Como Temer trama o retrocesso
Análise
detalhada do programa econômico do vice revela ataque aos salários,
novos favores às elites e ímpeto de bloquear luta das maiorias por
igualdade
Por Carlos Frederico Rocha
Ao se colocar como alternativa à presidência, o vice-presidente
Michel Temer preparou um documento sobre quais seriam as linhas gerais
seguidas em um suposto governo de substituição à presidente Dilma
Roussef. O documento se chamou “Uma ponte para o futuro”i1.
Este texto procura apresentar criticamente suas principais propostas e
desenhar um possível cenário, caso a hipótese de impedimento da
presidente venha a se verificar.
“Uma
ponte para o futuro” realiza inicialmente um diagnóstico da situação do
país. Primeiro, haveria um grave desequilíbrio causado pelos benefícios
criados pela Constituição de 1988. Segundo, como a carga tributária é
elevada, uma solução pelo aumento dos impostos estaria inviabilizada.
Terceiro, existiria grande dificuldade de redução de despesas que
resultam de obrigação constitucional.
O Ajuste Fiscal
Segundo
o documento, os dispositivos de gastos em educação, saúde e assistência
social seriam até virtuosos, mas, somados a outras despesas
obrigatórias não virtuosas, que incluem a Previdência Social, tornariam
necessária uma forte reestruturação, alterando dispositivos
constitucionais e legais.
Em termos orçamentários, o projeto do Vice-presidente propõe:
-
fim de todas as vinculações obrigatórias do Orçamento a despesas específicos (incluindo as virtuosas);
-
criação do orçamento impositivo, ou seja, o orçamento votado no congresso deve ser obrigatoriamente executado em sua integralidade, sem contingenciamento;
-
fim de todas as indexações, seja para salários, seja para benefícios previdenciários, seja para qualquer gasto;
-
criação do orçamento de base zero, que significa a revisão de todos os itens orçamentários a cada legislatura, ou seja, a possibilidade de descontinuidade anual de qualquer programa; e
-
um dispositivo que impossibilita o aumento das despesas acima do crescimento do PIB.
A
primeira percepção que emerge da leitura das propostas de ajuste é uma
tentativa de deslocamento de poder do Executivo para o Legislativo.
Escrito em outubro de 2015, em um cenário político conturbado, com o
governo enfraquecido, percebe-se que existe uma tentativa de assegurar
aos congressistas que suas emendas orçamentárias terão de ser
executadas. É possível especular que o objetivo era assegurar aos
congressistas, próximos a votar um impedimento, estariam frente a uma
oportunidade de ganhar poder na definição de recursos de acordo com seus
desejos, que não poderiam mais ser alvo de contingenciamento
governamental.
Sob
o ponto de vista econômico, as medidas sugeridas parecem conduzir, no
entanto, à redução dos gastos sociais. A desvinculação das despesas é um
dos instrumentos, o outro é o fim das indexações, que afeta
principalmente a Previdência Social, objeto de análise específica mais
adiante. Uma rápida avaliação nas despesas que sofreriam desvinculação
permite concluir que, salvo algumas exceções que poderiam ser citadas
nominalmente se fossem os únicos alvo, apenas recursos destinados à
Saúde, Previdência, Educação e salários sofrerão os cortes propostos2.
A
segunda consequência econômica é a proibição institucional de políticas
keynesianas. Ao fixar que o gasto governamental não poderá crescer mais
do que o PIB, o vice-presidente está definindo o fim da possibilidade
de se realizar políticas anticíclicas. Tradicionalmente, os gastos
governamentais representam um papel anticíclico. Economistas keynesianos
e ortodoxos vêm debatendo questões em torno do tema desde a publicação
da Teoria Geral do Emprego, Juro e Moeda, em 1936. Está
longe de haver consenso, mas nunca, desde os anos 1930, o pêndulo esteve
tão a favor dos seguidores de Keynes. Até mesmo o sisudo Fundo
Monetário Internacional apresentou uma mudança no seu entendimento sobre
o assunto, propondo políticas fiscais mais frouxas, após a crise de
20083.
O entendimento do vice-presidente é, no entanto, que devemos proibir
legalmente políticas que, frente a uma queda do PIB, possam atenuar os
efeitos recessivos.
Surge,
então, um primeiro conjunto de questões: será que é razoável dar esse
importante passo, que produziráengessamento das políticas públicas, a
partir da retirada de uma presidente que foi legitimamente eleita com um
programa oposto e a indicação quase que biônica de um presidente
alternativo? Será que medidas tão drásticas quanto essas não deveriam
ser alvo de uma Constituinte?
Previdência Social
Uma
ponte para o futuro dá especial ênfase à Previdência. Essa atenção é
justificada devido ao crescente déficit do INSS e à elevada parcela do
PIB dedicada a este item do Oaçamento. De acordo com os argumentos
expostos, o Brasil teria cerca de 12% do PIB dedicados à Previdência,
parcela semelhante a França e Alemanha, que têm uma pirâmide demográfica
mais envelhecid –, e o dobro de EUA e Japão.
O documento, então, propõe:
-
aumento da idade mínima de aposentadoria para 60 anos, para mulheres, e 65, para homens; e
-
fim da indexação dos benefícios da Previdência ao salário mínimo.
Com
respeito a esse ponto é importante ressaltar que cerca de 60% dos
beneficiários da Previdência recebem o piso do salário mínimo. A
retirada da indexação implicaria uma perda real significativa para um
número razoavelmente grande de famílias (cerca de 30% das famílias
recebem rendimentos previdenciários). É fundamental lembrar que, em
média, o crescimento e melhor distribuição dos rendimentos da
Previdência Social são responsáveis por cerca de um quarto da redução da
desigualdade no Brasil. As mudanças na indexação no piso salarial
estarão na contramão deste processo. Além disso, deve-se ponderar que,
se o salário mínimo tem um valor em termos de dignidade humana (artigo
primeiro da Constituição Federal), o que se pode pensar em termos de
valores sociais sobre esse tipo de medida?
O
aumento da idade de aposentadoria toca em um ponto relevante que
entendo deva ser pensado pela sociedade. Trata-se da divisão
intergeracional da renda. Não teria uma oposição inicial à medida,
embora, mais uma vez e sempre, entenda que isso deve ser uma discussão
social e não uma medida tomada a partir da assunção do poder
indiretamente por alguém cujo programa não foi submetido a escrutínio.
É
de se notar, contudo, uma grande omissão. Um dos vários equívocos do
governo Dilma foi a desoneração da folha de pagamento, que provocou, em
2014, uma redução de cerca de R$ 20 milhões na arrecadação de impostos.
Não há uma palavra do vice-presidente sobre esse tema. É de se especular
quando entidades empresariais desenham ou copiam figuras de pato, quem
serão os verdadeiros patos de um possível governo Temer.
A Agenda para o Desenvolvimento
A
parte final do documento apresenta uma agenda de desenvolvimento
fortemente baseada na liberalização dos mercados (ou quase). As
principais medidas podem ser divididas em quatro grupos. Primeiro, há
elementos que, creio, todos concordariam e que não foram realizados por
impossibilidade de negociação parlamentar ou por falta de capacidade
técnica de montagem de uma agenda de discussões. Nesse caso, a “Ponte
para o Futuro” propõe a melhoria do ambiente de negócios com a
simplificação do sistema tributário e redução dos obstáculos à abertura e
ao fechamento de empresas; atenção à gestão das empresas públicas e das
agências reguladoras, entre outros pontos de menor importância. Ensaia o
que seria uma continuidade da política de inovação ao “dar alta
prioridade à pesquisa e o desenvolvimento tecnológico que são a base da
inovação”.
Segundo,
argumenta pela necessidade de se realizar com celeridade uma “abertura
comercial que torne nosso setor produtivo mais competitivo, graças ao
acesso a bens de capital, tecnologia e insumos importados”. Essa
abertura deveria ser acompanhada pela assinatura de acordos regionais,
já em andamento, que melhorariam o acesso de produtos tupiniquins aos
mercados da Ásia e da América do Norte. Além do mais, argumenta que o
realinhamento do câmbio auxiliaria essa transformação.
A
terceira frente seria “executar uma política de desenvolvimento
centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que
se fizerem necessárias”, inclusive na área de petróleo, que retornaria à
regulação que vigorou previamente à descoberta do pré-sal.
A
quarta iniciativa seria a alteração da Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), permitindo que as convenções coletivas prevaleçam sobre
as normas legais, salvo quanto aos direitos básicos. Neste aspecto,
merece também destaque uma frase contida no documento, em que se afirma
que, em contrapartida ao novo sistema público sem indexação, “novas
legislações procurarão exterminar de vez os resíduos de indexação de
contratos no mundo privado e no setor financeiro”. O principal contrato
do “mundo privado” é o de trabalho e creio ser essa uma maneira indireta
de se afirmar que se alterará a regra de reajuste do salário mínimo.
Cabe
notar uma importante ausência, tanto nos comentários da política de
desenvolvimento, quanto nos referentes ao ajuste fiscal: a desoneração
tributária à indústria por intermédio do IPI e outros procedimentos.
(Olha o pato outra vez na área). A desoneração de impostos no total
(incluindo a da folha de pagamento) representou, em 2014, R$ 88 bilhões
de redução na arrecadação da União. Nenhuma palavra sobre isso no
documento: nem sobre as medidas que poderiam vir a ser virtuosas, nem
sobre alguns estrondosos erros do governo Dilma.
A
agenda de desenvolvimento merece comentários. Na parte inicial,
mudanças no ambiente de negócios estão longe de conduzir a uma
trajetória clara de desenvolvimento. A evidência empírica não parece ser
conclusiva a esse respeito, principalmente porque existem
endogeneidades que são difíceis de controlar. Mais importante, acreditar
na simplificação do sistema tributário com as divergências de
interesses encontradas entre os entes federativos está mais próximo da
montagem de uma agenda natalina, do que propriamente de desenvolvimento.
A
proposta de abertura do mercado doméstico está na mesa desde o início
do processo de redemocratização do Brasil. O governo Collor fez um
esboço de uma política de redução da proteção e os governos Itamar e FHC
realizaram uma importante modificação nesse cenário, estabelecendo
regras transparentes para tarifas e permitindo a entrada de bens
importados em todos os segmentos da economia. Os governos Lula e Dilma
mantiveram as principais características do modelo, ainda que tenham
implantado, em alguns setores, políticas de conteúdo local,
bem-sucedidas em alguns casos, nem tanto em outros. De fato, quando se
examinam as empresas, aquelas que mais importam insumos e equipamentos
tendem a ter melhor desempenho e as exportadoras tendem a ser mais
eficientes. Contudo, é wishful thinking pensar que a mera redução
tarifária ou a suspensão de políticas de conteúdo local somadas à
recente desvalorização cambial implicarão crescimento das exportações. A
abertura de mercados impõe um novo e mais agressivo ambiente seletivo
às empresas. Os impactos sobre emprego e renda no curto prazo estão
longe de ser positivos. Um ano após a forte desvalorização de 2015, não
se verifica mudança nas exportações. As estimativas de elasticidade
preço e câmbio de nossas exportações estão longe de ser otimistas.
Ademais, apesar da abertura promovida por Itamar e FHC ter afetado os
segmentos de comerciáveis no Brasil, a estrutura industrial pouco se
alterou além da provocação de uma onda de fusões e aquisições que
internacionalizou ainda mais a nossa indústria. Nesse sentido, a
experiência ensina que mesmo no longo prazo os efeitos podem não ser os
desejados.
O
tema da privatização parece ser um pouco mais perigoso e, nesse caso, o
escrutínio público é fundamental. Toda vez que foi tema de eleição, a
população escolheu contra a privatização. No setor financeiro, Banco do
Brasil, Caixa Econômica e BNDES tiveram um papel central na reversão da
crise, entre 2009 e 2010. São instrumentos importantes de política
econômica. Não parece razoável privatizá-los. Na área do petróleo, o
retorno do marco regulatório ao sistema de concessão está longe de ser
dano. No entanto, a privatização da Petrobras não parece ser
convidativa. A Petrobras tem grande contribuição ao desenvolvimento
tecnológico do Brasil. Parece claro que provedores da Petrobras têm
melhor desempenho do que seus pares e os testes de causalidade, na
medida em que se aperfeiçoam, tendem a ressaltar o seu papel.
O
ponto mais perigoso da agenda de desenvolvimento são as mudanças
preconizadas para o mercado de trabalho. No que tange às mudanças na
CLT, parece claro que o documento caminha na direção de reduzir a
remuneração daqueles que percebem até três salários mínimos. Calcula-se
que 50% da melhoria na distribuição de renda se devem à melhor
distribuição da renda laboral. Dois elementos tiveram papel importante
nessa trajetória: a regra do salário mínimo e a redução do bônus da
qualificação. Cabe lembrar que o país ainda mantém um dos maiores bônus à
qualificação do mundo. A liberalização do mercado de trabalho, somada à
desvinculação do salário mínimo à regra existente, tende a aumentar
esse bônus. Os aspectos distributivos tendem a ser danosos. Mais uma
vez, trata-se de uma forte reversão de trajetória.
A Economia Política do Impedimento
Em seu “Aspectos Políticos do Pleno Emprego”4,
Michal Kalecki, um dos grandes economistas do século XX, enuncia o
principal limite das políticas econômicas que visam ao pleno emprego.
Segundo ele, apesar do sucesso de políticas de dinamização da economia, a
oposição dos “líderes da indústria” a essas políticas emergiria por
três razões: “(i) não gostam da interferência do governo no problema do
emprego como tal; (ii) não gostam da direção dos gastos do governo (o
investimento público e o consumo subsidiado); (iii) não gostam das
mudanças sociais e políticas resultantes da manutenção do pleno
emprego”. No primeiro caso, ressalta que a rejeição às políticas tem
origem na possível perda de influência que esses “líderes da indústria”
teriam, em razão da perda de importância relativa do investimento
privado para a manutenção do nível de atividade. “A função social da
doutrina das ‘finanças saudáveis’ é fazer com que o nível de emprego
dependa do estado de confiança”. No segundo caso, a oposição ao consumo
subsidiado adviria do fato de que “os fundamentos da ética capitalista
requerem que ‘você deve ganhar o seu pão no suor’, a menos que você
tenha meios privados”. O terceiro caso é, no entanto, aquele que merece
maior ênfase do autor. De acordo com ele, o elevado nível de atividade
resultaria em busca de ganhos salariais e maior poder de barganha dos
trabalhadores, podendo implicar greves. E a disciplina das fábricas
seria algo de que os patrões não estariam dispostos a abrir mão. O texto
de Kalecki, escrito em 1943, prossegue afirmando que o fascismo foi uma
maneira de autorizar as políticas de estímulo ao nível de atividade,
mantendo a disciplina do chão da fábrica.
Essas
características estavam presentes em 2013/14, quando se discutia a
eleição presidencial. O nível de atividade pressionava o chão das
fábricas; as políticas de transferência de renda eram condenadas por
importantes segmentos empresariais e pela classe média, com base em
princípios éticos parecidos com os presentes no texto de Kalecki,
(lembrem-se do “dê uma vara e ensine a pescar”); e o investimento
público aparentava ter pujança para retomar um papel que representou
anteriormente, na década de 1970, quando a mediação autoritária permitia
o convívio de alto grau de atividade e pressão sobre os salários reais,
mantendo elevada desigualdade. No entanto, agora não havia o regime
autoritário para manter a disciplina. Estava montado o cenário para o
início de pregação da doutrina das “finanças saudáveis”. Assim, o
segundo e fragilizado governo Dilma iniciou o caminho à redução do nível
de atividade, mas, para esses líderes da indústria (ou capitães da
indústria, conforme tradução brasileira – por que não coronéis?), não
seria o suficiente.
O
impedimento da presidente se dá, então, sob esse clima e com uma agenda
de mudança por parte da oposição que implica assegurar que não haverá
espaço para outra vez se adotarem políticas anticíclicas no país. Enfim,
olhando o resumo da obra, a ponte para o futuro parece mais um túnel
escuro para aqueles que um dia sonharam com uma sociedade mais
igualitária e sem pobreza. Trata-se de uma ponte para o passado e um
passo para o abismo. Cuidado com a ciclovia que ameaça desabar.
–
1 O documento original está disponível em http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf.
2 Ver documento disponibilizado na página do MPOG, http://www.orcamentofederal.gov.br/orcamentos-anuais/orcamento-2015-2/arquivos-ldo-1/anexo-iii-despesas-obrigatorias-e-ressalvadas.doc/view, que apresenta todas as despesas obrigatórias no orçamento da União.
3 Ver,
por exemplo, Ban, C. Austerity versus Stimulus? Understanding Fiscal
Policy Change at the International Monetary Fund Since the Great
Recession. Governance, 28(4), 2014.
4 Ir ao link para uma versão em português do artigo. http://jornalggn.com.br/noticia/aspectos-politicos-do-pleno-emprego-por-michal-kalecki.
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