Blog do Marcelo Semer
Não foi surpresa que logo após o comentário em que deu status de
legítima defesa a justiceiros, a jornalista Rachel Sheherazade tenha
tido a oportunidade de escrever artigo no espaço mais nobre de um grande
jornal.
Foi vociferando a altos brados, contra todas as formas de
‘esquerdismo’, sem sutilezas nem decoros, que Reinaldo Azevedo ganhou o
status de colunista nesse mesmo diário.
Lobão foi guindado a uma revista semanal depois que minimizou a
tortura dos anos de chumbo, desprezando quem se disse vítima por ter
tido “umas unhazinhas arrancadas”.
Diogo Mainardi pulou da revista para a TV a cabo, apelidando semanalmente o presidente de anta.
Até humoristas que se orgulham de ser politicamente incorretos,
sobretudo com o mais vulnerável, vêm emplacando programas próprios na
telinha.
Se alguém ainda tinha dúvidas, elas estão sendo dissipadas: o reacionário está definitivamente na moda.
Não há veículo da grande imprensa que não tenha hoje um ou mais
comentaristas dispostos a tirar o expectador da ‘zona de conforto’, e
destilar o mais profundo catastrofismo, enquanto estimula a ira e
despreza a dignidade humana em nome de uma hipotética Constituição de um
único artigo: a liberdade de expressão absoluta.
Tamanha reação do conservadorismo extremo, pelos novos ícones da
classe média, poderia indicar que, de alguma forma, o país anda no
caminho certo.
Nenhuma redução de desigualdade, seja ela econômica, social,
racial, de gênero ou orientação sexual, passa incólume à reação.
Tradição e privilégios jamais se rendem sem resistência.
Mas há dois componentes neste jogo que complicam a equação e nos aproximam da intolerância.
Primeiro, o fato de que o catastrofismo sem limites, o derrotismo
por princípio e o esforço de detonar o Estado de todas as formas e sob
todas as forças, produz uma inequívoca sensação de que estamos sempre à
beira do abismo. Mesmo quando evoluímos.
A estabilidade política é desprezada, sufocada pela ideia que
resume toda política em corrupção –mas que, inexplicavelmente, considera
o corruptor apenas uma vítima do sistema que patrocina.
Todo mal reside nos políticos, nos partidos, enfim no Estado –nunca no mercado ou nos mercadores.
A maior autonomia dos órgãos de investigação e a independência dos
operadores do direito, somadas ao fim da censura, têm ligação direta com
esse mal-estar da liberdade: a democracia não é pior por que produz
mais monstros, apenas mais incômoda porque é impossível escondê-los.
O derrotismo desproporcional, que remete toda e qualquer política à
vala comum, acaba por conferir a violência foros de alternativa.
A criminalização da política é, assim, uma poderosa vitamina da
intolerância. E seus responsáveis são justamente aqueles que mais bradam
contra a violência que ao mesmo tempo estimulam.
Mas não é só.
A política também tem perdido seu prestígio por estar sendo sepultada pelo fator eleitoral.
O pragmatismo sem freios destroça ideologias, pensamentos e valores
e é um consistente obstáculo ao avanço civilizatório. Quando o poder é
mais relevante que a política, os fins sempre servem para justificar
meios.
A rendição à pauta religiosa, de governos e oposições, é um
sintomático reflexo desse excesso de pragmatismo que comprime o espaço
republicano.
A submissão rala à pauta punitiva, que ameaça inserir o país na
lógica de um Estado policial, é outro indício. Como o instrumento penal é
sempre seletivo, mais repressão significará mais desigualdade.
Esvaziar a política nunca é uma tarefa prudente, menos ainda quando
o canto da sereia do reacionarismo está cada vez mais afinado.
Há 50 anos, nossa democracia foi estuprada por militares que deram
um golpe, civis que o financiaram e reacionários que o justificaram,
inclusive e fortemente na imprensa.
Que a efeméride, ao menos, nos mantenha vigilantes.
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