David Harvey: “Nós estamos construindo cidades para investir, não para viver”
Entre 2007 e 2008, uma crise econômica
varreu a economia globalizada. Bancos quebraram, empregos sumiram,
cidades foram abandonadas, bolsas caíram e revoltas das mais diversas,
poucos anos depois, se espalharam de maneira epidêmica pelo mundo. O que
originou todo esse processo tão pleno de desdobramentos e que tantas
vidas afetou? O estouro da bolha imobiliária.
A reportagem é de Pedro Ribeiro Nogueira, publicada por Portal Aprendiz.
Para o geógrafo britânico David Harvey,
professor emérito da Universidade de Cidade de Nova Iorque, que abriu
nesta terça-feira (9/6) o seminário Cidades Rebeldes, organizado pela
Boitempo Editorial e pelo SESC São Paulo – e que terá cobertura completa
no Portal Aprendiz -, hoje em dia não se pode mais
separar desenvolvimento urbano da economia financeirizada. As cidades,
então, se tornaram espaço privilegiado de “reciclagem de capitais”.
“A expansão imobiliária cria e resolve
crises. Quando a economia global afundou em 2008, quem salvou foi a
expansão urbana dramática na China, que consome até hoje metade do
cimento, ferro e cobre do mundo, matérias-primas estas que foram
compradas do Brasil, Chile e Austrália, ou seja, países que sobreviveram
bem à crise”, afirma o geógrafo.
Numa longa fala, na qual relembrou sua extensa carreira acadêmica, Harvey
lembrou quando foi pesquisar os conflitos urbanos em Baltimore, nos
EUA, em 1969. “Os protestos que eclodiram violentamente no país após o
assassinato de Martin Luther King,
em 1968, não podiam ser explicados apenas pela questão racial. Havia um
desconforto existencial em grandes parcelas da população marginalizadas
de suas próprias cidades”.
Na época, Harvey resolveu estudar o famoso livro de Karl Marx, O Capital,
para entender os processos urbanos. Na explicação sobre valor de uso e
valor de troca das mercadorias, estava a lógica da especulação
imobiliária nas cidades. “Quando eu apresentei isso para executivos do
ramo imobiliário, eles acharam brilhante. Claro que eu nunca falei de
onde tirei os conceitos, porque senão eles sairiam correndo. Mas a forma
como a cidade está estruturada, e é como mercadoria, já estava lá desde
1867”.
Para ele, as cidades foram transformadas
em lugares para investir e não para viver. “Hoje, em Londres, que tem
enormes problemas de moradia, há ruas inteiras com condomínios de luxo
que estão completamente desabitados, que foram comprados por milionários
sauditas, indianos, russos, americanos. O bem estar da população é a
última prioridade, quando o lucro é a principal preocupação no desenvolvimento urbano”, pondera.
Cidades rebeldes
Criador do termo “Cidades Rebeldes”, Harvey
explica que junto à expansão urbana desenfreada, se consolidou um
mal-estar urbano generalizado, que se cristaliza nas manifestações que
surgiram no mundo nos últimos anos, do Ghezi Park, na Turquia, às Jornadas de Junho, no Brasil.
O britânico aponta que muito facilmente os processos foram de algo
pontual, para algo global, capaz de mobilizar não apenas cidades, mas
países inteiros, sendo que, nesse sentido, é importante entender os
protestos como processos.
“Rebeliões são importantes porque
mostram que outra sociabilidade é possível. As pessoas que foram às ruas
na Turquia, onde estive por muito tempo, perceberam que estavam
alienados uns dos outros e que existia outra forma de ver e fazer
cidade. As pessoas se juntaram e tiveram uma visão nova do comum. É
tentador pensar num momento cataŕtico revolucionário que resolve tudo,
mas hoje as revoluções são mais lentas e precisam de uma mudança de mentalidade e de processos democráticos de tomada de decisão”, pondera.
Nesse sentido, a eleição do partido Podemos e de herdeiros dos indignados na Espanha, como Ada Colau, em Barcelona, e do Syriza,
na Grécia, mostra que essa forma de ver a cidade ganhou expressão
política. “Mas é crucial que eles não falhem. Pois em momentos de crise,
como o Brasil mostra, o fascismo está sempre à espreita. É uma posição
esperançosa e perigosa que estes governos ocupam agora”.
Qual direito à cidade?
No meio de tudo isto, o geógrafo não tem
dúvida de que o direito à cidade emerge como uma pauta capaz de
unificar os diversos movimentos sociais que lutam pelo direito à saúde,
educação, moradia, passe-livre e por mais democracia. Quando se fala de
cada uma dessas pauta, se está falando de uma cidade que possa ser
fruída por todas. Mas ele faz um alerta.
“Todos gostam do direito à cidade. As empreiteiras,
os bilionários, os políticos adoram falar nisso. Eles querem o direito
para a cidade deles. “Direito à cidade” é um significante amplo e
possivelmente vazio. Temos que batalhar pelo seu sentido igualitarista,
de uma cidade para todos, com educação de qualidade, moradia digna, que
os pobres tenham voz, que tenhamos poder de decisão sobre como ela será
feita e refeita”, aponta.
“É menos sobre catástrofes e momentos de rebelião e mais sobre se todos podemos contribuir, através de educação e de novas práticas democráticas,
de assembleias e de nossa capacidade de tomar decisões de maneira
coletiva, de reestruturar a produção e o emprego cooperativamente. Mas
isso tem que estar coordenado e embasado teoricamente. Se superarmos as
fragmentações, podemos ter uma urbanização emancipatória, ao contrário
da alienada e repressiva que temos hoje”, conclui.
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