BUENOS AIRES – Nos últimos dois dias, as ruas da capital argentina está coberta por um panfleto que diz “ontem foi a soja, agora é a aposentadoria, onde mais eles tocarão?”
A presidenta Cristina Kirchner poderia fazer omeletes sem quebrar ovos, mas preferiu partir mais ovos do que exigia a receita. Seu maior pecado, neste momento, é que seu acerto está apenas no discurso e, com sua popularidade em baixa (30% ante 50% quando foi eleita), coloca-se em desvantagem diante da opinião pública argentina.
Ou seja, sua intenção, embora louvável, claro, por aqueles que defendem um sistema público de Previdência, é difícil de ser atestada e comprovada hoje – é uma perspectiva – mas motivos concretos são facilmente explicados, neste momento, ao eleitor.
Não adianta Cristina falar algumas verdades, tais como “a aposentadoria não pode ser um negócio”, “o Estado precisava repetidamente auxiliar (ou subsidiar) o setor privado das AFJPs” – eram 4 milhões de pesos para que 77% dos 450 mil aposentados do sistema privado pudesse receber 690 pesos (pouco mais de 500 reais), caso contrário receberiam apenas 200 pesos -; as sucessivas perdas das 10 AFJP (Administradoras de Fundo de Jubilacion Previsional) colocavam, realmente, em risco o processo de pagamento futuro – situação bastante diferente do Brasil, por exemplo, onde este sistema paga apenas 262 mil benefícios (em 2006) e ainda está em fase de capitalização.
Outras verdades: as taxas de administração, consideradas altas demais (o mesmo problema que se deu no Chile e também ocorre no Uruguai) e fazem desaparecer boa parte do rendimento das benefícios das AFJPs. No entanto, o certo grau de oportunismo em gestão da política econômica parece suplantar qualquer boa intenção do ato de Cristina, se é que sua atitude foi movida mesmo pelo afã ideológico.
A oposição que agora promete derrubar o projeto de estatização no Congresso (são 127 kirchneristas, 20 aliados e 107 opositores), há alguns meses, cobrava do governo uma atitude. Mas não esperava a radicalização do estatismo. A Casa Rosada, agora, tenta correr atrás do prejuízo e quer votar o projeto em três semanas. A desculpa é a crise financeira internacional provocada pela atitude de Cristina. Uma crise dentro da crise. Mas será difícil. Há grande articulação no Congresso para modificar consideravelmente o projeto. O governo trabalha para garantir os votos de sua própria base (kirchnerismo e o peronismo critico). O Radicalismo já anunciou que vai votar contra.
O grande erro de Cristina – ou de Nestor porque ele é quem manda no governo desde seu escritório em Olivos e está on line com a Casa Rosada – foi ir com muita sede ao pote do patrimônio de R$ 1,1 bilhão das AFJPs para cobrir seu risco de default. Se o governo tomasse outra medida de incentivo à transferência ou retorno dos contribuintes do sistema privado para o público, talvez pudesse garantir mais segurança à sua situação fiscal, sem espalhar o pânico no mercado financeiro e deteriorar ainda mais sua condição de solvência. No entanto, retiraria oxigênio do mercado financeiro local. É difícil sair dessa armadilha.
A Argentina, bom lembrar, é um país onde não existe confiança no sistema bancário. A poupança das famílias, independentemente da taxa de câmbio do dia, é feita em dólar sob o colchão. É o conhecido “colchónbank”. Logo, essas medidas têm ainda grande efeito sobre a liquidez do sistema. O ato, além de produzir um projeto de lei feito às pressas, com muitos pontos confusos, provocou a repulsa da população já ameaçada pela crise internacional dos subprimes.
É bem provável que Cristina não consiga obter êxito. Ficará do episódio, talvez, mais uma lição: não dá para confiar ao mercado o sistema de previdência. Assim como muitos agora, para usar a expressão de Maria da Conceição Tavares, “brincaram de derivativos”, alguns países – desde a reforma chilena – “brincam de previdência”. Adotar esse caminho, enfraquecendo o sistema público, é uma armadilha para a economia. O mercado financeiro passa a contar – e se abastecer – com o crescimento desses fundos. Se o mercado de capitais é fraco, muito bem, o procedimento pode ter alguma serventia – como teve no Chile. Mas é um caminho sem volta e danoso para o futuro aposentado.
Os governos latinoamericanos que seguiram este modelo estão agora sustentando, via Estado, essa situação. Atravessaram a ponte e destruíram tudo. Estão sendo obrigados a reconstruir sob tormenta, carregando o concreto lá de longe, enfim, cheios de dificuldades. O Chile está pagando a conta dos 36 milhões de excluídos que ficaram sem cobertura do sistema privado. A Argentina percebe que isso está em curso de acontecer aqui também. Nestor Kirchner fez um primeiro movimento, mas, aos poucos, percebe-se que “brincar de previdência privada” é para aqueles já bem crescidinhos. Os pequenos nunca saem dessa brincadeira sem queimaduras.
Fonte:Blog do Jofe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário