Eric Hobsbawm é considerado um dos maiores historiadores vivos. É presidente do Birkbeck College (Universidade de Londres) e professor emérito da New School for Social Research (Nova Iorque). Entre as suas muitas obras, encontra-se a trilogia acerca do “longo século XIX”: A Era das Revoluções: Europa 1789-1848 (1962); A Era do Capital: 1848-1874 (1975); A Era do Império: 1875-1914 (1987), e o livro A Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991 (1994).
Marcello Musto é editor de Karl Marx’s Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later, Londres-Nova Iorque: Routledge 2008.
– Professor Hobsbawm, duas décadas depois de 1989, quando foi apressadamente relegado ao esquecimento, Karl Marx regressou ao centro das atenções. Livre do papel de intrumentum regni que lhe foi atribuído na União Soviética, e das algemas do “marxismo-leninismo”, não só tem recebido nos últimos anos atenção intelectual pela nova publicação da sua obra, como também tem sido objecto de interesse generalizado. De facto, em 2003, a revista francesa Nouvel Observateur dedicou um número especial a “Karl Marx, le penseur du troisième millénaire?” (Karl Marx – o pensador do terceiro milénio?). Um ano depois, na Alemanha, numa sondagem patrocinada pela companhia de televisão ZDF para estabelecer quem eram os alemães mais importantes de todos os tempos, mais de 500.000 espectadores votaram em Marx; obteve o terceiro lugar na classificação geral e o primeiro na categoria de “relevância actual”. Depois, em 2005, o semanário Der Spiegel apresentou-o na capa sob o título “Ein Gespenst Kehrt zurük” (Um espectro está de volta), enquanto os ouvintes do programa “In Our Time” da Rádio 4 da BBC votaram em Marx como o maior filósofo de todos os tempos.
Numa entrevista com Jacques Attali recentemente publicada, você disse que, paradoxalmente, «são os capitalistas, mais do que outros, que têm vindo a redescobrir Marx» e falou também do seu assombro quando o homem de negócios e político liberal George Soros lhe disse: «Tenho andado a ler Marx e há muitas coisas interessantes no que ele diz». Ainda que seja débil e algo vago, quais são as razões para este renascimento? É possível que a sua obra seja considerada como de interesse só de especialistas e intelectuais, sendo apresentada em cursos universitários como um grande clássico do pensamento moderno que nunca deveria ser esquecido? Ou poderá surgir no futuro uma nova “procura por Marx” também do ponto de vista político?
Há um indiscutível renascimento do interesse público em Marx no mundo capitalista, embora provavelmente ainda não nos novos membros da União Europeia, do leste europeu. Foi provavelmente acelerado pelo facto de o 150° aniversário da publicação do Manifesto do Partido Comunista ter coincidido com uma crise económica internacional particularmente dramática num período de ultra-rápida globalização do livre mercado.
Marx previu a natureza da economia mundial do início do século XXI cento e cinquenta anos antes, com base na análise da “sociedade burguesa”. Não é surpreendente que os capitalistas inteligentes, especialmente no sector financeiro globalizado, ficassem impressionados com Marx, já que eles estavam necessariamente mais conscientes que outros sobre a natureza e as instabilidades da economia capitalista na qual eles operavam. A maioria da esquerda intelectual já não sabia o que fazer com Marx. Tinha sido desmoralizada pelo colapso do projecto social-democrata na maioria dos estados do Atlântico Norte, nos anos 1980, e pela conversão massiva dos governos nacionais à ideologia do livre mercado, assim como pelo colapso dos sistemas políticos e económicos que afirmavam ser inspirados por Marx e Lenin. Os chamados “novos movimentos sociais”, como o feminismo, tampouco tinham uma conexão lógica com o anti-capitalismpo (ainda que, como indivíduos, muitos dos seus membros pudessem estar alinhados com ele) ou questionaram a crença no progresso sem fim no controlo humano sobre a natureza, que tanto o capitalismo como o socialismo tradicional tinham partilhado. Ao mesmo tempo, o “proletariado”, dividido e diminuído, deixou de ser crível como agente histórico da transformação social de Marx. Devemos também ter em conta que, desde 1968, os mais proeminentes movimentos radicais preferiram a acção directa não necessariamente baseada em muitas leituras e análises teóricas.
Claro que isto não significa que Marx deixará de ser encarado como um grande pensador clássico, ainda que, por razões políticas, especialmente em países como França e Itália, com outrora poderosos partidos comunistas, tenha havido uma apaixonada ofensiva intelectual contra Marx e as análises marxistas, que provavelmente atingiu o seu apogeu nas décadas de 1980 e 1990. Há agora sinais de que essa corrente já passou.
– Ao longo da sua vida, Marx foi um agudo e incansável investigador, que percebeu e analisou melhor do que ninguém no seu tempo o desenvolvimento do capitalismo a uma escala mundial. Ele entendeu que o nascimento de uma economia internacional globalizada era inerente ao modo capitalista de produção e previu que este processo geraria não somente o crescimento e prosperidade alardeados por políticos e teóricos liberais, mas também violentos conflitos, crises económicas e injustiça social generalizada. Na última década, vimos a crise financeira do leste asiático, que começou no Verão de 1997, a crise económica argentina de 1999-2002 e, sobretudo, a crise hipotecária do subprime, que começou nos Estados Unidos em 2006 e se tornou agora a maior crise financeira do pós-guerra. É correcto dizer, então, que o retorno do interesse por Marx está também baseado na crise da sociedade capitalista e na sua capacidade duradoira de explicar as profundas contradições do mundo actual?
Se a política da esquerda no futuro será inspirada uma vez mais nas análises de Marx, como eram os velhos movimentos socialistas e comunistas, dependerá do que acontecer ao capitalismo mundial. Mas isso aplica-se não somente a Marx, mas à esquerda como um projecto e uma ideologia política coerente. Posto que, como você diz correctamente, o retorno do interesse por Marx está consideravelmente – eu diria, principalmente – baseado na actual crise da sociedade capitalista, a perspectiva é mais promissora do que foi na década de 1990. A actual crise financeira mundial, que pode bem tornar-se uma grande depressão económica nos EUA, dramatiza o fracasso da teologia do livre mercado global descontrolado, e obriga até o governo estado-unidense a considerar empreender acções públicas esquecidas desde a década de 1930. As pressões políticas já estão a debilitar o compromisso dos governos economicamente neoliberais numa globalização descontrolada, ilimitada e desregulada. Em alguns casos (China), as vastas desigualdades e injustiças provocadas por uma transição geral para uma economia de livre mercado já colocam problemas importantes para a estabilidade social e levantam dúvidas mesmo nos escalões mais altos de governo.
É claro que qualquer “retorno a Marx” será essencialmente um retorno à análise de Marx sobre o capitalismo e o seu lugar na evolução histórica da humanidade – incluindo, sobretudo, as suas análises sobre a instabilidade central do desenvolvimento capitalista, que procede por meio de crises económicas periódicas auto-geradas, com dimensões políticas e sociais. Nenhum marxista poderia acreditar por um instante que, como argumentaram os ideólogos neoliberais em 1989, o capitalismo liberal se tinha estabelecido para sempre, que a história tinha chegado ao fim, ou na verdade que qualquer sistema de relações humanas possa alguma vez ser final e definitivo.
– Você não acha que, se as forças políticas e intelectuais da esquerda internacional, que se questionam sobre o socialismo no novo século, renunciassem às ideias de Marx, perderiam um guia fundamental para o exame e a transformação da realidade actual?
Nenhum socialista pode renunciar às ideias de Marx, na medida em que sua crença em que o capitalismo deve ser sucedido por outra forma de sociedade está baseada, não na esperança ou na vontade, mas numa análise séria do desenvolvimento histórico, particularmente na era capitalista. A sua previsão de que o capitalismo seria substituído por um sistema administrado ou planeado socialmente ainda parece razoável, embora ele tenha certamente subestimado os elementos de mercado que sobreviveriam em quaisquer sistemas pós-capitalistas. Uma vez que ele deliberadamente se absteve de especular sobre do futuro, não pode ser tornado responsável pelas formas específicas em que as economias “socialistas” foram organizadas sob o “socialismo realmente existente”. Quanto aos objetivos do socialismo, Marx não foi o único pensador que queria uma sociedade sem exploração e alienação, em que todos os seres humanos pudessem realizar plenamente as suas potencialidades, mas expressou esta aspiração de forma mais poderosa que qualquer outro, e as suas palavras mantêm o poder de inspirar.
No entanto, Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que os seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, como autoridade ou de outra maneira, nem como descrições da situação actual do capitalista mundial de hoje, mas sim como guias da sua forma de entender a natureza do desenvolvimento capitalista. Nem podemos ou devemos esquecer que ele não conseguiu realizar uma apresentação coerente e completamente reflectida das suas ideias, apesar das tentativas de Engels e outros de construir, a partir dos manuscritos de Marx, um volume II e III de O Capital. Como mostram os Grundrisse, mesmo um Capital completo teria conformado apenas uma parte do próprio plano original de Marx, talvez excessivamente ambicioso.
Por outro lado, Marx não regressará à esquerda até que a tendência actual entre os activistas radicais de converter o anti-capitalismo em anti-globalismo seja abandonada. A globalização existe e, salvo um colapso da sociedade humana, é irreversível. De facto, Marx reconheceu isso como um facto e, como um internacionalista, deu-lhe as boas vindas, em princípio. O que ele criticou, e deve ser criticado, foi o tipo de globalização produzida pelo capitalismo.
– Um dos escritos de Marx que suscitaram o maior interesse entre os novos leitores e comentadores são os Grundrisse. Escritos entre 1857 e 1858, os Grundrisse são o primeiro rascunho da crítica da economia política de Marx e, portanto, também o trabalho inicial preparatório do Capital; contém numerosas reflexões sobre assuntos que Marx não desenvolveu noutra parte da sua obra incompleta. Por que, na sua opinião, são estes manuscritos uma das obras de Marx que continuam a provocar mais debate que qualquer outra, apesar do facto de ele os ter escrito somente para resumir os fundamentos da sua crítica da economia política? Qual é a razão do seu persistente interesse?
Do meu ponto de vista, os Grundrisse provocaram um impacto internacional tão grande no panorama intelectual marxista por duas razões relacionadas. Eles permaneceram praticamente não publicados antes da década de 1950, e, como você diz, continham uma massa de reflexões sobre assuntos que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte. Não fizeram parte do largamente dogmatizado corpus do marxismo ortodoxo no mundo do socialismo soviético, contudo o socialismo soviético não podia simplesmente descartá-los. Puderam, portanto, ser usados por marxistas que queriam criticar a ortodoxia ou ampliar o alcance da análise marxista mediante o apelo a um texto que não podia ser acusado de herético ou anti-marxista. Assim, as edições das décadas de 1970 e 1980 (bem antes da queda do Muro de Berlim), continuaram a provocar debate, fundamentalmente porque nestes escritos Marx colocava importantes problemas que não foram considerados no Capital, por exemplo, as questões levantadas no meu prefácio ao volume de ensaios que você coligiu [1].
– No prefácio deste livro, escrito por vários especialistas internacionais para comemorar o 150° aniversário da sua composição, você escreveu: «Talvez este seja o momento certo para voltar a um estudo dos Grundrisse menos constrangido pelas considerações temporais das políticas de esquerda entre a denúncia de Stalin por parte de Nikita Khruschev e a queda de Mikhail Gorbachev». Além disso, para sublinhar o enorme valor deste texto, você afirmou que os Grundrisse «contêm análises e compreensão, por exemplo sobre tecnologia, que levam o tratamento de Marx do capitalismo muito para além do século XIX, para a era de uma sociedade onde a produção já não requer mão-de-obra massiva, para uma era de automatização, do potencial de tempo livre e das transformações da alienação em tais circunstâncias. É o único texto que vai, de alguma maneira, para além dos próprios indícios de Marx do futuro comunista na Ideologia Alemã. Em poucas palavras, tem sido descrito acertadamente como o pensamento de Marx em toda a sua riqueza». Assim, qual poderia ser o resultado de reler os Grundrisse hoje?
Não há, provavelmente, mais do que um punhado de editores e tradutores que têm um pleno conhecimento desta grande e notoriamente difícil massa de textos. Mas uma re-releitura, ou antes leitura, deles hoje poderia ajudar-nos a repensar Marx: a distinguir o que é geral na análise do capitalismo de Marx daquilo que foi específico da situação da “sociedade burguesa” em meados do século XIX. Não podemos prever que conclusões são possíveis ou prováveis desta análise, somente que certamente não levarão a acordos unânimes.
– Para terminar, uma pergunta final. Por que é importante ler Marx hoje?
Para qualquer pessoa interessada nas ideias, seja um estudante universitário ou não, é patentemente claro que Marx é e permanecerá uma das grandes mentes filosóficas e um dos grandes analistas económicos do século XIX e, no seu melhor, um mestre da prosa apaixonada. Também é importante ler Marx porque o mundo no qual hoje vivemos não pode ser entendido sem ter em conta a influência que os escritos deste homem tiveram sobre o século XX. E, finalmente, deveria ser lido porque, como ele mesmo escreveu, o mundo não pode ser efectivamente transformado a não ser que seja compreendido – e Marx permanece um soberbo guia para compreender o mundo e os problemas que devemos enfrentar.
Fonte: Blog Informação Alternativa.
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