Observadores de ilusões
Por Luciano Martins Costa
A observação crítica, regular e prolongada, da imprensa, pode produzir
uma situação ainda não descrita pelos estudiosos da mente humana, mas
que tem potencial para batizar uma dessas síndromes de comportamento que
as entidades da psicologia eventualmente reconhecem e catalogam.
Trata-se de um estado no qual o observador se descobre tão distante
daquilo que é apresentado pelo noticiário, que chega a se considerar um outsider, um excluído da compreensão geral do mundo midiatizado. Como alguém que persegue fantasmas.
Veja-se, por exemplo, relato publicado na edição de sexta-feira (21/2) pelo Globo:
diz o jornal carioca que o ex-governador de São Paulo José Serra anda
fazendo análises da situação econômica do Brasil que contrariam
frontalmente a visão alardeada pelo seu partido, o PSDB, e reproduzida
zelosamente pela imprensa. Diz o Globo que, durante
teleconferência com consultores financeiros, na quinta-feira (20), Serra
declarou que não vê nenhuma circunstância “calamitosa” nem “descontrole
inflacionário e fiscal” no horizonte brasileiro.
Referindo-se às projeções para o crescimento econômico em 2014, Serra
confrontou o que tem sido alardeado pelo senador Aécio Neves, provável
candidato de seu partido à Presidência da República, ao dizer que o
Produto Interno Bruto – que seus correligionários e a imprensa chamam de
“pibinho” – não chega a ser uma “tragédia”. Para o ex-governador, “o
PIB por habitante, se crescer 2% este ano, em termos per capita vai ser
da ordem de 1,2%. Não é um desempenho negativo”, afirmou, dizendo em
seguida não considerar isso “nada brilhante, nada desastroso”.
Habituado ao discurso hegemônico dos jornais, sempre reproduzindo a
visão catastrofista segundo a qual a política econômica com forte
protagonismo do Estado estaria conduzindo o país para o abismo, o leitor
atento e crítico do noticiário haverá de produzir aquela pergunta
cândida: mudou a economia ou foi Serra que mudou?
Tido por muitos como um economista talentoso, José Serra teria, afinal,
se despido do discurso de candidato, obrigando-se a elaborar uma
análise mais fria e menos partidária da realidade econômica?
Sem faro ou sem interesse
Essa pergunta só pode ser respondida pelo próprio personagem, e ele
terá certamente muitos olhos e ouvidos dispostos a colher suas palavras,
uma vez que sempre contou com inteira disponibilidade dos jornalistas –
o certo seria usar a expressão subserviência. Mas o pensamento
controverso de José Serra e sua surpreendente sinceridade são questões
de foro íntimo, possivelmente desbloqueadas por sua condição de
não-candidato.
Mas o que nos move aqui é a observação da imprensa. Fica, então, o
observador diante da seguinte possibilidade: tendo, ao longo das duas
últimas décadas, rezado em voz alta pela cartilha econômica do
ex-governador, ex-senador e ex-ministro, será que os jornais vão rever
sua visão da realidade brasileira?
Registre-se, por exemplo, que, se os indicadores econômicos não são uma
tragédia, como repete diariamente a imprensa, os indicadores sociais
apontam para uma evolução constante do bem-estar da maioria dos
brasileiros, com o aumento da renda dos trabalhadores, a diminuição da
pobreza e a redução da desigualdade.
O que teria impedido os outros dois jornais de circulação nacional de
abrigar a nova visão de José Serra? Difícil acreditar que nem mesmo os
supostamente bem informados colunistas de economia da Folha e do Estado de S.Paulo
ignoravam a manifestação surpreendente do ex-governador – é mais
provável que os editores dos dois jornais paulistas tenham considerado
mais conveniente omitir essa informação de seus leitores.
Se, em uma hipótese, dois dos maiores jornais do país não são capazes
de captar um episódio tão marcante quanto a surpreendente análise de um
dos mais radicais opositores do modelo econômico vigente desde 2003, é
de se suspeitar que a imprensa anda perdendo o faro.
Se, na outra hipótese, o observador concluir que os dois jornais
tiveram acesso à manifestação de Serra mas resolveram omiti-la de seus
leitores, que importância teria, afinal, a imprensa na formulação das
opiniões?
Em ambos os casos, fica a desconfortável sensação de que estamos todos -
leitores atentos e críticos – tentando entender uma ilusão, uma coisa
que não existe de fato.
Há fortes indícios de que a chamada grande imprensa brasileira largou o jornalismo em algum lugar por aí
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