Lula. Batalhas da mesma guerra.
Quem denuncia com base em convicção não quer produzir Justiça. Quer punir. Quem aceita uma denúncia dessa natureza segue o mesmo caminho, mesmo que faça ressalvas formais.
Estamos falando do governo pelo medo, da ameaça, típico de ditaduras, que precisa criar cidadãos submetidos e enganados, indispensáveis nas derrotas da democracia.
Diante da dificuldade extrema de provar que Lula é o verdadeiro proprietário do tríplex do Guarujá, Moro não recusou a denuncia. Seguiu na trilha e lançou um argumento novo para justificar a acusação contra Lula.
Escreveu que os trâmites finais da trama, que poderiam finalmente provar que ele seria o verdadeiro dono do imóvel, talvez não tenham sido executados em função de um problema de calendário. O presidente da OAS, Leo Batista, que iria efetivar a transação, acabou preso – pela própria Lava Jato – antes da transferência da propriedade ser consumada. Assim, uma pura hipótese, um exercício de raciocínio, ajuda na tentativa de enquadrar e condenar Lula.
Mesmo que a hipótese imaginária seja verdadeira, o que ainda está por ser demonstrado, resta o fato essencial: a vantagem ilícita não se consumou. Supondo que todos os lances anteriores do enredo anunciado sejam verdadeiros, o que também não está demonstrado, principal está aqui: o apartamento não mudou de dono. Lula nunca recebeu as chaves. Nunca passou uma noite no local.
Como nos filmes B de Hollywood, o ladrão foi preso antes do assalto, na porta do banco. Cadê o saco de dinheiro, a prova do crime? Não importa. Lula é réu e será julgado por corrupção e lavagem de dinheiro. Como a mídia grande fará seu papel, o cirquinho está garantido.
A tentativa de criminalizar Lula – e Paulo Okamoto, presidente do Instituto que leva o nome do ex-presidente - pelos milhões gastos pela OAS com a guarda do acervo presidencial é ainda mais problemática. É difícil encontrar alguma irregularidade – quanto mais um crime – neste caso.
A prática de obter patrocínio para a proteção dos volumosos arquivos de quem passou pela presidência da República não foi uma invenção de Lula mas se justifica com base na lei 8394, de 1991, elaborada no governo Fernando Collor. Ali se diz que os bens do “acervo presidencial privado são na sua origem, de propriedade do Presidente da República, inclusive para fins de herança, doação ou venda”.
A mesma lei define que, embora se trate de patrimônio pessoal, sua natureza é pública, impondo um “conjunto de medidas e providências a serem levadas a efeito por entidades públicas e privadas, coordenadas entre si, para a preservação, conservação e acesso aos acervos documentais privados dos presidentes da República”.
Em agosto de 2002, quando se preparava para deixar o Planalto, Fernando Henrique fez um decreto para regulamentar a lei de 1991. Ali se diz, no artigo 3, que “os acervos documentais privados dos presidentes da República são os conjuntos de documentos, em qualquer suporte, de natureza arquivística, bibliográfica e museológica, produzidos sob as formas textual (manuscrita, datilografada ou impressa), eletromagnética, fotográfica, filmográfica, videográfica, cartográfica, sonora, iconográfica, de livros e periódicos, de obras de arte e de objetos tridimensionais”.
Com base em seu próprio decreto, Fernando Henrique reuniu o acervo no IFHC, com patrocínio da IBM, ainda um gigante mundial de informática, e outras empresas privadas. Não havia nada de errado na decisão tomada. O apoio de “entidades públicas e privadas” está previsto explicitamente na lei 8394.
É tão cristalino que a maioria dos interessados entrou no patrocínio ao IFHC através da lei Rouanet, o que permite uma observação curiosa. Além de assegurar um gesto de agrado a memória de FHC, o acerto permitiu aos patrocinadores do IFHC jogarem a conta para o contribuinte. Gozado, não?
Num editorial, o Estado de S. Paulo investiu contra o auxílio da OAS ao acervo de Lula. Numa linha maliciosa, lamentou que “Okamoto não esclareceu a contrapartida para tanta generosidade”. Poderia ter feito a mesma cobrança de FHC, não é mesmo? O problema é que isso iria atrapalhar o circo e mostrar que neste espetáculo, o grande palhaço está na platéia.
Quando se considera a identificação particular, quase íntima, que a maioria dos brasileiros construiu na relação com Lula, em função de uma vitória de baixo para cima, o que se programa é uma derrota pelo alto, uma revanche cruel e miserável.
Vencedores com Lula, serão derrotados através dele, ainda que se tente esconder este fato, por todos os meios ao alcance dos interessados. Quando os brasileiros se derem conta, será tarde: o país do 1% humilhou 99% mais uma vez.
Mesmo sendo a conclusão lógica do processo, a prisão de Lula não é uma fatalidade. Irá depender da capacidade da população reagir.
Este é o movimento que tem força para colocar as peças da democracia em seu devido lugar. A coragem daqueles que - contrariando uma frase famosa - já tem o que perder além dos próprios grilhões faz nascer a vergonha dos acomodados que se omitem. Também questiona o conforto dos bem situados que fingem que nada tem a ver com o futuro da maioria dos brasileiros, daqueles que mostram caninos afiados depois de exibir tantos sorrisos doces na hora em que pediam favores a um grande homem, hoje caçado como um animal.
Esta é a opção.
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