Por Douglas Estevam
Sediado pela primeira vez em um país escandinavo, a quinta edição do Fórum Social Europeu (FSE), realizada entre os dias 17 e 21 de setembro na cidade de Malmo, na Suécia, foi mais um passo no processo de desenvolvimento marcado pelo chamado “movimento dos movimentos.” A indiana Vandana Shiva avalia que “nunca antes a agenda do Fórum Social, seus discursos e atividades foram de tanta atualidade”, referindo-se à crise que vem afetando o sistema financeiro internacional. “O desmoronamento do Lehman Brothers nos mostra que é o momento de reclamar uma verdadeira reconstrução de nossas economias, é tempo de partilhar os frutos da riqueza de uma maneira mais eqüitativa”, declarou Shiva na abertura do Fórum.
Contando com a participação de mais de 50 países, o FSE conseguiu agregar a participação de organizações sociais do Norte e do Leste da Europa em maior número, comparando-se a edições anteriores, totalizando 850 organizações de diversas partes do mundo. Porém o comitê organizativo local encontrou muitas dificuldades, e o Fórum foi marcado por problemas organizativos que comprometeram a qualidade do encontro. Questões técnicas como o sistema de tradução atrapalharam, apesar da dedicação do grupo de tradutores Babel. A descentralização, com os mais de 250 seminários acontecendo em vários pontos diferentes da cidade, também foi prejudicada pela precariedade da sinalização. Some-se a isso a pouca divulgação e ressonância na mídia local, nacional e mesmo européia, que acabaram comprometendo a visibilidade do evento, situação que só seria amenizada pela marcha de mais de sete quilômetros, realizada no penúltimo dia do evento, com aproximadamente 15 mil pessoas.
Uma Europa social
Dentre os temas abordados neste Fórum, um dos mais destacados foi a precarização dos direitos sociais e trabalhistas na Europa. O avanço de governos de direita nos principais países do continente, como Silvio Berlusconi na Itália, Nicolas Sarkozy na França e Angela Merkel na Alemanha, tem representado a implementação de políticas liberais acompanhadas de um ataque a antigas conquistas, além de uma efetiva redução da presença do Estado na manutenção das políticas sociais. Neste contexto, a flexibilização das relações de trabalho está na pauta política européia. Para Pierre Khalfa, secretário nacional da união sindical Solidaires, da França, “o FSE é o espaço unitário mais amplo na Europa para a discussão destas questões, para a construção de alianças e processos de mobilização”. Fabrice Collignon, do Fórum Social da Bélgica, avalia que “este foi um dos temas em que conseguimos avançar, com a criação de um calendário de ações comum”.
A articulação para o enfrentamento das políticas de caráter liberalizante tem que se defrontar com a resistência imposta por uma organização sindical fortemente enraizada na estrutura estatal e que adota posições mais suscetíveis a estas políticas. Collignon reconhece que sindicatos mais institucionalizados, ligados à Confederação Européia de Sindicatos (CES), dificultam as articulações, em razão das diferenças de cada país e da representatividade de cada um. “A resposta ainda não tem sido suficiente porque são poucos os sindicatos e organizações que mobilizam as pessoas contra estas políticas”, explica a italiana Nadia de Mond, da Coordenação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres. “É importante articular lutas na Europa contra a OMC, o G8, o FMI, o Banco Mundial, mas se não conseguirmos nos mobilizar contra as políticas dos nossos governos, isso quer dizer que não estamos conseguindo assumir nossa tarefa”, completa.
A ameaça ambiental
Os impactos ambientais que o atual modelo econômico de produção vem provocando foram o segundo grande tema do Fórum de Malmo. O relatório da Assembléia dos Movimentos Sociais sobre as mudanças climáticas foi enfático ao reivindicar uma jornada de mobilizações durante a Conferência de Mudanças Climáticas das Nações Unidas, que será realizada na Polônia no mês de dezembro e em Copenhague, em 2009. As organizações lutam para que as metas do Protocolo de Quioto estabelecidas para o período 2008-2012 sejam alcançadas, mas também focam o futuro pós-Protocolo. Segundo o relatório, “a desestabilização catastrófica do clima mundial pode levar à eliminação do mundo e do povo. Nós não podemos ganhar outras batalhas se não vencermos esta contra as mudanças climáticas. Sem ela, todas as outras não terão importância”.
Dentro da análise sobre as conseqüências que a lógica do sistema mercantil estabelece entre o homem e os recursos naturais, os documentos apresentados na Assembléia dos Movimentos Sociais se detiveram fundamentalmente na questão do monopólio da água, algo que ganhou força com a articulação entre as organizações presentes. Durante o Fórum, foram feitas análises de várias experiências de modelos de gestão pública da água e dos impactos sociais que a privatização dos recursos hídricos vem acarretando. O relatório final anunciou a constituição de uma rede de organizações que vai trabalhar acerca do tema, tendo como principal foco o enfrentamento às grandes empresas européias que, segundo o relator, “estariam se constituindo em grandes impérios”, referindo-se explicitamente à belgo-francesa Suez.
O processo do Fórum
As indagações, avaliações e reflexões sobre o processo do Fórum não estiveram ausentes nesta edição sueca. O questionamento a respeito da força política que o movimento representa hoje foi foco de debates e proposições, tendo-se em vista o próximo encontro mundial, que será realizado em 2009 no Brasil, na cidade de Belém.
Para Gustave Massiah, membro da rede francesa de pesquisa Crid, o movimento altermundista deve ser entendido como o desenvolvimento de uma longa história de lutas, com raízes mais profundas no movimento operário internacional e que ganhou contornos novos com as lutas internacionais contra o colonialismo. A estadunidense Susan George, presidente de honra da Attac França, reforça a necessidade de se construir um novo tipo de poder político, mais largo, não como os partidos políticos, mas que possibilite a mobilização pela disputa do poder.
Bernard Cassen, do Memoires de Luttes, interpreta a constituição do movimento altermundista em oposição a um modelo que assumiu uma forma neoliberal completamente diferente, marcada por uma maior homogeneidade entre as grandes instituições internacionais, para as quais o movimento não tem conseguido dar respostas. Particularmente na Europa, ele analisa que existem muitas dificuldades de articulação entre os movimentos nas campanhas realizadas contra os tratos da Constituição Européia. E cita como referência os processos em andamento na América Latina, cuja união entre movimentos sociais, governos de esquerda e partidos políticos se constituiria em um modelo que consegue implementar muitas das mudanças propostas pelo movimento altermundista.
Aliás, algumas das representações internacionais mais fortes e marcantes do Fórum Europeu foram dos países latino-americanos. Os movimentos camponeses da região foram alvo de grande interesse, dado o contexto de crise alimentar que se propagou por todo o mundo, motivando o debate em torno das conseqüências da utilização de agrocombustíveis. Membros do Conselho Coordenador de Organizações Camponesas de Honduras (Cococh) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil (MST), discutiram as conseqüências do avanço das monoculturas na América Latina, a participação dos movimentos nos processos de transformação sociais em curso no continente e as políticas econômicas de seus países.
Para Ignacio Ramonet, ex-editor chefe do jornal Le Monde Diplomatique, todos que participaram da criação do Fórum em 2001 entendiam que a transformação pela via eleitoral não significava a possibilidade de mudanças efetivas. Tratava-se, segundo ele, de uma luta vã, porque o neoliberalismo criara uma superestrutura que condicionava e limitava o lugar político e a conquista do poder não significava exercê-lo. Ramonet destaca que “a revolução bolivariana foi a primeira que demonstrou que não se pode transformar a realidade desde o alto”. “Quando se tem esse tipo de poder, permite-se, alimenta-se, autoriza-se o poder de baixo e se vai transformando a sociedade”, analisa. Este duplo movimento, original, em que a energia dos movimentos sociais é estimulada pelos governos e que está em desenvolvimento em alguns países da América Latina, seria uma fonte de inspiração para os europeus. “Temos uma esquerda desprovida de idéias novas para romper as estruturas de uma União Européia que praticamente impede que a energia da sociedade possa transformar os poderes políticos, econômicos, midiáticos e outros”, aponta Ramonet.
Istambul 2010
A próxima edição do Fórum Europeu será em Istambul, a capital turca. A expectativa é de que este Fórum venha a ter uma grande importância pela centralidade que a Turquia representa para a geopolítica do continente, para o controle da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e também por conta do debate em torno da adesão ou não deste país à União Européia. As posições das diversas organizações islâmicas são um dado relevante para os europeus e terão grande destaque em Istambul.
Uma questão importante para a política e a sociedade européia é a das migrações, que neste Fórum esteve pouco representada. A participação de migrantes e mesmo os debates ou análises sobre a situação não tiveram o destaque necessário frente às medidas adotas pela União Européia, como a diretiva do retorno ou o problema da utilização da mão-de-obra barata de trabalhadores vindos de outros países. A situação se agrava ainda mais com o discurso nacionalista de extrema-direita que alguns governos adotam e que vem atraindo a simpatia de setores do eleitorado.
Contudo, algumas articulações européias continuam avançando e ganhado força. Além das mobilizações apresentadas acima, a Assembléia dos Movimentos Sociais definiu a realização de manifestações durante o encontro do G8 na Itália, em julho de 2009. Outras ações simultâneas em vários países serão contra os 60 anos da Otan, em abril de 2009, e de debates sobre a soberania alimentar. A recorrência de alguns temas demonstra que as soluções e propostas apresentadas e discutidas ainda não são satisfatórias, mas mesmo com algumas indefinições e dificuldades, o Fórum deixou a certeza de que somente uma ação ampla de diversos segmentos da sociedade pode assegurar uma transformação real.
Fonte: Revista Fórum.
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