Bush“Há que ter condições para utilizar o poder militar. Bush não tem, deixa no Iraque, tal como no Afeganistão, uma tragédia humana e um desastre político. Em Guantánamo desceram à campa o cadáver do Estado de direito e o direito internacional público. O Azerbeijão tirou conclusões da incapacidade do poder hegemónico dos EUA para proteger os seus parceiros menores e voluntários, como a Geórgia, e começa a aquecer as gélidas relações com a Rússia. O «antinorte-americanismo» alastra como nódoa de azeite: o mundo sente uma profunda repulsão pelas políticas de força do pigmeu Bush, uma repulsa partilhada por muito cidadãos estadunidenses.”
Passaram aqueles tempos lindos de 2003, quando, orgulhosamente patriótico, o presidente dos EUA enchendo o peito, podia dizer: “Missão cumprida!” O que as televisões mostram no final do mandato é um Bush descomposto, um secretário do Tesouro, Paulson, ajoelhado e um círculo de dirigentes acéfalo. A missão do império americano cumpriu-se em 2008. A trapaça tem muitos nomes: Bush, Guantánamo, Falujia e Abu Ghraib, fannie e Freddie, AIG e Lehman Brothers. Numa palavra: a crise do século. O complexo de poder da Casa Branca, da indústria petrolífera texana e de Wall Street, desmorona-se. O mundo desmorona-se. Redescobre-se o poder geopolítico.
O neo-conservador círculo de Bush sempre desprezou pessoas de reflexão, entregue como estava a pessoas sem escrúpulos. Convencidos de que os erros se corrigem depois, deixando que os outros paguem as suas graves consequências, vêem-se agora forçados a descobrir qual era (e é) a base do Poder da hegemonia estadunidense no mundo: não só a máquina militar, indiscutivelmente superior: «é a economia, estúpido!».
Há que ter condições para utilizar o poder militar. Bush não tem, deixa no Iraque, tal como no Afeganistão, uma tragédia humana e um desastre político. Em Guantánamo desceram à campa os cadáveres do Estado de direito e do direito internacional público. O Azerbeijão tirou conclusões da incapacidade do poder hegemónico dos EUA para proteger os seus parceiros menores e voluntários, como a Geórgia, e começa a aquecer as gélidas relações com a Rússia. O «antinorte-americanismo» alastra como nódoa de azeite: o mundo sente uma profunda repulsão pelas políticas de força do pigmeu Bush, uma repulsa partilhada por muito cidadãos estadunidenses.
Mas o decisivo é que os neocons conseguiram afundar a economia na pior crise financeira dos últimos 100 anos, numa fossa abissal que não pára de crescer e de se aprofundar. A princípio, davam a impressão de possuir uma solução mágica contra as tendências para estagnação do «capital monopolista» (para o dizer com o título do livro clássico e influente de Paul Baran e Paul Sweezy, publicado nos anos sessenta). Entretiveram-se insolentemente a desregular drasticamente os mercados financeiros, a fim de elevar astronomicamente os rendimentos privados. Começou nos anos 70, quando se começou a deixar flutuar as taxas de câmbio de divisas, o que permitiu especular com as flutuações. As taxas já não se fixavam politicamente pelos bancos centrais, pelos governos ou pelo GMI, mas foram abandonadas aos «mercados». Isto é: aos bancos privados, aos fundos de investimento, às seguradoras e às divisões financeiras das grandes corporações transnacionais.
A era neoliberal foi triunfalmente inaugurada por Margaret Thatcher com o big bang da liberalização dos mercados financeiros. Mas então houve mais, também a fixação dos juros ficou ao alvedrio dos activos financeiros nas mãos de corporações empresariais privadas. Os governos e os bancos centrais perderam a «soberania das taxas de juro», tão importante para uma política económica independente e orientada para o pleno emprego.
Não é uma psique minguada
Com uns mercados financeiros mais ou menos globalizados, os bancos e os fundos de investimento entraram numa concorrência sem tréguas para atrair depósitos ou para se manterem no negócio. Assim, os rendimentos obtidos, sem escrúpulos, com activos financeiros dispararam, tornando-se incomparavelmente maiores que proventos reais. Era isso que a concorrência exigia. A agora tão lamentada ganância ilimitada dos altos executivos não era uma psique minguada, mas tinha causas sistémicas. O capitalismo transformou-se em capitalismo «financeiramente induzido». A taxa de proventos do capital industrial caiu nestes últimos anos, como o demonstram todos os estudos empíricos, enquanto os réditos financeiros eram elevados. Quem sacava um rendimento inferior a 20% do capital investido parecia, até ao rebentar da presente crise, um perdedor. Só em 2008, segundo informação do Banco Federal Alemão, os réditos retrocederam de 20,7% (2007) para uns modestos 3,3% (primeiro semestre de 2008).
Os activos financeiros são dívidas activas (claims) que devem ser satisfeitas, e quanto mais elevados os réditos e mais volumosas as dívidas activas geradoras de réditos, tanto maiores são os rendimentos do produto social global que vão parar ao sector financeiro.
No centro encontra-se Wall Street, ou como alguns preferem – «Fraude-street», onde não param de se desenvolver novas estratégias de activos, nem de descobrir complexos papéis estruturados, nem de se criarem instituições, até agora desconhecidas como os «veículos com propósitos específicos», SPV, nas suas siglas em inglês), tudo isso a fim de atrair constantemente novos clientes para as suas criações financeiras e, com métodos permanentemente renovados, derivar para o sector financeiro os réditos mais altos possíveis. E donde? Da economia real. Mas os excedentes desta área – pode observar-se nas taxas de crescimento real – não eram suficientes para aqueles elevados réditos, isto é, para satisfação da «ganância».
Com os investimentos financiados pelo sector bancário não se criam valores novos (como no capitalismo da máquina-de-costura da avó), mas, com a ajuda dos produtos financeiros estruturados, derivam para o sector financeiro valores já produzidos. Foi isso que já ocorreu na era pré-industrial e colonial, como argutamente soube demonstrar Rosa Luxemburgo: «Acumulação por desapossamento».
Chegaram, porém, a um ponto em que a substância não basta para satisfazer as exigências cada dia maiores que gravitam sobre os mercados financeiros. A verdade é que se procuram constantemente novas jazidas e campos de activos financeiros ou que se «perfura» com instrumentos de renovação contínua, por exemplo os CDS (Crédit default swaps ou contratos de protecção de derivados financeiros). Este mercado é tão grande como o produto social global, uns 63 biliões de dólares.
Para além da lei e da ordem
Ninguém aceita por gosto e de bom grado as desvalorizações, tanto mais quando não se trata de amendoins. Por isso os investidores e os governantes neoconservadores servem-se agora do poder estatal para socializar os prejuízos. Até o mais empedernido e fundamentalista dos adoradores do mercado descobre agora no seu coraçãozito, ai!, um remorso de socialismo.
Falta dizer que ninguém sabe exactamente o volume das depreciações que aí vêm. A única coisa segura é que a clientela privada dos proprietários de fortunas crematísticas será «resgatada» do lamaçal pelos governos de Washington, Londres ou Berlim…, à custa dos que não dispõem de património financeiro.
A crise da New Economy há oito anos superou-se com depreciações de vários biliões de dólares; o crash actual não custará menos, por acaso custará até bastante mais. No entanto, o Estado norte-americano está hoje muitíssimo mais endividado que há oito anos, e cada pacote de ajuda de centenas de milhares de milhões de dólares significa mais endividamento. É verdade que as obrigações dos EUA, medidas com os critérios europeus de Maastricht, são pequenas, mas isso poderá mudar rapidamente. E então, os EUA estarão tão paralisados pelo jugo da dívida como o esteve o Japão no começo dos anos 90, quando o Estado teve que resgatar o sistema bancário japonês.
Por outro lado, muitos países de todo o mundo estão agarrados pela roda da crise e sofrem as suas consequências. Os EUA, depois de décadas de idolatria do mercado, redescobriram o poder político e aprestam-se agora a regular politicamente o «livre jogo das forças do mercado». Com os custos da desvalorização do capital tem que arcar o contribuinte norte-americano, e igualmente o resto do mundo. E isso fez perder as estribeiras o ministro alemão das Finanças, Steinbruck, como se o dispendioso ressaneamento da banca alemã o atirasse para uma de populista. Até se permitiu dizer que a teoria marxista das crises não é totalmente falsa.
O secretário do tesouro Paulson queria no princípio empregar 700 mil milhões de dólares sem controlo parlamentar e sem necessidade de prestar contas, apenas sob a «lógica do dinheiro» e do poder. A crise tinha que ser resolvida com os custos do pacote de resgate a debitarem-se na conta do contribuinte, sem que ele os seus representantes pudessem dizer chus nem bus. Um ressaneamento bancário para além da lei e da ordem, uma espécie de Guatánamo financeiro. Mas o Congresso travouo ex-executivo do banco Goldman Sachs, abençoado por Bush como o seu «general financeiro». Os congressistas temiam a ira dos eleitores. Querem preservar, até onde for possível, o dinheiro dos contribuintes, o que, quatro semanas antes das eleições presidenciais, é compreensível. Quem são então os que carregam com as perdas da bonança especulativa? NNão podem se não exteriorizar-se, isto é, transferirem-se para o estrangeiro, na medida em que o dólar continua a desvalorizar-se. É de supor que é isso mesmo que sucederá. Mas não antes da das eleições de 4 de Novembro – uma desvalorização não é uma coisa boa – mas durante o tempo morto da transição até à tomada de posse do novo presidente em Janeiro de 2009. A política na era da rise financeira é geopolítica.
Uma desvalorização do dólar depreciaria as consideráveis reservas de dólares entesouradas na Ásia, na Europa, no Médio Oriente, na Rússia e na América Latina. Por conseguinte, os governos possuidores de fortes reservas de dólares ver-se-ão obrigados a trocar e pretenderiam transferir para valores reais os seus depósitos em dólares ameaçados de desvalorização. Mas isso é o que até agora tem proibido os EUA. Nem a China pode adquirir a petrolífera Unlocal, nem pode tornar-se Autoridade Portuária de Dubai com os portos de Nova Iorque e de Miami. É muito possível que essa legislação restritiva para os estrangeiros não possa continuar em vigor. A China, compreensivelmente, fará todo o possível para assegurar o valor das suas enormes reservas em dólares, cerca de 1,8 biliões.
O que vem depois desta crise devastadora?
Uma crise grave é um mecanismo de desvalorização gigantesca de capital. Por dizê-lo de outra maneira, um enorme potlatch, como o que praticavam de vez em quando os índios do Pacífico canadiano para celebrar a destruição da riquezas. Com essa cerimónia, o que pretendiam era que ninguém chegasse a suficientemente rico que pudesse dividir a comunidade com as suas riqueza privada. Depois do potlatch, a vida seguia o seu curso. Mas a crise financeira não é uma acção social consciente, é uma «tempestade no mercado mundial» (Marx) e, como tal, abate-se sobre Wall Street e os becos confinantes de todo o mundo.
O que é que vem depois desta crise devastadora? Ao aguaceiro da New Economy em 2000 seguiu-se o boom imobiliário com as hipotecas sub-prime e os produtos financeiros aventureiros, o que possibilitou uns quantos anos de imponentes negócios que duraram até agora, até à crise financeira mais grave dos últimos 100 anos. Capital disponível, de qualquer modo, continua a haver, apesar da crise. Encontra-se à espreita daqueles investimentos que hoje e no futuro poderão trazer rendimentos. Quais podem ser?
As matérias-primas, designadamente o petróleo e o gás, bem como os agro-combustíveis procedentes da biomassa são a primeira opção. Os seus preços deverão subir porque escasseiam e a procura é alta. Os certificados de emissão de dióxido de carbono, de acordo com o protocolo de Kyoto, prometem bons réditos. Ou os bens públicos privatizados como caminhos-de-ferro ou complexos militares-industriais e espaciais. Desde há muito que os investidores têm aqui o seu ponto de mira. Não há crise que dure eternamente. A única coisa que ficou para trás, e por muito tempo, foram a época dos rendimentos de sonho superiores a 20%.
Este texto foi publicado em Sin Permiso
*Elmar Alvater é membro do Conselho Editorial de SINPERMISO, professor emérito de Ciência Política no Instituto Otto-Suhr da Universidade Livre de Berlim.
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