Auto-convocados por redes sociais, jovens fizeram uma semana de mobilizações, até revogação do aumento dos ônibus. Que eles ensinam?
Por Samir Oliveira.
Na segunda-feira (1), os porto-alegrenses realizaram um protesto como há muito não ocorria na cidade. Pelo menos 6 mil pessoas saíram às ruas para exigir a revogação do aumento da passagem de ônibus, numa época em que é bastante comum ouvir lamentos de que já não ocorrem mais grandes manifestações. Não são poucos os que dizem que, hoje em dia, existem apenas “ativistas de sofá”, em referência à convocação de mobilizações por redes sociais como Facebook e Twitter – expediente utilizado para organizar os atos contra o aumento da passagem na Capital.
Desconsiderando os grandes eventos — como o Fórum Social Mundial Temático, de janeiro de 2012, e o Fórum Social Mundial Palestina Livre, de dezembro do ano passado — , a cidade não recebia uma manifestação tão grande desde março de 2011, quando mais de duas mil pessoas foram às ruas para protestar contra o atropelamento em massa de ciclistas feito pelo funcionário do Banco Central Ricardo José Neis.
Sociólogos e cientistas políticos ouvidos pelo Sul21 avaliam que a intensidade do último protesto contra o aumento da passagem sinaliza uma revolta crescente contra políticas de restrição dos espaços públicos em Porto Alegre e dialoga com a lógica de movimentos autoconvocados em outros lugares do mundo, como as ocupações nos Estados Unidos e os Indignados na Espanha.
O perfil do Occupy da cidade de Barcelona, na Espanha, chegou a reproduzir uma imagem do protesto desta segunda-feira na Capital. Em uma artigo publicado nesta quarta-feira (3) no Jornal do Comércio, o jornalista Guilherme Kolling, que morou em Madri, comenta as semelhanças dos atos na Capital com a revolta dos jovens espanhóis. “’¡Manos arriba! ¡Eso es un atraco!’, gritavam os Indignados da Espanha, em uma manifestação em Madri no ano passado contra os cortes do governo central. ‘Mãos ao alto! R$ 3,05 é um assalto!’, bradavam os estudantes de Porto Alegre, ao protestar contra o aumento da passagem de ônibus na segunda-feira”, comparou.
Movimento pode consolidar cultura política para além da representação, avalia cientista político
Uma das características desse tipo de movimento é a ausência de grandes lideranças. Os atos costumam ser convocados no Facebook e reúnem grupos de diferentes linhas ideológicas, que atuam dentro ou fora da institucionalidade – além de uma ampla gama de participantes que não atuam em nenhum tipo de organização política.
Esse coletivo diversificado compõe o Bloco de Luta pelo Transporte Público, que é um dos principais aglutinadores de agentes sociais envolvidos nos protestos contra o aumento da passagem, mas cujos integrantes organizados — que participam de reuniões e assembleias — não são maioria entre os manifestantes. No primeiro protesto, no final de janeiro, os ativistas organizados em coletivos compunham parte expressiva da mobilização, que possuía algumas centenas de jovens. Entretanto, nos dois últimos atos, quando o número chegou à casa dos milhares, quem engrossou o caldo nas ruas foram jovens sem qualquer envolvimento com o bloco.
O cientista político e professor da Unisinos Bruno Lima Rocha observa que as organizações que apoiam e também convocam esses protestos não hegemonizam os atos. “No protesto de quarta-feira, claramente, havia pelo menos cinco forças políticas: PSTU, PSOL, Movimento Revolucionário, PCB e Federação Anarquista Gaúcha. Nenhuma delas é majoritária e consegue hegemonizar o ato. É um sintoma de que a manifestação transborda e se inverte. Quem está organizado em alguma instituição não consegue hegemonizar o que é convocado”, interpreta.
No final da manifestação de quarta-feira, muitos jovens gritaram para que os militantes partidários abaixassem suas bandeiras e bradaram: “O povo unido protesta sem partido!”. Na opinião de Bruno Lima Rocha, “o sentimento de não aceitar intermediários políticos é muito presente” nesse tipo de movimento. Ele acredita que isso pode “consolidar uma cultura política nova, que transborde a representação”. Mas alerta que também há riscos decorrentes dessa postura. “Na ausência de uma intermediação política, que acaba sendo deslegitimada, os atos podem deixar uma experiência, mas não um tecido social organizado”, ressalva.
“Quem pauta os protestos são os indivíduos, não as instituições”, observa sociólogo
Professor da Faculdade de Ciências Sociais da PUCRS, Adão Clóvis Martins dos Santos entende que Porto Alegre está consolidando uma nova cultura de manifestações – a partir de referências que chegam de experiências como o movimento Occupy nos Estados Unidos e os Indignados na Espanha.
“Existe um caldo de uma nova cultura e prática de mobilização se formando. É claro que existem partidos, diretórios estudantis e sindicatos que também organizam e convocam, mas quem pauta esses protestos são os diferentes indivíduos, não as instituições”, explica.
O professor afirma que essa estrutura fluída de organização confunde, inclusive, as autoridades públicas, que não estão compreendendo essa dinâmica. “Há algumas semanas eu ouvi de um policial militar que a polícia não sabe como agir em relação a esses movimentos. Não sabem qual o trajeto de uma marcha, pois não existe roteiro. O policial disse que é mais fácil lidar com o MST, que possui lideranças definidas, do que acompanhar um ato desses”, comenta.
Adão Clóvis observa que as causas que estão motivando os jovens a ir para as ruas hoje são diferentes das que mobilizavam a população entre os anos 1960 e 1980. “Um dos grandes movimentos de Porto Alegre hoje é a luta pelo espaço público democrático e pelo direito de ir e vir. A palavra de ordem desses grupos é contra a apropriação privada de espaços públicos. Questionam uma cultura que deseja que os jovens sejam segregados e confinados em espaços fechados, sem fazer ruído”, avalia.
O sociólogo acredita que o que levou pelo menos 6 mil pessoas às ruas na segunda-feira foi um processo de revolta contra diversas políticas restritivas, que acabaram tendo como estopim o aumento da passagem. “É uma reação a políticas que restringem o uso do espaço urbano e a capacidade do cidadão em se locomover por ele”, critica o professor, que também dá aulas sobre Teoria da Urbanização.
Apesar de reconhecer a predominância de indivíduos sobre instituições, Adão Clóvis entende que algumas organizações podem se readaptar a essa nova dinâmica de mobilização. “A partir de um determinado momento, DCEs importantes, como da PUCRS e da UFRGS, retornam às manifestações. Grupos recém iniciados na política chegaram à direção dessas instituições. Eles não possuem experiência, mas também não possuem os vícios de uma estrutura organizada”, entende.
“Vivemos movimento de explosão social que não ocorre pela via política tradicional”, diz professor da UPF
Professor de Sociologia da Universidade de Passo Fundo (UPF), Vinícius Rauber afirma que as mobilizações em Porto Alegre ganharam corpo porque o descontentamento em relação ao preço da passagem atinge boa parte da população da cidade. “A gênesis do movimento ocorreu com o fechamento de espaços de socialização da juventude. Com o aumento da repressão, a organização e as reclamações deixaram de ser apenas pela internet. No caso das passagens, o cidadão comum passa a se identificar com o movimento, pois vê que seu calo também está sendo pisado”, reflete.
Ele também reforça a semelhança dessas revoltas com os levantes em outros lugares do mundo, mas pontua diferenças. “Não é algo restrito a Porto Alegre. Vemos isso no Occupy desde 2010 e nas mobilizações da Primavera Árabe. Claro que, nesse último caso, tratava-se de sistemas totalitários que abrangiam toda população de um país. Mas o princípio é o mesmo: pessoas que se organizam na internet e vão para as ruas protestar contra a opressão de instituições do Estado”, qualifica.
Vinícius Rauber entende que as críticas que se proliferam à presença de partidos políticos nas manifestações refletem uma descrença na política institucional, mas não acredita que isso dê um caráter apolítico ao movimento. “Os protestos começaram como uma reação a uma política específica – como fechamento de bares –, depois foram aumentando, por conta da repressão, e se transformaram em manifestações de cidadania positiva. Estamos vivendo um momento de explosão social que não ocorre pela via política tradicional. A redemocratização brasileira ocorreu assim, com pequenos movimentos de esquerda demandando questões pontuais, até que a população se uniu em um movimento mais amplo. Estamos vivendo esta fase de transição e agregação“, resume.(Samir Oliveira/Boletim Outras Palavras)
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