quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

A DITABRANDA DA FOLHA.

Igor Ribeiro

Portal Imprensa

Uma discussão importantíssima ocorreu na semana passada pelas páginas do "Painel do leitor", do jornal Folha de S.Paulo e, aos mais desavisados, vale recapitular. O motivo inicial foi a utilização de uma terminologia duvidosa num editorial do dia 17 de fevereiro para se referir ao regime militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985. No referido texto, o jornal defendia que, apesar da recente vitória de Hugo Chávez no referendo sobre a reeleição presidencial ilimitada, o líder venezuelano começará a enfrentar uma oposição mais sólida.

Em determinado trecho, ao estabelecer comparações entre os regimes autoritários contemporâneos e aqueles que dominaram a América Latina em meados do século passado, referiu-se à experiência brasileira como "ditabranda", dando a entender que foi comparativamente menos violenta do que outros regimes similares. Com um trocadilho exótico, pouco fundamentado e num espaço nobre do jornal - os editoriais da página dois - era de se esperar a indignação dos leitores que se sucedeu. O anormal veio depois...

Aqui vale um pequeno parêntesis. Após defender o golpe de 1964 e sofrer duras conseqüências dessa posição - desde ataques de grupos de esquerda até a censura rígida durante os anos de chumbo -, a Folha procurou se redimir apoiando incisivamente o movimento das Diretas Já. Acertadas as contas com a sociedade, o Grupo Folha se notabilizou pelo projeto inspirado no jornalismo estadunidense moderno que, por um lado, ditava uma rigorosa assepsia ideológica e forte comprometimento democrático e, por outro, deixava o jornal à mercê do liberalismo econômico e das leis de mercado. O resultado dessa fórmula o Brasil inteiro sabe: a Folha de S.Paulo se tornou o jornal de maior circulação do país.

O passado nem sempre glorioso ficou na história e, dentro da nova realidade, o jornal deu voz à pluralidade e ao bom senso. O debate democrático ganhou corpo com a participação recorrente de personalidades dos mais variados matizes ideológicos, fosse enquanto pauta, fosse enquanto colaborador. A opinião da direção do grupo manteve o espaço na página dois e caracterizou-se, fundamentalmente, por uma posição de centro-esquerda, ora cambaleante para a direita, mas sempre avessa a extremos. A fisionomia da direção do jornal nunca foi, portanto, tão explícita quanto a de outros grandes concorrentes nacionais, como O Estado de S. Paulo e O Globo. Sabia-se, sim, que Otávio Frias de Oliveira (1912-2007) era o norte intelectual e administrativo daquele jornal. Ele próprio sempre sóbrio, avesso à politicagem mercadológica, mas muito consciente do poder social que possui um grande catalisador da opinião pública como a Folha. Fecho os parêntesis.

Usar o termo "ditabranda", portanto, em nada surpreende a quem acompanha essa linha editorial inquieta do jornal. Foi uma queda à direita, entre tantas outras que a opinião da página dois já teve. O caráter plural do jornal se manteve ao publicar, nos dias seguintes, diversas cartas contra ou a favor do termo, favorecendo assim um livre debate sobre esse nebuloso período histórico brasileiro.

O que surpreendeu, porém - o aspecto "anormal", como dito anteriormente - foi uma das respostas da redação a duas cartas na sexta-feira, no dia 20 de fevereiro. Entre os diversos leitores que debateram o assunto, estavam Maria Victoria de Mesquita Benevides e Fábio Konder Comparato, acadêmicos com destacado trabalho sobre direitos humanos no Brasil e no exterior. Em textos inflamados, é verdade, questionaram enfaticamente o termo utilizado pela Folha. Esta, por sua vez, respondeu, por meio de "Nota da Redação":

"A Folha respeita a opinião de leitores que discordam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro e publica algumas dessas manifestações acima. Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua 'indignação' é obviamente cínica e mentirosa."

Em que momento a Folha de S.Paulo deixou de ser uma empresa plural, com espaço opinativo diverso, para se tornar o indivíduo ressentido e arbitrário que formulou a resposta acima? O pior é que seu autor se apropriou do único espaço "especial", de caráter anônimo e institucional, garantido diariamente na página dois do jornal, para dizer o que bem pensa. Nada mais explica uma réplica tão mesquinha que não uma atitude unilateral de alguém que toma as rédeas da "Redação", como diz a nota, para dizer arbitrariedades sem o devido cuidado. Junta-se a isso a invenção ou utilização do referido "ditabranda" e chega-se a pensar se o autor do editorial e da resposta não só são a mesma pessoa, como também a própria reencarnação do Médici.

Tal atitude é tão perigosa e indelicada que, fosse eu o doutor Comparato ou a professora Maria Victoria, procuraria meios jurídicos de punir a "Redação" pelo que ela disse a meu respeito. Caso eu ganhasse, quem pagaria o pato? Cada um dos jornalistas que trabalham no quarto andar da alameda Barão de Limeira, muitos deles gente do mais elevado caráter pessoal e profissional? Como alguém que assina uma nota em nome de um corpo complexo como uma redação pode sair dizendo que a opinião geral é de que Fulano ou Sicrano é cínico e mentiroso?

No sábado, mais uma enxurrada de cartas sobre o ocorrido, a maioria horrorizada, claro, com as palavras utilizadas pela Folha. Aparentemente ninguém vislumbrou um processo, mas um leitor mineiro indicou o início de uma movimentação de abaixo-assinados, sem especificar com qual propósito. Nesse dia e no seguinte, o editorial silenciou-se sobre o assunto, espero eu que constrangido pelo soneto duvidoso e pela péssima emenda.

Procurei verificar se no domingo, dia 22, Carlos Eduardo Lins da Silva escreveria algo a respeito, no intuito de redimir a triste atuação do jornal no episódio com uma autocrítica que fosse e, quem sabe, até um pedido de desculpas. Infelizmente, o ombudsman não pôde dar maior importância, justificando seu trabalho como tangente às opiniões por serem "como religião, time de futebol, convicção ideológica: cada um tem a sua e nenhuma é melhor que outra". Reconheceu, porém, que pela movimentação de cartas dos leitores sobre o assunto, não poderia deixar de sublinhar que a "resposta da Redação a duas delas na sexta foge do padrão de cordialidade que julgo essencial o jornal manter com seus leitores". Certamente, o jornal não se deu o trabalho de elevar o nível do debate e, até mesmo, de ter a nobre atitude que muitos de seus espezinhadores não tiveram. Preferiu partir para uma agressão pública, que certamente trará máculas.

A boa escola jornalística ensina uma lição que muitas vezes passa despercebida, apesar de básica: a sacralização da palavra. O texto deve ser idolatrado e cultivado com o mesmo cuidado que desperta alguém ou algo a que amamos muito. Essa parece ter sido a principal falha da Folha no episódio. Seja em editoriais ou em reportagens, falar o que se pensa não pode ser nunca pretexto para ultrapassar o limite do bom senso. Cravar a tal da "ditabranda", no entanto, tornou-se menor diante da resposta atravessada da sexta. Para estabelecer um diálogo saudável com quem quer que seja - ainda mais se público e com leitores constantes, como pareceu o caso - o que se precisa é de humildade, coisa que, infelizmente, não está na escola de jornalismo. Essa é a vida que ensina mesmo.

* Igor Ribeiro, editor-executivo da revista IMPRENSA, é jornalista com passagens por diversos veículos nacionais, incluindo Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e editora Escala Educacional. veja mais

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