Urariano Mota
Recife (PE) - Quando ouvi pela primeira “Meu caro amigo”, eu estava angustiado e fodido em São Paulo, sufocado em um quarto do tamanho de uma cama, um passa-discos e um banquinho.
“Meu caro amigo, me perdoe, por favor
Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador
Mando notícias nessa fita
Aqui na terra ‘tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta.....”
Ouvir Chico naqueles anos não era bom. Era necessário, vital, urgente. Nós buscávamos a música de Chico como um viciado que procura a sua salvação, agora, para ontem. Isto, se aliviava, deixava em seu próprio alívio a ferida mais aberta. Até onde a memória alcança, lembro que nos momentos em que ouvíamos Chico a alegria não tinha morada. E dividam comigo a dúvida, não sei se isso vinha da própria natureza da sua composição ou das circunstâncias, do tempo miserável da ditadura militar em que vivíamos. Pois ele era a expressão musical da nossa asfixia.
Não pensem que reagimos como cães amestrados de Pavlov. Isto é, como ouvíamos muito Chico durante a ditadura militar, teríamos para sempre associado o azinhavre da baioneta à sua música. Ouçam, por exemplo, o Chico sem panfleto, sem mensagem antiditadura:
“O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca
Quando me beija a boca
A minha pele inteira fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh’alma se sentir beijada, ai
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos
Viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo
Ri do meu umbigo
E me crava os dentes, ai...”.
É uma celebração do amor, é certo. Um porque me ufano do prazer e carinho que meu amor me extrai e me dá. Um canto da alma feminina, segundo a tradição crítica, à qual poderíamos acrescentar: um canto do homem que faz a mulher cantar o prazer que recebe.
Há muita beleza, e verdade nessa letra, percebemos. Mas reparem, é uma comemoração de Dioniso. Nela não há mãos dadas dos amantes ao pôr-do-sol, o relaxar após o êxtase. Pelo contrário, é um cântico aos jogos amorosos que anunciam a tempestade. A flecha rumo às nuvens carregadas, prenhes de raios e tormentas. Queremos dizer: é do estilo, é do gênero, é da alma do compositor a inquietação, a ansiedade, um mal-estar no mundo. O amor como um sempre contentamento descontente.
Essa ausência do amor apolíneo, esse ausência do cantar maturado da felicidade que partiu, como num Cartola, enfim, essa falta de serenidade, longe está de ser uma falta de beleza, uma restrição da arte plena. Desde Kafka aprendemos que de uma só maneira se faz arte: de todas as maneiras.
“De todas as maneiras
Que há de amar
Nós já nos amamos
Com todas as palavras feitas pra sangrar
Já nos cortamos...”
É de um barbarismo grande falar de música sem a música mesma. Nessa busca da música popular, cantada, é uma violência estúpida o amesquinhamento da canção à sua letra, que por sua vez se transforma em objeto autônomo, elevado a poema. Esta é uma operação que não engrandece primeiro àqueles a quem julga beneficiar, os compositores de música, e em segundo, muito menos, aos poetas. Os compositores, reis e soberanos, indispensáveis a todos nós, não precisam dessa invasão de domínio. Os poetas, por sua vez, sentem-se com toda justiça espoliados. E acompanhem essa dupla violência e injustiça: quando alguém destaca a letra da música sempre o faz com a lembrança da melodia; quando alguém destaca um poema, destaca-o do quê?, destaca-o da própria força do seu ritmo, imagem, verdade, expressão e síntese. Os poetas, soberanos absolutos no reino do poema, só têm as palavras, o compositor popular tem palavras e melodia. Mas que dizer diante de
“Ó pedaço de mim,
Ó metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto...” ?
Melhor sair de fininho. Até amanhã, se Deus quiser, mas se não quiser...
(Email do colunista: urarianoms@uol.com.br) Fonte:Direto da Redação.
Um comentário:
Caro amigo Carlos: grato. Abraço fraterno.
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