Uma bela e justa homenagem à luta de Eunice Paiva
Bela e justa homenagem o escritor Marcelo Rubens Paiva prestou no fim de semana, em sua crônica “Trabalhando o sal”, publicada no jornal O Estado de S.Paulo, à sua mãe, Eunice Paiva. Mulher pouco conhecida pelo Brasil, Eunice é merecedora de reconhecimento pela luta que travou para descobrir o que aconteceu ao marido, o ex-deputado Rubens Paiva.
Os jornalistas, as comissões da verdade, os órgãos de defesa dos direitos humanos e todos mais envolvidos nesse área e nesse caso terminaram indo na esteira do que ela descobriu enquanto teve possibilidades – e descobriu tudo, da entrada de Rubens nos porões do DOI-CODI-Rio à tortura que lhe foi infringida e o matou.
“A cara de Eunice continuou molhada…a água não era mais do mar”
Marcelo começa sua crônica com a transcrição de uma coluna publicada por Antônio Callado em 1995 na Folha, em que o escritor diz: “(…) Outra recordação que me ficou nítida liga-se a Búzios. Ali fui, num fim de semana de 1971… Quando paramos a uns 100 metros da praia, vimos alguém, uma moça, que nadava firme em nossa direção. Minutos depois subia a bordo, cara alegre, molhada do mar, Eunice Paiva, mulher do deputado Rubens Paiva, amigo de Renato, amigo meu, de todos nós, um dos homens mais simpáticos e risonhos que já conheci. ”
“Eunice andara preocupada. Rubens fora detido pela Aeronáutica dias antes e nenhuma notícia sua tinha chegado à família. Mas agora Eunice, que fora também presa, mas em seguida libertada, podia respirar, tranquila, podia nadar em Búzios, tomar um drinque com os amigos, pois acabara de estar com o ministro da Justiça, ou da Aeronáutica, que lhe havia garantido que Rubens já tinha sido interrogado, passava bem e dentro de uns dois dias estaria de volta a sua casa.”
“Dois dias depois, isto sim, os jornais recebiam uma notícia tão displicente que se diria que seus inventores não faziam a menor questão que fosse levada a sério: Rubens estaria sendo transferido de prisão, num carro, quando guerrilheiros que tentavam libertá-lo tinham atacado e sequestrado o prisioneiro. O que correu pelo Rio, logo que se suspeitou de sua morte, é que ele morrera às mãos, ou pelo menos de tortura diretamente comandada pelo brigadeiro João Paulo Penido Burnier, aquele mesmo que queria fazer explodir o gasômetro do Rio para pôr a autoria do crime na conta dos comunistas. A família Paiva nunca mais teve notícias oficiais de Rubens (…). A cara de Eunice continuou molhada e salgada durante muito tempo, tal como naquela manhã de Búzios. A água é que não era mais do mar”.
Um estranho agradecimento
Marcelo conta de quando leu a crônica de Callado para a mãe e pula para 1996 quando ele e ela compareceram ao cartório na Praça da Sé. Foram apanhar o atestado de óbito lavrado nos termos do Artigo 3.º da Lei 9.140 de 4 de dezembro de 1995, que possibilitava o reconhecimento da morte de Rubens, ainda que seu corpo jamais tenha sido encontrado. “Meu pai morria pelos termos da Lei 9.140, 25 anos depois de ter morrido por tortura”, diz Marcelo em sua coluna deste sábado.
Depois ele faz um “estranho” – como ele próprio reconhece – agradecimento aos militares da ditadura e uma revelação que é bem a síntese do espírito e do comportamento de Eunice Paiva.”Tenho um estranho agradecimento a fazer aos militares brasileiros: obrigado por não terem matado também a minha mãe.”
A revelação, Marcelo faz quando fala sobre a saída do cartório.”Ela (a mãe) sorriu, falou com a imprensa e ergueu o atestado de óbito como um troféu. Foi naquele momento que descobri: ali está a verdadeira heroína da família, sobre ela que escritores devem escrever, se a História é a narrativa dos vencedores, a literatura é a versão dos vencidos (Nicolau Sevcenko). V de vitória. Nunca faria uma cara triste. Bem que tentaram.”
A verdadeira heroína da família
“Por anos – prossegue Marcelo Paiva – fotógrafos nos queriam tristes. Deflagramos uma batalha contra o pieguismo da imprensa. Sim, éramos a família modelo vítima da ditadura, mas não faríamos o papelão de sairmos tristes nas fotos. Nosso inimigo não iria nos derrubar. Guerra é guerra. Minha mãe deu o tom: a família Rubens Paiva não chora em frente às câmeras, não faz cara de coitada, não se faz de vítima. A família Rubens Paiva não é a única vítima da ditadura. Esteve em guerra contra ela desde o primeiro dia. O País é a maior vítima. O crime foi contra a humanidade, não contra Rubens Paiva. Nossa luta não tem fim (…). A angústia, as lágrimas, o ódio, apenas entre quatro paredes.”
Os que conhecem Eunice Paiva sabem que ela é exatamente isto. E que foram esses caráter, força, serenidade e coragem que lhe possibilitaram enfrentar completamente desarmada uma ditadura à procura do marido, em busca da verdade do que lhe acontecera, mesmo em meio a ameaças, a incompreensão de muitos que a queriam mais radical na luta, a chantagem de canalhas que lhe cobravam até dinheiro oferecendo em troca promessas de que a levariam à cova de Rubens Paiva – jogo no qual ela nunca entrou.
Em tempo: O “ministro da Justiça, ou da Aeronáutica” que recebeu Eunice e a que se refere Callado em sua crônica era o da Justiça de Médici, Alfredo Buzaid, ministro dos anos de chumbo do regime. Um homem que não sorria. Ele prometeu levar o pedido de Eunice, de localização de Rubens Paiva, ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), um dos poucos órgãos que se reunia naqueles anos que contava com um representante da oposição, um parlamentar do MDB.
Maria Eunice Beyrodt de Paiva é a “Maria” da música “O bêbado e a equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc. “Choram Marias e Clarices…” – Clarice Herzog, viúva de Vladimir Herzog.
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