Gerson Carneiro: Intolerância fuzila debate
por Gerson Carneiro, especial para o Viomundo
Em um lugar distante há uma casa aonde alguém decretou uma lei que lhe permite, por algum motivo específico, espancar os demais moradores. E o faz publicamente de portas abertas. Inclusive colocou um enorme cartaz na entrada da casa admitindo a tal regra.
Um vizinho, tomando conhecimento do fato porque um filho seu (sabedor da regra da casa vizinha) adentrou à casa e violou a regra, ficou escandalizado. Repudiou em praça pública a prática e alardeou sua denúncia. Porém, no interior do seu lar, e sem oficializar e admitir a adoção da prática do espancamento, o faz, sem nenhum critério, todos os dias, de forma explícita.
Que moral o vizinho delator tem para acusar e repreender o outro?
PS: para não haver distorções, fica desde já combinado que é inquestionável a barbárie do ato em ambas as casas.
Esse quadro me veio à cabeça a propósito dos desdobramentos na internet sobre a execução do traficante brasileiro Marco Archer, na Indonésia, no último final de semana.
De repente, pipocaram opiniões apaixonadas sobre pena capital. Um alarde fervoroso, hipócrita e inútil.
Hipócrita porque todos os textos e opiniões que eu li e ouvi emitidos imediatamente após a confirmação da execução do brasileiro infrator da regra jurídica estrangeira que lhe tirou a vida procuraram primeiramente neutralizar o dolo do réu. Numa tentativa de afastar a responsabilidade dele para o deslinde indigesto do caso, como a preparar o alicerce de suporte da tese de ataque à nação impositora da sanção. A pretensa tese ganharia súbita simpatia quanto mais inocente o réu figurasse. É assim que funciona. Buscaram primeiramente negar o que o réu de forma debochada admitia. Esse é o primeiro ponto da hipocrisia. Hipócrita também porque aqui a campanha é inversa. Demonstrarei adiante.
Aos poucos, foram surgindo textos e opiniões antigos que abalaram a estrutura da estratégia faceira. Até que a ex-ministra dos Direito Humanos, Maria do Rosário, tascou um balde de água gelada no fervor. Via twitter, em 18 de janeiro de 2015, às 13h06min, bingo: “Marco não era herói, era traficante”.
Afirmou o que eu, solitário, perguntava ao vento, desde o início, a razão da não afirmação.
Levantei a lebre três dias antes da manifestação da ex-ministra. Foi às 11h34min de 15 de janeiro de 2015 quando ainda o assunto em voga era o atentado ocorrido em Paris:
– Estão vendo o traficante brasileiro que será executado na Indonésia no próximo sábado? Depois volto a falar sobre o assunto, mas de antemão digo que caberia a ele pesquisar as regras de lá e avaliar o risco. Só um detalhe: aqui, lamenta-se porque a turminha do helicóptero do pó sequer foi indiciada. Gerson Carneiro, no facebook, 15 de janeiro às 11h43min.
Inicialmente houve poucas manifestações quanto à minha declaração.
Comecei a acompanhar a emersão do caso, e proporcionalmente um incomodo foi tomando conta de mim. Às 07h26min de 16 de janeiro de 2015, movido pela curiosidade postei:
– Manchetes dizem ‘um brasileiro’ e não ‘um traficante brasileiro’. Por quê?
Nessa data então, deu-se início à explosão de opiniões contra a pena capital. Cheguei a perguntar se havia um plebiscito do governo da Indonésia consultando os brasileiros. E é aí que entra a inutilidade do clamor de internautas brasileiros pregando contra a pena capital.
Inútil porque o debate travado não tinha em vista a decisão de implantação ou não da pena de morte no Brasil. Não era o caso. E no fervor, defesas simplórias como “só Deus tem o direito de tirar a vida”. Eu até alertei para tomar cuidado ao erguer essa bandeira visto que moramos em um país aonde há pessoas que têm certeza que são Deus.
Outro argumento simplório é o de que “pena de morte não reduz a criminalidade”. Sobre isso, em 17 de janeiro de 2015, escrevi:
– Nem pena de morte, nem alguma das sanções do código penal brasileiro, diminui a criminalidade. A pena de morte é apenas mais uma sanção à infração de uma norma aonde ela, pena de morte, existe. Então esse argumento de que “pena de morte não diminui a criminalidade” embora seja verdadeiro é inócuo ao debate em relação à iminente execução do homem brasileiro condenado na Indonésia. Considero mais eficaz procurar saber que em determinado lugar determinada conduta leva à pena de morte e então ficar longe da encrenca. Nesse momento pouco importa aos detentores do ordenamento jurídico da Indonésia se somos contra ou a favor da sanção adotada por eles.
Em função do emergente assunto “pena capital” muita gente foi embora da minha página no facebook, deixando de me seguir. Mesmo quando ainda eu não tinha manifestado minha posição.
Despertou minha atenção a intolerância de boa parte dos que se apresentaram contrários à pena capital. Passei então a encarar como normalmente encaro, ao meu estilo. Provocando.
– Bateu aquela vontade de ver os Perrelas na Indonésia tentando justificar o helicóptero com 450 quilos de pasta base de cocaína.
– Até um brasileiro não ser a ‘vítima’ a gente não tava nem aí para as leis da Indonésia. #prontoFALEI.
– Precisamos decidir se queremos reclamar da impunidade ou da punidade. Ficar no ‘depende’ não dá.
– O governo brasileiro cumpre um protocolo ao pedir pela vida dos brasileiros presos na Indonésia.
– Muita gente é contra a pena de morte mas é capaz de matar quem é a favor.
Essa última, a minha predileta, foi a mais certeira.
Na minha página no facebook, tomei a decisão de não bloquear ninguém por ser contra ou a favor à pena capital. Dei espaço para todos. Ninguém é obrigado a concordar comigo, mesmo porque não tenho opinião formada sobre esse assunto.
Sei dizer apenas que a pena capital é aplicada de formas diversas. Institucionalizada ou não.
Como posso me posicionar sobre esse tema sendo eu intolerante? Se me posicionar contra, entro em contradição por minha intolerância; do contrário a minha intolerância por si me denunciaria. Logo, é tema para ser debatido por tolerantes.
Quanto ao fundamento ao repúdio à pena capital, a civilidade como justificativa a ser contra, a mim não basta, pois a civilidade que a mim a humanidade apresenta, a mim não é satisfatória.
Nesse dilema, e sem me decidir, fui acusado de repetir o discurso da Sheherazade. Comparado ao Bolsonaro. Disseram que eu disse o que eu não disse.
Enfim…fui até insultado por um dono de um blog, no seu blog, por contrariá-lo civilizadamente com meus questionamentos, no tema proposto por ele, com a intenção de promover debate de ideias, supunha. Uma aula de intolerância ministrada por mestres da intolerância que se apresentam contra a pena capital.
Na França ocorreu algo semelhante. Se a pessoa não era Charlie imediatamente recebia a sentença de que defendia terroristas. No Brasil se a pessoa não é Marco Archer recebeu a sentença de que defende pena capital.
A conclusão a que chego é que não temos preparo para debater o que quer que seja. O que deveria ser debate se transforma logo em guerra entre quem concorda e quem discorda, atingindo os indecisos.
Um circo de hipocrisia.
Uma das alegações apresentadas nessa muvuca ideológica pelos que se apresentaram contra a pena capital foi a de que “a vida tem valor acima de qualquer coisa”. No entanto, não me canso de ver grupos de policiais em frente a bancos prontos para matar sumariamente quem atentar contra o dinheiro do estabelecimento.
Se a quantidade de dinheiro no banco for exatamente à que se paga na Indonésia por 13,4 quilos de cocaína, quantitativamente estaremos diante de delitos equivalentes.
Imaginemos que um indonésio venha ao Brasil voar de asa delta e, movido pelo espírito de aventura, resolva intentar, pela primeira vez em sua vida (como conjecturou-se ser o caso do Marco Archer), contra um banco (isso porque não quero lembrar que o risco de morte é o mesmo se o cofre do Banco estiver vazio). Oras, o risco de morte que ele estará sujeito, é proporcional ao risco de morte de um brasileiro que ouse violar na Indonésia a regra lá definida como passível de punição por pena capital.
O que então autoriza a aplicação da pena capital para o delito cometido aqui e repudiar a aplicação da pena capital, aplicada seguindo um processo legal, para o delito cometido na Indonésia?
Parece delírio minha proposição? Concordo. Parece. Mas há pouco também parecia delírio a execução de brasileiro na Indonésia.
Se não considerarmos hipóteses, corremos o risco de lamentarmos os fatos.
Não são poucos os estrangeiros que vêem a passeio ao Brasil e são vitimados por nossa violência urbana que não conseguimos resolver.
Do imaginário para a realidade.
Enquanto fuzilavam a Indonésia, um surfista em Santa Catarina perdeu a vida, assassinado sumariamente por um policial que lhe desferiu dois tiros no peito, à queima roupa, por estar sendo também questionado. Mais uma morte bárbara de autoria de um policial a entrar na contabilização de tantas outras que contribuíram tristemente para tirar a estupidez assassina da condição de exceção e, infelizmente, inseri-la no estado de normalidade.
Campanha contra pena capital, válida somente para país distante.
Aqui, a campanha é outra. O deputado federal Fernando Francischini (PR-Solidariedade) compareceu a um programa de TV, exibindo arma na cintura.
Não aceito a simples alegação de que “ele tem prerrogativa para andar com arma na cintura” como verdade inquestionável. O exibicionismo não tem justificativa plausível. Passa a mensagem inversa ao pretenso repúdio da campanha contra a pena capital, ou seja, é apologia ao que por um instante circunstancial pretendeu-se repudiar.
Daí, reside minha contrariedade e meu inconformismo com a explosão de manifestações contra a pena capital. O que no meu entender não me torna automaticamente a favor. Pois não discuto o mérito da gravidade e do cabimento da adoção de tal medida, mas sim o fato de que praticamos o que pretensamente condenamos.
Se não somos exemplo, não podemos cobrar absolutamente nada da Indonésia. Precisamos antes resolver nosso dilema interno. Se somos de fato contra a pena capital precisamos acabar com a matança indiscriminada aqui no Brasil (segundo a publicação oficial Mapa da Violência, a cada ano no Brasil, uma população acima de 50 mil pessoas é dizimada vítima da nossa violência urbana). Depois, sim, teremos moral para cobrar alguma coisa de quem quer que seja.
“Não quero estar sendo mau, moralista ou banal. Aqui está o que me afligia.” – Acima do Sol – Skank.
Nenhum comentário:
Postar um comentário