Do Valor
Por Antonio Delfim Netto
A frase de Horácio "Est modus in rebus, sunt certi denique fines"
("Há uma medida em todas as coisas, existem afinal certos limites") vem
à mente quando tomamos conhecimento do "Monetary Policy Report "de 11/2
do Fed para o Congresso dos EUA. No mesmo dia, na sua primeira
exposição à instituição, a nova "chairwoman", Janet Yellen, agradou o
auditório. Falou o que ele queria ouvir.
Disse que a política monetária do Fed, o
banco central americano, objetiva apenas os interesses soberanos dos
EUA e procura cumprir a sua missão legal. Nas suas palavras: "Estou
comprometida a cumprir as duas partes do nosso mandato: ajudar a
economia a retornar ao pleno emprego (taxa de desemprego abaixo de 6,5%)
e a taxa de inflação a 2%, assegurando que ela não vai,
persistentemente, estar acima ou abaixo desse nível".
Yellen acrescentou que "o desemprego vai
continuar a cair até o seu nível sustentável no longo prazo e a taxa de
inflação caminhará para os 2%". E - de passagem - afirmou que
"estivemos olhando de perto a recente volatilidade dos mercados
financeiros globais. Nosso sentimento é que neste momento ela não coloca
nenhum risco substancial para as perspectivas econômicas dos EUA".
Mas mandou um claro recado. Se
continuarem as expectativas das condições do mercado de trabalho e da
taxa de inflação que indiquem a convergência para os objetivos de longo
prazo, "o Fomc provavelmente variará o valor das compras de ativos com
adequados movimentos no futuro". As compras, portanto, não têm um valor
pré-fixado.
Talvez seja presunção, mas não resisto à
tentação de pensar que a expressão "de passagem" e a provocação contida
no enigmático capítulo do "Monetary Policy Report" são uma espécie de
vingança. Respondem ao incômodo produzido pelas consequências da
política monetária do Fed denunciadas na "guerra cambial" anunciada pelo
ilustre ministro Mantega.
O título do capítulo é "Estresse
Financeiro e Vulnerabilidade nas Economias Emergentes". Trata-se de
opinião servida como boa ciência: classifica o Brasil como o mais
vulnerável dos emergentes, depois da Turquia.
Quais são os ingredientes do estudo
"científico"? Indicadores que fazem sentido: 1) a relação déficit em
conta corrente/PIB; 2) a relação dívida interna bruta/PIB; 3) a taxa
anual de inflação nos três últimos anos; 4) a variação nos últimos cinco
anos do crédito bancário ao setor privado/PIB; 5) a relação entre
dívida externa total/exportações anualizadas; e 6) a relação reservas
internacionais/PIB, mas não se oferece a receita de como eles foram
combinados num único indicador.
Como cada um foi "ponderado"
(subjetivamente?) na construção do tal índice e qual era o seu estado
(com relação ao passado)? Por exemplo: a bancarização de 20% para 50% do
crédito ao setor privado com relação ao PIB num país é a mesma coisa
que um aumento de 80% para 200% em outro? Só sabemos que, no índice dos
15 países da amostra, Taiwan tem nota 4 e a Turquia nota 12,5, pior do
que o Brasil, que recebeu nota 12.
Construídos os índices, eles são
comparados graficamente com o grau de desvalorização da moeda de cada
país no período de 30/4/2013 a 6/2/2014. "Aparece" uma relação que,
obviamente, está longe de ser causal (como se sugere implicitamente): o
aumento do índice de vulnerabilidade arbitrado determinaria a magnitude
da desvalorização. É evidente que estamos adicionando mais um
ingrediente subjetivo e arbitrário ao confuso problema: a escolha das
datas. Mesmo dentro do intervalo, outras escolhas produziriam resultados
diferentes.
Não há nada de "ciência" no capítulo do
tal "Monetary Report". Mas, como a opinião das agências de rating, ele
gerará expectativas e terá consequências, principalmente porque é
escrito em inglês e, supostamente, por algum Ph.D do Fed! É preciso ler
com cuidado alguns dos seus argumentos para reconhecer que eles variam
diariamente.
A grande dúvida é que não se explicita a
pergunta fundamental: "vulnerabilidade" com relação a quê? A um
"default"? A uma crise no balanço em conta corrente? À perspectiva de
uma tragédia fiscal? A ameaça de um surto inflacionário? A uma "parada
súbita" do movimento de capitais? E, afinal, a flutuação do câmbio é um
ajuste ou um pecado na política de câmbio flutuante? Não sei se é
verdade, mas, se o presidente Tombini reclamou a Yellen da
irresponsabilidade do Fed ao dar palpites fingindo ser "ciência", fez
muito bem.
Seria ridículo concluir, por outro lado,
que estamos numa situação cômoda. Não estamos! Crescemos muito pouco
devido à enorme desconfiança entre o setor empresarial e o governo. A
política fiscal é problemática e a relação dívida bruta/PIB muito alta.
Não adianta insistir na dívida líquida/PIB, porque ela não reflete o
esforço fiscal.
Programas de incentivo e subsídios
custosos e pouco eficientes apenas adiaram o reconhecimento da inflação
subjacente. No tempo do "vento de popa" não fizemos as reformas
necessárias. No tempo do "vento de proa" até fizemos algumas (caderneta
de poupança, previdência do funcionalismo), mas foi só!
Felizmente, a flutuação cambial
suavizada, que aparentemente nos "vulnerabiliza", está funcionando. É
uma questão de tempo até que as exportações industriais voltem a ser uma
alavanca do crescimento. Seria mais ridículo, ainda, supor que estamos à
beira de um colapso e aceitar que somos a segunda economia mais
"vulnerável" do mundo...
Antonio Delfim Netto é professor
emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.
Escreve às terças-feiras
E-mail: contatodelfimnetto@terra.com.br
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