Quarta, 26 de fevereiro de 2014
Ideologias nas eleições
"Se no primeiro turno houver candidatos viáveis para encarnar
ao menos três das quatro grandes ideologias políticas contemporâneas,
não será uma escolha entre "a esquerda e os liberais". E se houver
segundo turno, nada garante que a esquerda estatista (com Dilma ou Lula)
terá mais uma vez o privilégio de enfrentar o candidato apoiado pela
direita libertária. É verdade que dificilmente poderia ter pela frente
algum dos crentes da direita estatista, pois, nesta conjuntura, não
parecem suficientemente numerosos os eleitores com essa inclinação. Mas
não há como excluir a possibilidade de que Dilma (ou Lula) enfrente em segundo turno um prócer da esquerda libertária, caso Campos assuma esse papel", escreve José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP, em artigo publicado pelo jornal Valor, 25-02-2014.
Eis o artigo.
Será que no pleito para presidente deste ano o eleitorado rachará entre 'a esquerda e os liberais', como creem quase todos os empresários e seus economistas? Ou será que esse "cara ou coroa" pode ser entendido como ingênua manifestação daquela tosca dualidade entre o mal e o bem, difundida na Antiguidade tardia por um profeta cristão, de origem iraniana, conhecido por Maniqueu?"
As evidências em favor da segunda opção foram muito bem sistematizadas pelo mais notável liberal latino-americano: o primeiro marquês de Vargas Llosa. Especialmente ao dizer que os responsáveis pela degeneração do liberalismo são os convencidos de que ele equivale a uma doutrina essencialmente econômica, que enxerga o mercado como panaceia para a solução dos problemas sociais.
Como o inverso do liberalismo é a valorização da hierarquia dirigista e estatista - postura que está muito longe de ser monopólio da esquerda - mistura alhos com bugalhos esse maniqueísmo esquerda/liberais. Essencialmente porque a escala que vai da esquerda à direita é função do grau de valorização da igualdade e da solidariedade, enquanto a que vai do estatismo ao liberalismo depende do grau de valorização da autonomia e da liberdade.
Não é por acaso que estudos científicos sobre ideologias políticas tratam essas duas escalas como eixos perpendiculares, que engendram quatro âmbitos em vez de dois. Boa ilustração está no teste proposto pelo website www.politicalcompass.org em que a contradição esquerda/direita aparece no eixo das abscissas e a estatista/libertária no das ordenadas, graduando em quadrantes todas as possíveis combinações (pares ordenados). Os da esquerda e da direita estatistas e os da esquerda e da direita libertárias.
Há amplas áreas de diálogo e colaboração ao longo de quatro fronteiras: as que aproximam as duas esquerdas e as duas direitas, é óbvio, mas também as que aproximam estatistas de esquerda e de direita, assim como libertários de esquerda e de direita. Nada de parecido acontece, todavia, com os quadrantes sem fronteiras, opostos nas diagonais, que revelam os dois cruciais anátemas: entre esquerda estatista e direita libertária, e entre direita estatista e esquerda libertária.
Esse modelinho ajuda a entender por que, no primeiro turno das eleições presidenciais de 2010, Dilma e Serra abjuraram valores que os fizeram petista e tucano para aceitar a ajuda de ladinos coligados na disputa pelo devoluto manancial de votos da direita estatista, então incapaz de apresentar candidato viável. Na diagonal, o azarão Marina Silva, com nenhuma capilaridade organizacional, ínfimos tempos no horário gratuito de TV e de rádio - e até vítima da pecha de "conservadora" porque evangélica - demonstrou capacidade de atrair imensa parcela do eleitorado que se identifica com os valores da esquerda libertária.
A probabilidade de que algo similar se reproduza no primeiro turno deste ano esbarra em duas imensas incógnitas. A principal é saber se a direita estatista terá candidato capaz de explorar o espaço que em 2010 foi palco dos mais acirrados duelos entre as coligações lideradas por petistas e tucanos. Depois da esquisita deserção do deputado federal Ronaldo Caiado (DEM/GO), surge a postulação do senador Magno Malta (PR-ES), ao lado da já antiga pré-candidatura do pastor Everardo Pereira, do PSC. Mas tais legendas parecem preferir apostar na expansão de suas boquinhas no governo Dilma.
A segunda dúvida é sobre o grau de sucesso que poderá obter o dissidente Eduardo Campos na sedução dos vinte milhões de eleitores que em 2010 optaram por Marina Silva, pois é provável que também faça das tripas coração para cativar os eleitorados "diagonais" do PSB nos grandes colégios: parte no âmbito da esquerda estatista, muito mais atraída por candidatos do PT, e parte no da direita libertária, muito mais simpática a candidatos do PSDB.
De todo modo, se no primeiro turno houver candidatos viáveis para encarnar ao menos três das quatro grandes ideologias políticas contemporâneas, não será uma escolha entre "a esquerda e os liberais". E se houver segundo turno, nada garante que a esquerda estatista (com Dilma ou Lula) terá mais uma vez o privilégio de enfrentar o candidato apoiado pela direita libertária. É verdade que dificilmente poderia ter pela frente algum dos crentes da direita estatista, pois, nesta conjuntura, não parecem suficientemente numerosos os eleitores com essa inclinação. Mas não há como excluir a possibilidade de que Dilma (ou Lula) enfrente em segundo turno um prócer da esquerda libertária, caso Campos assuma esse papel.
Esse é o contexto do imbróglio sobre as chapas estaduais da coligação que está se formando em torno do PSB. A depender dos desfechos de algumas das escaramuças, esse bloco acabará por se apresentar como uma ambígua sublegenda, o que solapará a candidatura presidencial de Eduardo Campos, além de condenar a esquerda libertária à desgraça que se abateu sobre a direita estatista em 2010: ficar sem candidato.
Eis o artigo.
Será que no pleito para presidente deste ano o eleitorado rachará entre 'a esquerda e os liberais', como creem quase todos os empresários e seus economistas? Ou será que esse "cara ou coroa" pode ser entendido como ingênua manifestação daquela tosca dualidade entre o mal e o bem, difundida na Antiguidade tardia por um profeta cristão, de origem iraniana, conhecido por Maniqueu?"
As evidências em favor da segunda opção foram muito bem sistematizadas pelo mais notável liberal latino-americano: o primeiro marquês de Vargas Llosa. Especialmente ao dizer que os responsáveis pela degeneração do liberalismo são os convencidos de que ele equivale a uma doutrina essencialmente econômica, que enxerga o mercado como panaceia para a solução dos problemas sociais.
Como o inverso do liberalismo é a valorização da hierarquia dirigista e estatista - postura que está muito longe de ser monopólio da esquerda - mistura alhos com bugalhos esse maniqueísmo esquerda/liberais. Essencialmente porque a escala que vai da esquerda à direita é função do grau de valorização da igualdade e da solidariedade, enquanto a que vai do estatismo ao liberalismo depende do grau de valorização da autonomia e da liberdade.
Não é por acaso que estudos científicos sobre ideologias políticas tratam essas duas escalas como eixos perpendiculares, que engendram quatro âmbitos em vez de dois. Boa ilustração está no teste proposto pelo website www.politicalcompass.org em que a contradição esquerda/direita aparece no eixo das abscissas e a estatista/libertária no das ordenadas, graduando em quadrantes todas as possíveis combinações (pares ordenados). Os da esquerda e da direita estatistas e os da esquerda e da direita libertárias.
Há amplas áreas de diálogo e colaboração ao longo de quatro fronteiras: as que aproximam as duas esquerdas e as duas direitas, é óbvio, mas também as que aproximam estatistas de esquerda e de direita, assim como libertários de esquerda e de direita. Nada de parecido acontece, todavia, com os quadrantes sem fronteiras, opostos nas diagonais, que revelam os dois cruciais anátemas: entre esquerda estatista e direita libertária, e entre direita estatista e esquerda libertária.
Esse modelinho ajuda a entender por que, no primeiro turno das eleições presidenciais de 2010, Dilma e Serra abjuraram valores que os fizeram petista e tucano para aceitar a ajuda de ladinos coligados na disputa pelo devoluto manancial de votos da direita estatista, então incapaz de apresentar candidato viável. Na diagonal, o azarão Marina Silva, com nenhuma capilaridade organizacional, ínfimos tempos no horário gratuito de TV e de rádio - e até vítima da pecha de "conservadora" porque evangélica - demonstrou capacidade de atrair imensa parcela do eleitorado que se identifica com os valores da esquerda libertária.
A probabilidade de que algo similar se reproduza no primeiro turno deste ano esbarra em duas imensas incógnitas. A principal é saber se a direita estatista terá candidato capaz de explorar o espaço que em 2010 foi palco dos mais acirrados duelos entre as coligações lideradas por petistas e tucanos. Depois da esquisita deserção do deputado federal Ronaldo Caiado (DEM/GO), surge a postulação do senador Magno Malta (PR-ES), ao lado da já antiga pré-candidatura do pastor Everardo Pereira, do PSC. Mas tais legendas parecem preferir apostar na expansão de suas boquinhas no governo Dilma.
A segunda dúvida é sobre o grau de sucesso que poderá obter o dissidente Eduardo Campos na sedução dos vinte milhões de eleitores que em 2010 optaram por Marina Silva, pois é provável que também faça das tripas coração para cativar os eleitorados "diagonais" do PSB nos grandes colégios: parte no âmbito da esquerda estatista, muito mais atraída por candidatos do PT, e parte no da direita libertária, muito mais simpática a candidatos do PSDB.
De todo modo, se no primeiro turno houver candidatos viáveis para encarnar ao menos três das quatro grandes ideologias políticas contemporâneas, não será uma escolha entre "a esquerda e os liberais". E se houver segundo turno, nada garante que a esquerda estatista (com Dilma ou Lula) terá mais uma vez o privilégio de enfrentar o candidato apoiado pela direita libertária. É verdade que dificilmente poderia ter pela frente algum dos crentes da direita estatista, pois, nesta conjuntura, não parecem suficientemente numerosos os eleitores com essa inclinação. Mas não há como excluir a possibilidade de que Dilma (ou Lula) enfrente em segundo turno um prócer da esquerda libertária, caso Campos assuma esse papel.
Esse é o contexto do imbróglio sobre as chapas estaduais da coligação que está se formando em torno do PSB. A depender dos desfechos de algumas das escaramuças, esse bloco acabará por se apresentar como uma ambígua sublegenda, o que solapará a candidatura presidencial de Eduardo Campos, além de condenar a esquerda libertária à desgraça que se abateu sobre a direita estatista em 2010: ficar sem candidato.
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