domingo, 26 de outubro de 2008

BOSSA NOVA - Rua Nascimento Silva, 107.

Zuza Homem de Mello

As comemorações dos 50 anos da bossa nova estão pipocando sob a forma de artigos nos jornais, especiais pela televisão, exposições, espetáculos programados e eventos a serem montados. Mais bossa nova em 2008 é ótimo para quem não agüenta essa bobajada ouvida na maioria das emissoras, que, além de nos conduzir aos confins de um inferno sonoro, ilude grande parte da juventude levando-a a acreditar ser essa a única música brasileira.

Mas, afinal, por que em 2008? O que ocorreu em 1958 para que se comemore com tanta festa? Foi a gravação de "Chega de Saudade", uma das composições da dupla de compositores Tom Jobim e Vinicius de Moraes, então recém-formada.

Ambos já tinham uma primeira fornada de sua histórica parceria, as canções para o musical "Orfeu da Conceição". O espetáculo fora levado ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro em setembro de 1956 e dele resultou um disco gravado em estúdio, um LP ainda de 10 polegadas, com os temas da peça, como "Se Todos Fossem Iguais a Você", o de maior sucesso. Tom e Vinicius já se conheciam antes de 1956, ano em que foram oficialmente apresentados um ao outro pelo crítico Lucio Rangel. Foi de fato a partir desse reencontro que vieram a se tornar parceiros.

A segunda fornada surgiu das canções compostas especialmente para o célebre disco "Canção do Amor demais", um LP então de 12 polegadas gravado entre março e abril de 1958, em que a figura principal não eram os dois autores, mas a estrela do disco, que está na foto da capa, Elizeth Cardoso. Editado pela Festa, pequena gravadora dirigida por Irineu Garcia e especializada em poesia, o disco contemplava uma das maiores cantoras de todos os tempos. Tão idolatrada que era chamada "A Divina".

Afirmar que Elizeth Cardoso não era cantora de bossa nova é correto, mas não é significativo. O importante é que em duas faixas podia ser percebido nitidamente o estranho modo de tocar do violonista convocado pelo arranjador Tom Jobim, o baiano João Gilberto, conhecido apenas no meio musical do Rio. Uma dessas faixas era "Outra Vez", samba-canção de Tom Jobim gravado por Dick Farney quatro anos antes, e a outra, a inédita "Chega de Saudade".

Nunca se ouvira antes no Brasil, nem em gravações no exterior com violonistas brasileiros como Laurindo de Almeida, um violão como aquele. Nada se parecia com aquele violão de João.

O diretor da gravadora Odeon, Aloísio de Oliveira, ficou tão impressionado que se empenhou em gravar um disco com o próprio João Gilberto. Um disco em que João não apenas tocasse violão, mas também cantasse. Uma vez aprovada a idéia, João teve condições de realizar duas ações que não conseguira na gravação com Elizeth.

Primeira: cantar como ele tinha sugerido em vão à cantora. João tentara convencer Elizeth que dividisse frases da melodia à sua maneira. Como se atrevera ele, um violonista, a mudar o modo de cantar da grande Elizeth? Quando chegou sua vez de gravar "Chega de Saudade", João dividiu-a como achava que devia ser. E ainda: fugiu completamente do estilo interpretativo do cantor que mais admirava, Orlando Silva, para cantar de uma maneira que já era conhecida no jazz como "cool". No "cool jazz" o músico tocava seco, com o mínimo de vibrato, abolindo os arroubos, como se estivesse tocando para si mesmo e não para os outros. No Brasil havia muito poucos que cantavam cool e um deles era Fafá Lemos. Mas Fafá nem era cantor, era violinista. Músicos como Chet Baker cantavam cool, cantoras como Chris Connor cantavam cool, mas cantores em geral, como Sinatra ou Tony Bennett, jamais imaginavam cantar cool.

A outra ação de João Gilberto foi seguramente a mais marcante. Ele interferiu decisivamente no modo do baterista de tocar samba, segundo Roberto Menescal que assistiu à gravação. Até que o disco fosse gravado houve muitos ensaios, desentendimentos com a gravadora e com o arranjador -- Tom Jobim --, tentativas, adiamentos, tudo por causa das imposições de João. Além de exigir um microfone para seu violão, ele fez questão de convocar dois percussionistas, nenhum muito conhecido, aliás. Juquinha deveria tocar levemente com vassourinhas, em vez de baquetas, apenas na caixa da bateria. O outro, Guarani Lustosa, deveria dar batidinhas numa caixeta em certos momentos determinados por João. "Aqui, aqui e ali", explicou.

Assim João valorizava os tempos fracos, realçando batidas que já existiam nos tamborins do samba, mas não eram tão destacadas. Com essa iniciativa, aliada ao evidenciado modo de tocar violão, o mesmo do disco de Elizeth, João criou uma nova forma de ritmar o samba. E mais ainda: com o modo de cantar, dividindo diferente e adotando uma atitude cool, João elevou a gravação de "Chega de Saudade", realizada a 10 de julho de 1958, a um destino histórico. Duração: um minuto e 59 segundos. Sem repetição da primeira nem da segunda parte, terminando em "fade out".

O som que se ouve nesse disco, lançado pouco tempo depois pela Odeon, ainda um 78 rotações conhecido como bolachão, é o som que daria uma guinada nos rumos da música popular. Era uma outra bossa na canção brasileira. Nela havia uma forma poética moderna (a de Vinicius de Moraes), uma forma de composição moderna (a de Tom Jobim), uma harmonia com acordes alterados (por Tom Jobim e João Gilberto), uma forma nova de interpretação de voz e violão (de João Gilberto) e uma nova batida no modo de ritmar o samba (também de João Gilberto) que seria no exterior a marca registrada dessa bossa. Esse admirável conjunto de elementos novos, pela primeira vez reunidos e editados sob a forma de um registro sonoro, representa a mais significativa e radical revolução jamais ocorrida na história da canção brasileira. É uma data.

"Chega de Saudade" com João Gilberto causou uma reação espantosa quando ouvida por músicos e por futuros músicos pelo Brasil afora. Foi um momento inesquecível quando ouviram o disco pela primeira vez. Mudou o rumo da vida de vários deles.

Mesmo sem ter como avaliar tal repercussão, o diretor da Odeon animou-se a gravar um segundo disco, ainda em 1958, outro bolachão. Em 10 de novembro João Gilberto entrava no estúdio para gravar pela primeira vez algo ainda mais surpreendente, "Desafinado".

Reconhecendo as inovações na melodia e harmonia dessa música os autores Tom e Newton Mendonça antecipavam na letra a resistência dos ouvidos mais reacionários: "Se você insiste em classificar/ meu comportamento de antimusical/ eu mesmo mentindo devo argumentar/ que isto é bossa nova/ isto é muito natural". Repetiam o processo habitual de dar nome aos bois quando se introduzia novidade na música brasileira, como em 1946 nos versos de Humberto Teixeira: "Eu vou mostrar pra vocês/ como se dança o baião". Vale lembrar que os lados B desses dois discos tinham ambos composições de João: o baião "Bim bom" e um tipo de bolero, "Oba-la-lá". Quanto ao estilo, João nada havia mudado nas quatro gravações. Econômicas e decisivas.

Em dezembro de 1958, o disco "Chega de Saudade" começou a fazer sucesso em São Paulo, principalmente em razão das execuções freqüentes na cadeia das Lojas Assumpção e em um programa de rádio, "O Pick-up do Picapau" (Walter Silva) pela Rádio Bandeirantes. O novo estilo iniciava sua carreira para a consagração. Tanto que no ano seguinte a Odeon decidiu fazer um LP com João Gilberto em cujo texto, no verso da capa, Antonio Carlos Jobim descreve João com a mesma expressão da letra de "Desafinado: "João Gilberto é um baino (sic), 'bossa-nova' de vinte e sete anos."

Fora também a solução encontrada pelo diretor-social do Grupo Universitário Hebraico do Brasil, Moyses Fuks, quando teve que nomear um show com rapazes da classe média do Rio. Enfeitiçados pelo violão de João Gilberto, Roberto Menescal, Carlinhos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Chico Feitosa, entre outros, se reuniam freqüentemente no apartamento dos pais de Nara Leão, em Copacabana, para cantar suas composições. O cartaz do Hebraico anunciava: "Hoje, Sylvinha Telles e um grupo bossa-nova". Nem os rapazes do show sabiam que assim estavam sendo batizados. Ronaldo Bôscoli, o inteligente jornalista que tinha espaço na revista "Manchete", agarrou a idéia no ar. Em 27 de outubro de 1968, Tom me afirmaria: "Aí começou aquele negócio de chamar aquilo de bossa nova, que era um nome mais ou menos curto."

O disco "Chega de Saudade" foi um marco na história, o primeiro disco de uma nova bossa na canção brasileira, o primeiro da bossa nova.
Fonte: Blog Opinião e Notícia.

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