Boaventura de Sousa Santos.
É muito provável que o próximo presidente dos EUA seja um afro-descendente. O significado de tal facto é enorme e insere-se num processo histórico mais amplo. As três últimas décadas foram de muita esperança e desilusão a respeito da democracia representativa. Muitos países conquistaram ou reconquistaram a democracia neste período, mas a garantia dos direitos cívicos e políticos ocorreu de par com a degradação dos direitos sociais, o aumento da desigualdade social, da corrupção e do autoritarismo. O desencanto, numa época em que a revolução não foi uma alternativa credível à democracia, fez com que surgissem novos actores políticos, movimentos sociais e líderes, na maioria dos casos com poucas ou nenhumas vinculações à classe política tradicional. As Américas são uma ilustração eloquente disto, ainda que os processos políticos sejam muito diferentes de país para país. Em 1998, um mulato chega à presidência da Venezuela e propõe a revolução bolivariana; em 2002, um operário metalúrgico é eleito presidente do Brasil e propõe uma mistura de continuidades e rupturas; em 2005, um indígena é eleito presidente da Bolívia e propõe a refundação do Estado; em 2006, um economista sem passado político é eleito presidente do Equador com a proposta da revolução cidadã; em 2006 e 2007, duas mulheres são eleitas presidentes do Chile e da Argentina, respectivamente, e com projectos de continuidade mais ou menos retocada; em 2008, um bispo, teólogo da libertação, é eleito presidente do Paraguai e põe fim a décadas de domínio do partido oligárquico através da aliança patriótica para a mudança, e ainda em 2008 é provável que um negro chegue à Casa Branca com o slogan: «Change, yes we can». Uma nova política de cidadania e de identidade, sem dúvida mais inclusiva, está a impregnar estes processos democráticos, o que nem sempre significa uma política nova. Por isso pode ser um sol de pouca dura. De todo modo, é importante que líderes vindos de grupos sociais que na história da democracia mais tarde conquistaram o direito de voto assumam hoje um papel de preeminência. No caso dos EUA, isto acontece apenas quarenta anos depois de os negros conquistarem direitos cívicos e políticos plenos.
A eleição de Obama, a ocorrer, é o resultado da revolta dos norte-americanos ante a grave crise económica e a estrondosa derrota no Iraque, apesar de declarada como vitória até ao último momento, como já aconteceu no Vietname. O fenómeno Obama revela contraditoriamente a força e a fragilidade da democracia nos EUA. A força, porque a cor da sua pele simboliza um acto dramático de inclusão e de reparação: à Casa Branca dos senhores chega um descendente de escravos, mesmo que ele pessoalmente o não seja. A fragilidade, porque dois temores assolam os que o apoiam: que seja assassinado por racistas extremistas e que a sua vitória eleitoral, se não for muito expressiva, seja negada por fraude eleitoral, o que não sendo novo (o W. Bush foi “eleito” pelo Supremo Tribunal) representa agora uma ocorrência ainda mais sinistra.
Se nada disto ocorrer, um jovem negro, filho de um emigrante queniano e de uma norte-americana, terá o papel histórico de presidir ao fim do longo Século XX, o Século Americano. A crise financeira, apesar de grave, é apenas a ponta do iceberg da crise económica que assola o país e tudo leva a crer que a sua resolução, a ocorrer, não permitirá que os EUA retomem o papel de liderança do capitalismo global que tiveram até aqui. Em nome da competitividade a curto prazo, foi destruída a competitividade a longo prazo: diminuiu o investimento na educação e na saúde dos cidadãos, na investigação científica e nas infra-estruturas; aumentaram exponencialmente as desigualdades sociais; a economia da morte do complexo militar-industrial continua a devorar os recursos que podiam ser canalizados para a economia da vida; o consumo sem aforro nativo e o belicismo sem recursos próprios fizeram-se financiar pelos créditos de países terceiros que não vão continuar a confiar numa economia dirigida por executivos vorazes e irresponsáveis que se atascam em luxo enquanto as empresas abrem falência e transformam os seus passivos em endividamento das próximas gerações.
A União Europeia já chegou a esta conclusão e parece ter a veleidade de tomar o lugar dos EUA, apesar de nos últimos vinte anos só não ter sido uma aluna mais fiel do modelo norte-americano porque os cidadãos não permitiram. Acresce que, nas relações com os países que na América Latina, na África e na Ásia podiam ser parceiros de um novo modelo económico e social mais justo e solidário, a UE persiste em assumir posições imperialistas e neocoloniais que lhe retiram qualquer credibilidade. A transformação não virá da UE ou dos EUA. Terá de lhes ser imposta pela vontade dos cidadãos dos países que mais sofreram com os desmandos recentes do capitalismo de casino.
Fonte: Site Informação Alternativa.
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